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 Última Impressão (Conto)
Por Ernesto Rodrigues Publicado em Contos, Literatura, Portugal a 17 de Dezembro, 2024 481 palavras
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ÚLTIMA IMPRESSÃO

Tinha uma rara colecção de impressões digitais. O médico, após exame demorado, alertou-o para o insólito museu que guardava num estômago sensível.
– Belos grafittis! – comentou.
As mais recentes viam-se, sem esforço, à flor do microscópio, inundando paredes – manchadas, algumas, por dever de ofício ou falta de água. Há impressões que não se apagam, nem com álcool.
O paciente estava abismado.
– Vai muito a restaurantes, não?
– Sim. Não como em casa.
– Veja. As suas, que se repetem, mal se vêem.
– Quase não toco em nada.
– Toca. Mas tão ao de leve… Esta, mais viva, sabe de quem é?
– Não faço ideia.
– Onde almoça?
– Por aí…
– Alguém lhe serviu torradas.
– Como adivinhou?
– Percebe-se uma sombra de gordura.
– É mau?
– Tanta manteiga, sim. Ainda vai rebentar. Se prestasse atenção, fazia uma singular visita guiada até aos dedos de seus donos, alguns dos quais nem estarão no arquivo nacional de identidade. Quer ser útil à polícia?
– No futuro, talvez.
Saiu intrigado do consultório. Este médico brincava.
Tinha um estômago sensível; doía-lhe, às vezes, a meio das refeições, e passava. Talvez fossem impressões grosseiras que o desassossegavam.
No dia seguinte, foi, em jejum, a uma clínica privada.
– Tem alguém conhecido na Polícia Científica?
– Não, não tenho.
– Mas pode fazer queixa. Estão a matá-lo lentamente. Observe com atenção.
As impressões mais vivas, sobrepondo-se, criavam crosta; outras, falhas de resistência, pareciam esfoladas, debruando tristemente secções da parede. Era um mapa desagradável.
– Quase podia computar o número de vezes que foi atendido por empregados negligentes. Com a radiografia de cada uma, e apoio no sistema nacional de identificação, justificava-se fazer algumas queixas. Era uma limpeza. Com pedidos de indemnização, saía rico.
– Não sei… Sinto uma pressão…
– É um risco. Deixe apurar o seu retrato. Pode esperar lá fora.
Como a fome apertasse, dirigiu-se à máquina: escolheu um chocolate, meteu a moeda e ele deslizou, no seu papel macio. Cuidadoso, rasgou-o e meteu-o todo na boca, sem lhe tocar.
Foi, entretanto, chamado.
– Tão depressa, senhor doutor?
– Tire a camisa, por favor. Preciso de melhorar a fotografia.
Não demorou que, diante da chapa, um olhar treinado recuasse.
– Há aqui uma fresca…
– Só se veio no chocolate que comi agora.
Ligou um número; veio enfermeira.
– Desliguem as máquinas de auto-serviço na sala de espera.
Saída, o paciente inquiriu:
– Estou em perigo de vida?
– A última impressão é sempre a melhor. Será um benfeitor da humanidade. Com licença.
O médico saiu, nervoso. Ouviu-se, entretanto, uma explosão, e dedadas decoravam a parede branca do consultório – vítima, diria a Imprensa, de homicídio por negligência.

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