Autores que cantaram o Douro (primeira parte, terceira secção)
Campos Monteiro (Torre de Moncorvo, 1876 – São Mamede de Infesta, 1934) foi médico, escritor, tradutor, deixou textos em várias publicações periódicas, exerceu cargos públicos. Revelou-se um autor polígrafo, a sua obra compreende poesia, prosa e peças de teatro.
Ares da Minha Serra. Novelas Trasmontanas, de 1933, traz vinco duriense. Reúne uma novela, A Tragédia de um Coração Simples, e dois contos, A Rebofa e Um Aviso do Céu.
No primeiro desses contos, a rebofa provocada pelo Douro embastecido frustra as colheitas de que dependia o sustento de um casal e condu-lo a um fim trágico. E a ação do segundo decorre, em grande parte, num barco rabelo que desce o Douro, da foz do Sabor à foz do Tua.
Mário Bernardes Pereira (Peso da Régua, 1897 – Porto, 1961) foi médico, escritor, autarca, exerceu cargos de direção no Instituto do Vinho do Porto e na corporação de bombeiros da terra que o viu nascer. Da sua pena saíram os romances Escravidão (1942) e A Quimera das Sete Vacas Gordas (1944), que versa sobre a exploração de volfrâmio em Trás-os-Montes.
Em Escravidão, Mário Bernardes Pereira narra o drama amoroso protagonizado por Paulo, Luísa e Genoveva. É um livro duriense, em cujas páginas o leitor encontra referências aos negócios do vinho, às vindimas, às rogas, à crise e ao receio de não conseguir vender as uvas.
Antonio Machado, um dos autores da Geração de 98, nasceu em Sevilha, em 1875, e morreu em Collioure, na França, em 1939. Durante a Guerra Civil Espanhola, alinhou com os republicanos, publicou textos em defesa da respetiva causa e viu-se forçado a deixar o seu país.
Aqui trago Orillas del Duero, publicado no livro Soledades. Galerías. Otros poemas, de 1907. É o primeiro poema no qual o autor, que até aí adotara modos intimistas e subjetivistas, segue uma linha descritiva que valoriza a paisagem, o cenário. «Se ha asomado una cigüeña a lo alto del campanario./Girando en torno a la torre y al caserón solitario,/ya las golondrinas chillan. Pasaron del blanco invierno,/de nevascas y ventiscas los crudos soplos de infierno./Es una tibia mañana./El sol calienta un poquito la pobre tierra soriana./Pasados los verdes pinos,/casi azules, primavera/se ve brotar en los finos/chopos de la carretera/y del río. El Duero corre, terso y mudo, mansamente./El campo parece, más que joven, adolescente./Entre las hierbas alguna humilde flor ha nacido,/azul o blanca. ¡Belleza del campo apenas florido,/y mística primavera!/¡Chopos del camino blanco, álamos de la ribera,/espuma de la montaña/ante la azul lejanía,/sol del día, claro día!/¡Hermosa tierra de España!»
Apresentei o poema em formato de prosa. Saiba o leitor que, nesta composição de Antonio Machado, nem sempre o início do verso está situado no início da linha.
A adjetivação é elementar, faz-se referência a um casarão solitário, a manhã é tépida, a terra é pobre e o sol só a aquece um pouquinho, a primavera chegou, mas apenas oferece alguma humilde flor. Fala-se, ainda assim, de uma terra formosa. E a exclamação final é um epifonema capaz de bulir com o leitor.
Em texto que sigo («“Orillas del Duero”, de Antonio Machado», in AAVV, El comentario de textos, Madrid, Editorial Castalia, 1973, pp. 271-284), Gregorio Salvador recorre à comutação — experimenta substituir palavras do poema por outras — e acaba por concluir, designadamente, que o adjetivo «claro» no penúltimo verso é insubstituível: ele é a dobradiça que une o corpo do poema ao verso final, ele é a palavra-dobradiça que a este dá sentido. Para tal adjetivo convergem, e nele se fundem, as alvuras, os brancos e os azuis que correm no poema (a neve, a flor, a espuma e as plumas das cegonhas são brancas…). E é toda essa claridade que torna formosa a terra de Espanha.
Afinal, o registo expositivo destituído de fulgores e a veia lírica que parece pobre escondem malha interessante e estas Orillas del Duero só desiludirão os que se quedarem pela observação da paramentaria.
Agustina Bessa-Luís (Vila Meã, Amarante, 1922 – Porto, 2019) é um dos grandes prosadores da literatura portuguesa. Dedicou-se à escrita, interveio na vida pública, integrou a Alta Autoridade para a Comunicação Social, foi diretora d’O Primeiro de Janeiro e do Teatro Nacional D. Maria II. A região do Douro, que conheceu logo nos verdes anos, deixou marca na sua obra.
Vale Abraão, de 1991, foi concebido como guião para um filme de Manoel de Oliveira. O palco da respetiva trama é a terra duriense (sobretudo três quintas aí situadas). Ela oferece o meio certo para apresentar Ema, a Bovary portuguesa, contrapondo-a a espíritos acanhados e provincianos, da burguesia e não só.
Agustina Bessa-Luís apresenta uma caraterização do lavrador local e descreve as residências dos terratenentes, a atmosfera que por lá reinava, o globo doméstico no qual circulavam patrões e criados.
O fio narrativo de Vale Abraão é sinuoso e abre para córregos onde alguma coisa se aprende a propósito da condição humana, da alma e dos modos dos homens e das mulheres, dos seus sentimentos e motivações. O romance contém passagens interessantes acerca da inveja, nomeadamente da inveja que as mulheres dirigem para outras mulheres.
Hercília Agarez nasceu em Vila Real, em 1944. Foi professora do ensino secundário, está aposentada. Escreveu ensaios — mormente sobre a obra de Miguel Torga —, crónicas, contos e poesia.
As Asas da Libelinha, de 2015, reúne poemas curtos compostos em jeito de haicu. Os títulos das três partes do livro (Percepções, Emoções e Reflexões) quadram com aquilo que na autora desata a observação das bagatelas do quotidiano e da vida campestre (também há referências à cidade).
Pelo livro passam, por exemplo, as sementeiras na primavera, a hora de verão e o tempo suplementar que ela concede para namorar a natureza, as flores de marmeleiro que prometem doçura quando outubro chegar, os tons que o outono põe na terra e que depois o inverno rouba; meninas de bibe que dão as mãos, casais de melros que namoram na cerejeira, cegonhas que nidificam em campanários; serras pintadas de branco, espigueiros vazios e saudosos de milho, vinhedos vaidosos, amendoeiras em flor, ciprestes do Douro. Hercília Agarez interpreta uma verdadeira sinfonia pastoral.
Cá fica um dos poemas em que a autora menciona o Douro: «Saquinhos de alfazema/aromatizam/intimidades…//Vinhedos vaidosos/miram-se no espelho:/Narcisos do Douro.»
Hercília Agarez publicou Memórias da Quinta da Touriga no seu livro Histórias que o Povo Tece. Contos do Marão (2011) e, em versão reformulada, numa antologia de escritos de autoras transmontanas que coorganizou, Por Longos Dias, Longos Anos, Fui Silêncio: uma Breve Antologia de Autoras Transmontanas (2015).
Nesse texto, recria espaços e ambientes de uma quinta do Douro, conta estória curiosa acerca da transmissão da respetiva propriedade, deixa registo interessante a propósito do regime patriarcal que vigorou na sociedade portuguesa e, decerto, em quintas do Douro.
© Fotos das publicações da autoria de Jurate Vaiciukaite