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Autores que cantaram o Douro (Ensaio, 1ª Parte, 2ª Secção)
Por José Paulo Pego Publicado em Ensaio, Literatura, Portugal a 24 de Janeiro, 2025 1359 palavras
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Autores que cantaram o Douro (primeira parte, segunda secção)

  1. Telmo Ferraz, L Lhodo i las Streilhas / O Lodo e as Estrelas

L Lhodo i las Streilhas / O Lodo e as Estrelas é uma obra de Telmo Ferraz. A respetiva edição é bilingue, a tradução para o mirandês deve-se a Amadeu Ferreira, um cultor desse idioma.
O padre Telmo Ferraz nasceu em Bruçó, concelho de Mogadouro, no ano de 1925. Nos anos cinquenta do século xx, desenvolveu atividade pastoral junto dos que ergueram as barragens de Picote e de Miranda do Douro. Em Angola, acompanhou os que construíram a barragem de Cambambe e, mais tarde, criou a Casa do Gaiato de Malanje. Voltou a Portugal e continuou a servir na Casa do Gaiato.
L Lhodo i las Streilhas / O Lodo e as Estrelas é um livro de diálogos com Deus e é, sobretudo, um caderno de memórias, um conjunto de apontamentos de quem ladeou os que edificaram a barragem de Picote e as respetivas famílias. O texto é cru e o universo a que ele se reporta é cruel.
Telmo Ferraz deixa registo de fome, de salários miseráveis, de operários que, por causa da exposição a partículas nocivas, padecem de silicose. A Conceição e os seus filhos moram num cortelho onde, poucos dias antes, ainda vivia um porco. À porta da barraca do Pedro, estão à vista cascas de batata, restos de lenha, papéis, cacos e cocó dos miúdos; lá dentro, só há duas tarimbas, uma é para o casal e para as crianças de colo, na segunda dormem as outras quatro crias. O Manuel dorme na palha, com o seu casaco sebento. O Zé Manuel nunca viu um prato nem uma mesa, come dum caçoulo, sentado no chão. Como estas coisas não eram bonitas de ver, a censura impediu a circulação do livro, inicialmente publicado em 1960.
L Lhodo i las Streilhas / O Lodo e as Estrelas não contém primores literários, mas o padre Telmo, alma generosa e devotada ao próximo, não precisa deles para, um dia, se converter em estrela no céu.

  1. Gerardo Diego, Romance del Duero

Gerardo Diego (Santander, 1896 – Madrid, 1987), autor da Geração de 27, escreveu poesia de vanguarda — foi um dos representantes do criacionismo e do ultraísmo — e poesia de cariz clássico e tradicional. No âmbito desta se inclui Romance del Duero, inicialmente publicado em 1923, no poemário Soria (Galería de estampas y efusiones).
O vate celebra o rio Douro e fá-lo evidenciando o desprezo com que o tratavam os habitantes de Sória, cidade em que o rio passa e na qual Gerardo Diego exerceu atividade docente. Eis o poema: «Río Duero, río Duero,/nadie a acompañarte baja;/nadie se detiene a oír/tu eterna estrofa de agua.//Indiferente o cobarde,/la ciudad vuelve la espalda./No quiere ver en tu espejo/su muralla desdentada.//Tú, viejo Duero, sonríes/entre tus barbas de plata,/moliendo con tus romances/las cosechas mal logradas.//Y entre los santos de piedra/y los álamos de magia/pasas llevando en tus ondas/palabras de amor, palabras.//Quién pudiera como tú,/a la vez quieto y en marcha,/cantar siempre el mismo verso/pero con distinta agua.//Río Duero, río Duero,/nadie a estar contigo baja,/ya nadie quiere atender/tu eterna estrofa olvidada,//sino los enamorados/que preguntan por sus almas/y siembran en tus espumas/palabras de amor, palabras.»
Aí está o rio que o poeta admira e canta, o flume que os sorianos desconsideram e que parece só ter valia para as criaturas enrabichadas.
O poema tem bom ritmo, para isso concorre a epanadiplose que fecha duas estrofes. Ele pode ser lido do princípio ao fim da mesma maneira que se navegaria rio abaixo.
O tom oralizante é sugerido pela apóstrofe do primeiro verso e reiterado, posteriormente, pelo reemprego de tal figura.

