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Autores que cantaram o Douro (Ensaio, 1ª Parte, 4ª Secção)
Por José Paulo Pego Publicado em Ensaio, Literatura, Portugal a 24 de Janeiro, 2025 1424 palavras
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Autores que cantaram o Douro (primeira parte, quarta secção)

  1. Eça de Queiroz, A Cidade e as Serras

Eça de Queiroz (Póvoa de Varzim, 1845 – Neuilly-sur-Seine, 1900), figura de proa do beletrismo luso e o maioral dos prosadores realistas do nosso país, escreveu textos cativantes, deliciosos, que agradam mesmo àqueles que pouco se interessam por livros: é fácil apreciar a vertente satírica da sua obra, a crítica da vida social portuguesa.
Eça de Queiroz estudou Direito em Coimbra, exerceu a advocacia, deixou textos em jornais e noutras publicações periódicas, desenvolveu carreira na diplomacia: foi cônsul de Portugal em Havana, em Newcastle, em Bristol e em Paris. Destacou-se como romancista, deu à estampa crónicas e contos, produziu obra epistolográfica.
A Cidade e as Serras foi publicado em 1901, já o seu autor tinha morrido. Pela voz de Zé Fernandes, narrador e personagem da estória, trava o leitor conhecimento com Jacinto, um fidalgo que nasceu em Paris e que aí ficou a viver, envolto em conforto e rodeado de livros e de todas as finuras técnicas que o século xɪx podia oferecer.
Semelhante fartura enfadou-o, nele provocou taedium vitae. Jacinto acabou por se fixar na propriedade rural da sua família em Tormes e foi aí que encontrou a felicidade e o justo equilíbrio da vida. Soldou-se à terra, promoveu a lavoura, melhorou as condições de vida dos que para si trabalhavam, casou e teve dois filhos.
A quinta de Tormes fica, na realidade, em Santa Cruz do Douro, no concelho de Baião. Era a Quinta de Vila Nova, que em partilha de herança coube a Emília de Castro, a mulher do escritor. Para vincar o contraste com a urbe, Eça de Queiroz elegeu, pois, a região duriense.
A Cidade e as Serras aproposita discussões acerca do cosmopolitismo, do recurso às novidades tecnológicas e da contraposição entre o campo e a cidade.
Sobre o cosmopolitismo, aqui fica uma nota. Vivo em Bruxelas, capital onde a maioria dos serviços deixa a desejar e onde o surrealismo
lastra as artes e o espanejo quotidiano. Em grande medida, o contentamento que sinto na cidade advém de, também eu, ser ator do encontro de culturas que em Bruxelas se repete. Capto uma alteridade que me enriquece e que, acredito, me torna mais justo e solidário. Outrossim, ela ajuda-me a perceber que as minhas verdades são verdades de relação.

