Autores que cantaram o Douro (primeira parte, primeira secção)
Na sequência de um passeio que fiz em terras do Douro — durante o verão de 2024 —, deitei-me à leitura de autores que o cantaram. Centrei-me nas suas obras de matriz duriense e agora os arrolo mediante a ordem de apresentação que segui no blogue onde publico os meus textos (josepaulopego.net). O alinho radicou na disponibilidade dos livros e na apetência que, em dado momento, sentia por um particular género literário.
A primeira parte do presente artigo versa sobre João de Araújo Correia, Manuel Mendes, António Cabral, Guedes de Amorim, Telmo Ferraz, Gerardo Diego, Miguel Torga, João Pina de Morais, Campos Monteiro, Mário Bernardes Pereira, Antonio Machado, Agustina Bessa-Luís, Hercília Agarez, Eça de Queiroz, A. M. Pires Cabral e António Modesto Navarro. Aqui reproduzo um tracanaz do que fui publicando no dito blogue. Terminarei com a indicação dos autores que em mim espoletaram um coup de cœur.
João de Araújo Correia (Canelas do Douro, 1899 – Régua, 1985) destacou-se, no que ao beletrismo respeita, como contista e enquanto cronista. Viveu sempre na região duriense, aí exerceu a medicina. O contacto com os pacientes deu-lhe a matéria que pôs em texto, Araújo Correia foi, sobretudo, um escritor do Douro humano.
A sua palavra é castiça e o seu discurso é fluido, não contém enxúndia, prende quem o lê. Contos Durienses (1941) e Folhas de Xisto (1959) ilustram-no, são monumentos ao conto curto, à fraseologia regional e à escrita descarnada, desprovida de enfeites tontos — A Luz Eléctrica (de Folhas de Xisto), estória que nem três páginas tem, é um verdadeiro tratado acerca da inveja.
Os dois livros dão múltiplos sinais de compreensão do Douro e do Portugal de antanho, neles marcam presença os lugarejos em que não havia divisão do trabalho — o cauteleiro de Manhã Perdida (Folhas de Xisto) era
também engraxador e vendedor de jornais —, o machismo (vide Um Caso de Honra, nos Contos Durienses, e Linhas Tortas, em Folhas de Xisto), a fome dos trabalhadores rurais (n’A Torre, em Contos Durienses) e os códigos próprios da gente de terra pequena, passíveis de gerar respostas materializadas em agressão física (cf. Um Rapaz da Terra, em Folhas de Xisto).
Manuel Mendes (Lisboa, 1906 – Lisboa, 1969) foi escritor, artista plástico e um empenhado opositor ao regime fascista.
O volume do Roteiro Sentimental que incide sobre o Douro, publicado pela primeira vez em 1964, reúne crónicas escritas entre 1961 e 1963. Revela um autor arrebatado pela força telúrica da região duriense e um homem rendido aos que aí mourejavam: O Pedreiro é uma ode ao trabalho do alvenel que levantou e tão bem modelou os muros dos socalcos.
As páginas do livro compreendem, inter alia, o relato da viagem de três dias que Manuel Mendes fez, num barco rabelo, do Pinhão à Ribeira, a triste história da jovem Fanny Owen, a evocação do Barão de Forrester e a referência à exploração dos que chegavam ao Douro para a faina em tempo de apanha das uvas.
Graças a Manuel Mendes, fiquei a saber que a palavra «consoada» designava, no seu significado originário, a refeição ligeira e sem carne tomada à noite nos dias de jejum (vide A Consoada) e que a alheira foi criada pelos judeus, em Trás-os-Montes, como meio de iludir a Inquisição (cf. Em Louvor da Alheira). Visto que não comem carne de porco, os judeus não produziam nem defumavam enchidos que tinham o porco como ingrediente principal. A ausência de fumeiro em casa dava, pois, sinal de que ali habitava família judia. Os judeus começaram então a preparar um enchido com pão e com picado de outras carnes (vitela, galinha, peru, perdiz, coelho, lebre…) e assim deram nascença à alheira, cujo nome radica na utilização, como tempero, do alho.
António Cabral (Castedo do Douro, 1931 – Vila Real, 2007) foi poeta, ficcionista, dramaturgo, cronista, ensaísta, escreveu acerca dos jogos e das tradições populares. O universo trasmontano e duriense é elemento determinante na sua obra, não conheço quem, como António Cabral, haja versejado o Douro humano com tanto páthos.
O livro Poemas Durienses (1963), ilustrado com sugestivos linóleos de Nuno Barreto, denota o compromisso do autor com a gente do Douro, a sua gente, e mostra o apreço que ele tem pelo ser humano, mormente por aquele que, em terras do Douro, executa os trabalhos fragueiros. Eis Aqui, o Homem: «Nem Baco nem meio Baco!:/Aqui é o homem,/desde as mãos ossudas e calosas,/desde o suor/ao sonho que transpõe as nebulosas.//Montes de pedra dura,/gólgotas/onde os geios são escadas!/Venham ver como sobe o desespero/e a esperança, de mãos dadas.//É o homem./Isso é o homem./– Nem sátiro nem fauno –/Uma vontade erguida em rubro gládio/que ganha a terra, palmo a palmo.//Vinhas que são o inferno,/o único/em que o fogo é a taça da alegria!/Venham ver um senhor/grandioso como o sol ao meio-dia.//Nem Baco nem meio Baco!:/Aqui é o homem/que nada há que não suporte/mas suporta e persiste./Aqui é o homem até à morte.»
Por razões de índole editorial, apresentei o poema em formato de prosa. Note, leitor, que neste carme de António Cabral nem sempre o início do verso está situado no início da linha.
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