menu Menu
Conto e Prosa Poética Portugueses
Por Maria Jorgete Teixeira Publicado em Contos, Literatura, Portugal, Prosa Poética a 9 de Dezembro, 2024 747 palavras
 Última Impressão (Conto) Anterior Uma leitura do livro A Janela de Matisse de Ângela de Almeida Seguinte

O homem sem coração

Um homem desperta. Um homem ergue-se e vê-se reflectido nas paredes de vidro que aquecem o ninho onde se rasgou em parto.
Um homem acorda da gestação encomendada. Um homem resolveu parir-se outra vez.
Toda a gente deveria ter a hipótese de se gerar de novo, como uma serpente que larga os véus e se reinventa no tempo, roçando o ventre pelo vértice das pedras.
Assim, o homem abriu os olhos ensanguentados e olhou o mundo pela segunda vez. Olhou-o como Caeiro quando inventou o girassol na inocência do olhar. Olhou-o como fita de filme em branco, como virgem à espera do primeiro sémen.
Tinha varrido da memória a infância povoada de corvos e cantos escuros, de lendas tenebrosas vestidas de anjos. Aventada a adolescência da barba por crescer, da inquietação, da masturbação, da rejeição, do medo.
Hibernou no próprio corpo, lua após lua, numa caverna onde não entraram as asas dos arcanjos, nem a vontade dos cometas. Reinventou-se como crisálida, músculos duros e vivos e sangue impoluto, correndo nas artérias desimpedidas de paixões.
Nasceu já crescido e formado com tudo o que era preciso para ser feliz. “Clean” e transparente, sem coração de gente.
No quarto branco e seco onde renasce, há pessoas de largos sorrisos de gato Cheshire que tentam abraçá-lo. Vestidas de areáceas como se vivessem de chuva. Gesticulam, dançam, quais criaturas etéreas, pulam, tocam-se com as mãos e com as bocas. São imperceptíveis as palavras para o recém-nascido. Incompreensíveis na derme, epiderme, tecido mole, ossos, onde se instalaram rouxinóis mudos às emoções.
Chegam até ele e esfregam-se. Abrem os dedos em leque e investigam-lhe a carne. Enlaçam-se os odores, apertam-se.
Desapartam-se à sua estranheza. Não sabe o que fazer. Quer apenas viver o sol e acolher a noite, a vida como figura desenhada num quadro intemporal, depurada e plana.
O toque das pessoas acende-lhe interrogações cujas respostas não inscreveu no seu ADN. Turva-lhe o olhar, que queria límpido e sereno. Indolor.
De súbito nasce a constatação do silêncio, da nudez das veias descoloridas. Da incompletude. A nítida premência das quedas que dobrem a arrogância dos ossos, o manto de dor que justifique a dança dos corpos. E a compaixão.
Dá conta de que os braços lhe são inúteis.

*-*-*

A saia com girassóis

Volta ela, a inquieta voz, visto a saia do dia, preta com girassóis plantados, aqui e ali, no tecido meio ruço. Gostavas daquela saia, me dizias, a desenhar-me o redondo da anca. Com os olhos mo dizias, com os olhos.
Ai, a seda dos teus olhos e o teu corpo que não se gasta na minha saudade!
Procuro-te, na voz da inquietação, aqui, ali, nos largos, nas esquinas, na areia, em casa, na panela da sopa, nos vasos pendurados no alpendre, nos cantos onde o pó se acumula, entre os móveis ou na curva difícil do fumo do cigarro.
O tempo que não tem retorno, a vida que não se vira, os dias certos, levanta, escova os dentes, escova a vontade de entrar em mais uma volta, mais uma viagem, oiço a vizinha, está quente e é inverno, é verão e não faz calor, pois é, pois é…
Estende-se a conversa ao sol, no varal onde se penduram também as tuas mãos que a minha cintura reclama, onde andas, onde andas?
Onde ficaste perdido, onde fiquei eu e essa menina que fazia vestidos das folhas do castanheiro e das pedrinhas, tachos? E nós, onde? Onde as utopias na tua camisa branca adejando ao vento?
O tempo tudo cura, dizem, e eu repito, em mentira piedosa. A casa e a roupa para lavar e a ferida que arde ainda e sempre e faz regos na alma, a garrafa, o copo da cerveja, um, outro, outro, a procura do abraço, um e outro e outro..
Ai a dor que não se cala!
Ai, o tempo, aos quadradinhos, o teu sorriso irónico e quente, no meio a fome desmedida, da vida, no casco do barco e no pescoço da garça, onde se prende o pensamento e o olhar voa.
Onde tu, onde?

*-*-*


Anterior Seguinte

keyboard_arrow_up