  1. A. M. Pires Cabral, Douro: Pizzicato e Chula, Elegia do Douro e o Livro dos Lugares

A. M. Pires Cabral nasceu em Chacim, no concelho de Macedo de Cavaleiros, em 1941. Foi professor do ensino secundário, está aposentado. É senhor de empresa de fôlego que inclui poesia, romance, conto, teatro e crónicas. Uma das dimensões que valorizo na sua obra é a geografia literária, centrada no Nordeste português.
Douro: Pizzicato e Chula foi publicado em 2004. Parturejou-o uma viagem Douro acima, entre o Porto e Barca de Alva, que o literato fez na companhia de outros poetas. Agrupa quarenta carmes, mas talvez se possa dizer que eles formam uma só composição. O pizicato remete para os salões da burguesia e para a vertente lúdica da vida no Douro, a chula leva a pensar nas rogas e nas bagas de suor dos que se consumiram nas lides da vitivinicultura.
A. M. Pires Cabral vai mencionando o rio e também o que vê em terra, designadamente os montes e os socalcos, o comboio e a via-férrea que acompanha o flume, um solar em ruínas, uma casa de quinta — e, junto dela, um cipreste —, aldeias (Pala, Barca de Alva), uma cidade (a Régua) e São Leonardo de Galafura, lugar que Miguel Torga tão bem cantou. Bem assim, evoca a Ferreirinha, os trabalhadores braçais — responsáveis, em grossa medida, por aquilo que torna especial a região duriense — e os ingleses que colonizaram a região.
A escrita é depurada, A. M. Pires Cabral é um mestre na arte de associar síntese e pulcritude. Denota-o, por exemplo, Valeira: «Por alturas da Valeira/convém ser mudo./Ou esquecer o fio das palavras.//Porque há lugares tão feitos/para a malha do silêncio,/que uma simples sílaba/apenas murmurada — embaraça.»
Elegia do Douro é o título de uma secção do livro As Têmporas da Cinza, dado à estampa em 2008. Os 12 carmes nela reunidos assoalham o
critério rigoroso que A. M. Pires Cabral aplica aos seus versos, versos que, sem ponta de enxúndia, apresentam de maneira especialmente feliz — por vezes de maneira vibrátil — os referentes da composição poética.
De Elegia do Douro guardei, sobretudo, a qualidade do texto poético e o registo do Douro como flume de memórias e de morte.
O Livro dos Lugares e Outros Poemas foi publicado em 1999. Alguns desses lugares — a Quinta do Noval, o santuário e o miradouro de São Salvador do Mundo, por exemplo — estão localizados na região duriense. Eis o poema São Salvador do Mundo: «Salvaste o mundo, Salvador,/mas não amordaçaste/a boca deste abismo.//Fizeste bem:/dela deglutidos,/triturados dos seus dentes,/húmidos da saliva,/escolhemos sim ou não,/sem que tu forces nada.//O pensamento aqui/é mais enxada.»
A. M. Pires Cabral não é o turista que vai ao belveder para apreciar a paisagem. É o vate que se dirige ao Salvador e que compõe um texto com imagens fortes e com um registo telúrico que envolve os humanos, engolidos por aquela boca gigante, triturados pelos dentes que aí se encontram, ensopados em saliva. Assim é — rectius, também assim é — o A. M. Pires Cabral dos sítios que ama.

  1. António Modesto Navarro, Morte no Douro

António Modesto Navarro nasceu em Vila Flor, Trás-os-Montes, em 1942. Assinou alguns dos seus trabalhos com o pseudónimo «Artur Cortez». Escreveu romances — romances policiais, por exemplo —, contos, poemas, ensaios, tem textos publicados em jornais e revistas.
Resistente antifascista e militante do PCP, exerceu mandatos autárquicos na sua terra natal e em Lisboa, a cidade em que se fixou. Laborou no setor da publicidade e foi técnico superior do Ministério da Cultura.
Na sua obra, Modesto Navarro presta particular atenção às zonas rurais e ao interior de Portugal e, na esteira dos neorrealistas, mostra preocupações de ordem social e de denúncia da injustiça e da exploração do aguante humano.
Morte no Douro, de 1986, não é um romance policial, conquanto aqui ou ali se aproxime de tal género. Nele se encontram memórias de infância
do narrador (o mosto a ferver, a pisa de uvas até à meia-noite, as cantorias com as pernas entorpecidas na lagarada…), mas a matriz duriense resulta, no precípuo, das menções aos negócios do vinho e da terra, às traficâncias que eles escondem. Fiel às ideias que defende, Modesto Navarro malsina o grande capital do setor vitivinícola, o seu conluio com o poder político, o seu jeito de espezinhar o pequeno produtor.
O percurso de Modesto Navarro, enquanto cidadão e com a caneta de escritor, é digno de respeito. Gostaria de ter apreciado Morte no Douro. Mas a verdade é que o livro não me cativou: o recurso sistemático à analepse é feito de maneira infeliz e prejudica o desnovelar da trama, não consegui fazer uma leitura correntia; o vocabulário nada tem de especial.
Registo, ainda assim, boas surpresas. Agradou-me o desfecho que, deslindada a autoria do crime, Artur, o protagonista, propôs ao homicida. E prezei certa perceção de que o regresso à terra natal não significa forçosamente a reassunção do passado, mas resgata (sempre) o sentimento de ter origens.

  1. Coups de cœur

Dois dos autores referidos na presente parte deste artigo em mim suscitaram um coup de cœur: João de Araújo Correia e António Cabral.
Quanto ao primeiro, encantaram-me a sua escrita correntia, a linguagem castiça e a fraseologia regional, a autenticidade dos personagens, o texto simples vindo de um homem douto.
No que diz respeito a António Cabral, muito apreciei a qualidade do verso e o (contagiante) compromisso do autor com a condição humana e com aqueles cujo braço e cujo suor converteram a região duriense na maravilha que ela é.

© Fotos da publicações da autoria de Jurate Vaiciukaite


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