Autores que cantaram o Douro (primeira parte, quarta secção)
Eça de Queiroz (Póvoa de Varzim, 1845 – Neuilly-sur-Seine, 1900), figura de proa do beletrismo luso e o maioral dos prosadores realistas do nosso país, escreveu textos cativantes, deliciosos, que agradam mesmo àqueles que pouco se interessam por livros: é fácil apreciar a vertente satírica da sua obra, a crítica da vida social portuguesa.
Eça de Queiroz estudou Direito em Coimbra, exerceu a advocacia, deixou textos em jornais e noutras publicações periódicas, desenvolveu carreira na diplomacia: foi cônsul de Portugal em Havana, em Newcastle, em Bristol e em Paris. Destacou-se como romancista, deu à estampa crónicas e contos, produziu obra epistolográfica.
A Cidade e as Serras foi publicado em 1901, já o seu autor tinha morrido. Pela voz de Zé Fernandes, narrador e personagem da estória, trava o leitor conhecimento com Jacinto, um fidalgo que nasceu em Paris e que aí ficou a viver, envolto em conforto e rodeado de livros e de todas as finuras técnicas que o século xɪx podia oferecer.
Semelhante fartura enfadou-o, nele provocou taedium vitae. Jacinto acabou por se fixar na propriedade rural da sua família em Tormes e foi aí que encontrou a felicidade e o justo equilíbrio da vida. Soldou-se à terra, promoveu a lavoura, melhorou as condições de vida dos que para si trabalhavam, casou e teve dois filhos.
A quinta de Tormes fica, na realidade, em Santa Cruz do Douro, no concelho de Baião. Era a Quinta de Vila Nova, que em partilha de herança coube a Emília de Castro, a mulher do escritor. Para vincar o contraste com a urbe, Eça de Queiroz elegeu, pois, a região duriense.
A Cidade e as Serras aproposita discussões acerca do cosmopolitismo, do recurso às novidades tecnológicas e da contraposição entre o campo e a cidade.
Sobre o cosmopolitismo, aqui fica uma nota. Vivo em Bruxelas, capital onde a maioria dos serviços deixa a desejar e onde o surrealismo
lastra as artes e o espanejo quotidiano. Em grande medida, o contentamento que sinto na cidade advém de, também eu, ser ator do encontro de culturas que em Bruxelas se repete. Capto uma alteridade que me enriquece e que, acredito, me torna mais justo e solidário. Outrossim, ela ajuda-me a perceber que as minhas verdades são verdades de relação.
A. M. Pires Cabral nasceu em Chacim, no concelho de Macedo de Cavaleiros, em 1941. Foi professor do ensino secundário, está aposentado. É senhor de empresa de fôlego que inclui poesia, romance, conto, teatro e crónicas. Uma das dimensões que valorizo na sua obra é a geografia literária, centrada no Nordeste português.
Douro: Pizzicato e Chula foi publicado em 2004. Parturejou-o uma viagem Douro acima, entre o Porto e Barca de Alva, que o literato fez na companhia de outros poetas. Agrupa quarenta carmes, mas talvez se possa dizer que eles formam uma só composição. O pizicato remete para os salões da burguesia e para a vertente lúdica da vida no Douro, a chula leva a pensar nas rogas e nas bagas de suor dos que se consumiram nas lides da vitivinicultura.
A. M. Pires Cabral vai mencionando o rio e também o que vê em terra, designadamente os montes e os socalcos, o comboio e a via-férrea que acompanha o flume, um solar em ruínas, uma casa de quinta — e, junto dela, um cipreste —, aldeias (Pala, Barca de Alva), uma cidade (a Régua) e São Leonardo de Galafura, lugar que Miguel Torga tão bem cantou. Bem assim, evoca a Ferreirinha, os trabalhadores braçais — responsáveis, em grossa medida, por aquilo que torna especial a região duriense — e os ingleses que colonizaram a região.
A escrita é depurada, A. M. Pires Cabral é um mestre na arte de associar síntese e pulcritude. Denota-o, por exemplo, Valeira: «Por alturas da Valeira/convém ser mudo./Ou esquecer o fio das palavras.//Porque há lugares tão feitos/para a malha do silêncio,/que uma simples sílaba/apenas murmurada — embaraça.»
