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Poesia portuguesa
Por António Cabrita Publicado em Literatura, Poesia, Portugal a 24 de Janeiro, 2025 457 palavras
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FRAME

O farol está nas nossas costas.
De dia mal damos pelo seu branco
fungível, tudo o que fulgura
ao seu redor inspira
e agiganta-nos.
Mas a alegria,
esse hóspede sempre
numa fona, desvanece-se
e com a idade
importa o que traga o mar
a inopinada imagem que resgate
o álgido segredo que partira.

O farol relincha e queima
e alumia nas nossas costas.
Nós, já nos mínimos,
esperamos que a varredura da luz
reanime uma centelha,
um vislumbre da paixão.
Deixámos de interrogar: ajusta-se
o seu movimento descontínuo
a sede
de não perder pitada
dá intensidade ao seu braço
nas trevas
e a batida no seu pulso
descobrimo-lo
afinal é cardíaca –
tem o semblante desse relojoeiro
que apura a mira para o acaso
na linha visível da ocasião.

Um splash de amplas
esbaforidas
vagas trepa-nos
dos calcanhares à alma,
é inaudito o estrondo
desse miolo opaco,
como Jonas
no ventre da baleia
tocamos o muro
estamos perdidos mas focados.

Que a súbita quilha ferrugenta
de um cargueiro
emerja do poço
para a espuma,
desponte na retina,
e possamos ler
o seu nome – Frame –
é doravante tudo o que importa,
um contacto, a fragância de um
devaneio –
uma veia que se deixe
cativar
mesmo ao longe,
pelo longo pescoço de uma palavra.
Complicámos tanto, décadas a fio.

O farol banha as nossas costas
projecta-nos
por um instante
no olhar
de quem no convés
aliviado
divisa a linha da costa.
Mesmo em contraluz
somos um aceno,
essa presença inerme
que no seio da borrasca
reverte as fauces do caos
faz adivinhar a melodia.

É inexplicável o que sossega
o coração
nas falésias do mar.
O farol arranca-nos à carne
do medo e a sua luz
entranha-se no silêncio
que vamos conquistando à noite.
Algum dia conseguiremos
fitá-lo de frente.

*-*-*

MATURIDADE

Convém limpar cada letra
com álcool e um alfinete
para remover o maior sedimento
possível, dizia-me o poeta.

Sedimento de quê, inquiri.
Engalfinhou-se, pôs-me na rua
do seu atelier, Vai bugiar
mais ao teu cepticismo profundo,

vociferou. Nunca mais,
intransigente, me abriu
a porta. Passaram quinze anos
e ainda me atormenta

não saber se era de Deus
o sedimento a que se referia,
se da presença do amor
a que fez figas, se

simplesmente da emoção
com que falava da infância
e da mãe lhe descascar
as castanhas esfriando-as

na mão, qual fora o sedimento
que o levou a pegar fogo
a todos os inéditos
antes de desaparecer

no deserto da Namíbia.
É enigma que nunca deslindarei
mas o tempo curou-me
da tentação de ser puro

que nenhuma mão se lava
sozinha sem o sortilégio
da água e de outra mão
que pode nem pertencer-nos.

E passei a querer atrair
os sedimentos às letras.
Guardo desde aí no seu bojo
as escamas as esquírolas as nódoas

de sémen, ciente de que se
as mulher não têm portas
como o mar não têm portas,
hei-de eu fechar-me a quê?

*-*-*


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