Cédula do Mundo de Izidro Alves. Fafe: Editora Labirinto, 2025 (Recensão).
Izidro Alves tem vindo a atravessar a nossa paisagem literária com uma sobriedade e uma circunspeção raras, neste tempo em que na afirmação do eu apenas contam a espetacularidade e a imagem martelada até à exaustão. Preocupado unicamente com a observação do real, quer interior quer exterior, e com a sua interpretação poética, este autor demarca-se assim, sem acinte, de qualquer tipo de piruetar enganoso. A tónica colocada na atenção, na escuta e no cuidado faz com que sejamos conduzidos aqui, inevitavelmente, à formulação heideggeriana do habitar poeticamente o mundo. Há, em Izidro Alves, uma correspondência ativa entre o tipo de personalidade que se tem e o modo de escrita que se leva a cabo, pelo que o poeta se demarca dos territórios das acumulações palavrosas e das enxúndias estilísticas, isto é, daquilo a que Mário Quintana chamava os chocalhos de palavras.
Outro aspeto interessante desta poética prende-se não só com o fazer, mas, igualmente, com a fruição dos textos, esta ideia conduz-nos inevitavelmente à polémica que se estabeleceu entre Kant e Santayana. Como sabemos, para Kant a peculiaridade do prazer estético advém do facto de ele ser desinteressado (isto é, isento de interesse relativamente à existência real do objeto) e universal (ou seja, capaz de estimular o consenso de todos). Ora, Santayana nega estas duas caraterísticas, pelo que o prazer (aqui, da fruição dos poemas!) coincide não só com uma certa teleologia, mas também com a ideia de que esse finalismo se articula com a dimensão empírica do viver. Dito de outro modo, e extrapolando a polémica para esta poesia: quem tem a experiência de certos textos terá preocupações mais abrangentes do que aquele que se limita a arrumar a sua casa; quanto à segunda posição kantiana, diz Santayana que o importante não é quantos gostam de uma obra, senão o quanto gostam aqueles que mais a apreciam (1). Vemos, por conseguinte, e partindo da explanação de Mario Perniola acima referida, que a poesia de Izidro Alves persegue um certo finalismo articulado com a experiência direta do viver e que não tem intentos universalizantes (panfletários ou outros), mas que pretende tocar o outro o mais que o puder fazer.
Partindo destes princípios gerais, fixo-me agora na obra que aqui me ocupa. Este último livro de Izidro Alves (Cédula do Mundo), publicado já em 2025, é formalmente uma obra em verso branco e heterométrico, cujos poemas oscilam entre os poemas monostróficos – por vezes longos – e as sextilhas; possui uma imagística crua e atenta aos ínfimos pormenores do mundo pessoal e social, sem, contudo, cair em qualquer tipo de solipsismo e/ou de panfletarismo; podemos ainda encontrar na poesia de Izidro Alves uma interconexão muito bem conseguida entre: experiência vivida (p 22 p 24, p 54, p 59…), comprometimento social (p 33, p 68, p 73…), metapoético (p 9, p 10, p 28, p 70…) e situações múltiplas de intertextualidade (p 32, p 36, p 46, p 47…), que transpassam todo este livro, podendo essa intertextualidade assumir três formas: por alusão, por interconexão temática e por referência explícita. Deixo aqui dois exemplos do que acabou de ser dito, neste caso relativamente à intertextualidade:
Lê um poema de Cavafis
Se queres saber
Como é bela uma taberna
Lê um poema de cavafis
Depois pergunta ao teu pai
Que durante trinta anos
Trabalhou no número 35
De uma rua que já não existe
Se o poema é verdadeiro.
(p 55)
Poema para Daniel Faria
Independentemente do sol da terra
A magnólia continua a iluminar
Os teus olhos
Vejo-a a arder desamparada
Na chuva
A queimar as mãos dos ceifeiros
Até morrer
A luz faz o caminho
Inverso do coração
Mas ninguém vê
(p 46)
Um outro aspeto interessante na poesia de Izidro Alves é o modo como ele articula o Desencanto e a Desolação com uma forma fina e múltipla (sofrida, cáustica, etc.) de Ironia. Vejamos:
Metanoia
Se fosse hoje
Tinha tirado um curso superior
Talvez de latim e grego
Para falar com os deuses
E nunca nunca
Esta maneira tosca de fazer versos
Este jeito de arquear as mãos
De alimentar os pombos
Nos jardins públicos
Com flores amarelas nos passeios.
(p 49)
Desejo para aligeirar a ignorância
Quando for muito velho
Quero que me fotografem
Com um gato ao colo
Com óculos muito grossos
De lentes diagonais
Sentado numa cadeira Luís XV
E que me perguntem
Se já li Marcel Proust
(p 65)
Toda esta caraterização que acabo de levar a cabo da poesia de Izidro Alves, pode ser encontrada já nas suas publicações anteriores, o que dota a obra deste autor de uma vincada coerência interna e de uma estruturação marcada pela autenticidade do olhar e do dizer:
O melhor trabalho (2)
Tu rezas, mãe,
Pela boa colheita
Pela passagem de mais um ano
Por mim que estou longe e não escrevo.
Eu falo do sol amarelo das mimosas
E da cotovia que canta
No cimo dos pinheiros.
Não sei quem faz
O melhor trabalho
Mas é no teu rosto
Que o sol lavra a terra.
Esta opção de Izidro Alves em trilhar o caminho de um versejar límpido, que não se deixa embiocar por quaisquer hermetismos “benfazejos”, e que estabelece que a poeticidade de um texto não advém exclusivamente da construção deste, mas da relação dialógica que se estabelece entre o em-si de dada estrutura poemática e a cognoscibilidade interpretativa do leitor; esta opção – direi – poético-estética, onde os poemas irrompem, por vezes inopinadamente, quais iluminações de sentido, ante o aberto do olhar do outro, aproxima esta poesia de grandes poetas como, por exemplo, do bretão Eugène Guillevic, e, para concluir, deixo aqui duas ilustrações do referido:
No teu poema
Há um cuco.
Já falaste dele
Muitas vezes,
Então, lembremo-nos,
Vivamos com ele
Uma primavera que atravessa
Todas as estações. (3)
outro exemplo:
Sim, tarde
Tu instalas-te como se
Devesses permanecer.
Mas acabarás engolida
Como a maré. (4)
(1) Para acompanhar esta polémica Cf. Mario Perniola in “La estética contemporânea”. Madrid: La Bolsa de la Medusa, 2016, pp 17-29.
(2) In “A sombra da mão” de Izidro Alves. Lisboa: GDCBP, 2018, p 57.
(3) In “Art poétique” de Guillevic. Paris: Poésie/ Gallimard, 1970, p 182 (Tradução de Victor Oliveira Mateus).
(4) In “Possibles futurs” de Guillevic. Paris: Poésie/ Gallimard, 1996, p 117 (Tradução de Victor Oliveira Mateus).
Victor Oliveira Mateus