Elegia do Douro é o título de uma secção do livro As Têmporas da Cinza, dado à estampa em 2008. Os 12 carmes nela reunidos assoalham o
critério rigoroso que A. M. Pires Cabral aplica aos seus versos, versos que, sem ponta de enxúndia, apresentam de maneira especialmente feliz — por vezes de maneira vibrátil — os referentes da composição poética.
De Elegia do Douro guardei, sobretudo, a qualidade do texto poético e o registo do Douro como flume de memórias e de morte.
O Livro dos Lugares e Outros Poemas foi publicado em 1999. Alguns desses lugares — a Quinta do Noval, o santuário e o miradouro de São Salvador do Mundo, por exemplo — estão localizados na região duriense. Eis o poema São Salvador do Mundo: «Salvaste o mundo, Salvador,/mas não amordaçaste/a boca deste abismo.//Fizeste bem:/dela deglutidos,/triturados dos seus dentes,/húmidos da saliva,/escolhemos sim ou não,/sem que tu forces nada.//O pensamento aqui/é mais enxada.»
A. M. Pires Cabral não é o turista que vai ao belveder para apreciar a paisagem. É o vate que se dirige ao Salvador e que compõe um texto com imagens fortes e com um registo telúrico que envolve os humanos, engolidos por aquela boca gigante, triturados pelos dentes que aí se encontram, ensopados em saliva. Assim é — rectius, também assim é — o A. M. Pires Cabral dos sítios que ama.
António Modesto Navarro nasceu em Vila Flor, Trás-os-Montes, em 1942. Assinou alguns dos seus trabalhos com o pseudónimo «Artur Cortez». Escreveu romances — romances policiais, por exemplo —, contos, poemas, ensaios, tem textos publicados em jornais e revistas.
Resistente antifascista e militante do PCP, exerceu mandatos autárquicos na sua terra natal e em Lisboa, a cidade em que se fixou. Laborou no setor da publicidade e foi técnico superior do Ministério da Cultura.
Na sua obra, Modesto Navarro presta particular atenção às zonas rurais e ao interior de Portugal e, na esteira dos neorrealistas, mostra preocupações de ordem social e de denúncia da injustiça e da exploração do aguante humano.
Morte no Douro, de 1986, não é um romance policial, conquanto aqui ou ali se aproxime de tal género. Nele se encontram memórias de infância
do narrador (o mosto a ferver, a pisa de uvas até à meia-noite, as cantorias com as pernas entorpecidas na lagarada…), mas a matriz duriense resulta, no precípuo, das menções aos negócios do vinho e da terra, às traficâncias que eles escondem. Fiel às ideias que defende, Modesto Navarro malsina o grande capital do setor vitivinícola, o seu conluio com o poder político, o seu jeito de espezinhar o pequeno produtor.
O percurso de Modesto Navarro, enquanto cidadão e com a caneta de escritor, é digno de respeito. Gostaria de ter apreciado Morte no Douro. Mas a verdade é que o livro não me cativou: o recurso sistemático à analepse é feito de maneira infeliz e prejudica o desnovelar da trama, não consegui fazer uma leitura correntia; o vocabulário nada tem de especial.
Registo, ainda assim, boas surpresas. Agradou-me o desfecho que, deslindada a autoria do crime, Artur, o protagonista, propôs ao homicida. E prezei certa perceção de que o regresso à terra natal não significa forçosamente a reassunção do passado, mas resgata (sempre) o sentimento de ter origens.
Dois dos autores referidos na presente parte deste artigo em mim suscitaram um coup de cœur: João de Araújo Correia e António Cabral.
Quanto ao primeiro, encantaram-me a sua escrita correntia, a linguagem castiça e a fraseologia regional, a autenticidade dos personagens, o texto simples vindo de um homem douto.
No que diz respeito a António Cabral, muito apreciei a qualidade do verso e o (contagiante) compromisso do autor com a condição humana e com aqueles cujo braço e cujo suor converteram a região duriense na maravilha que ela é.
© Fotos da publicações da autoria de Jurate Vaiciukaite