  1. Miguel Torga, O Doiro, Vindima e o poema S. Leonardo de Galafura

Miguel Torga (São Martinho de Anta, concelho de Sabrosa, 1907 – Coimbra, 1995) cantou o Douro em poesia e em prosa. Aqui deixo nótulas acerca dos seus poemas de inspiração duriense, do romance Vindima (1945) e de O Doiro, um dos fragmentos da coletânea Portugal, publicada pela primeira vez em 1950.
Em O Doiro, Torga diz multum in parvo. Num texto curto, provido de imensa força falante, depõe a grandeza do elemento físico e não foge à consideração do elemento humano. Com os lúzios no rio e na região duriense, o autor torna-os únicos, excecionais na sua magnificência, no seu significado, na dimensão do que sente e sofre quem lá labuta.
O grosso do enredo de Vindima desenrola-se em duas quintas do Douro, nelas desfilam o nascimento e a morte, a nobreza de caráter, a maldade, a vaidade, a exploração do aguante humano, a beatice e a repressão do desejo sexual.
Embora seja obra datada, Vindima continua a merecer leitura, no mínimo pela escrita de alto calibre, por pôr a drapejar a bandeira do trabalho digno, pelo retrato de personagens e de classes sociais. Através, designadamente, do olhar de Alberto, um homem que fazia parte da casta dos privilegiados, Torga mostrou quão necessário era levar a cabo transformações que melhorassem a vida dos que eram obrigados a vender a sua força de trabalho.
O romancista que tomava o partido do subalterno espezinhado e que alvitrava mutações de cariz social dá lugar ao poeta observador, os versos durienses de Torga são destituídos de intuitos de agitação e de mudança. Atente-se, por exemplo, em S. Leonardo de Galafura, de outubro de 1961: «À proa dum navio de penedos,/A navegar num doce mar de mosto,/Capitão no seu posto/De comando,/S. Leonardo vai sulcando/As ondas/Da eternidade,/Sem pressa de chegar ao seu destino./Ancorado e feliz no cais humano,/É num antecipado desengano/Que ruma em direcção ao cais divino.//Lá não terá socalcos/Nem vinhedos/Na menina dos olhos deslumbrados;/Doiros desaguados/Serão charcos de luz/Envelhecida;/Rasos, todos os montes/Deixarão prolongar os horizontes/Até onde se extinga a cor da vida.//Por isso, é devagar que se aproxima/Da bem-aventurança./É lentamente que o rabelo avança/Debaixo dos seus pés de marinheiro./E cada hora a mais que gasta no caminho/É um sorvo a mais de cheiro/A terra e a rosmaninho!»

  1. João Pina de Morais, Sangue Plebeu

João Pina de Morais (Valdigem, concelho de Lamego, 1889 – Porto, 1953) foi militar, escritor, jornalista e também um político defensor dos ideais republicanos. Na Primeira Guerra Mundial combateu na Flandres,
integrado no Corpo Expedicionário Português. A experiência que aí colheu deu nascença a Ao Parapeito, escrito cuja primeira edição remonta a 1919.
Sangue Plebeu, de 1942 e novamente publicado em 2003, é um livro de contos que chama terras e carateres durienses. As vidas crivadas de espinhos nele referidas coçaram a minha sensibilidade.
Em No Douro, o conto de Sangue Plebeu que mais me agradou, Pina de Morais fala dos trabalhos que, ao longo do ano, incidem sobre a videira, apresenta rica descrição das castas de uva e dos atributos do vinho do Porto, presta homenagem aos que forcejam na lida da terra, critica os poderes públicos e recria o Motim de Lamego, que tivera lugar em 20 de julho de 1915 (os manifestantes lutavam pelo seu sustento, contestavam o Tratado de Comércio e Navegação que Portugal havia celebrado com a Grã-Bretanha e, em especial, o respetivo artigo 6.º, que abria a possibilidade de, na Inglaterra, a denominação de origem «Porto» se aplicar a qualquer vinho produzido no nosso país, não apenas aos vinhos generosos da região duriense).
Não gostei muito de ler Sangue Plebeu. Aprecio a escrita fluida e o estilo enxuto e não foi isso que encontrei na obra em apreço.

© Fotos das publicações da autoria de Jurate Vaiciukaite


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