ADEPTO DA BISCA Jecas era um fiel adepto da bisca, sempre ansioso pelas jogatanas de sexta-feira no salão do clube desportivo. Há dois anos que as apostas eram a feijões, mas naquela noite o grupo reunira-se na sua cave e alguém puxou de uma nota de cinquenta. Os ânimos alteraram-se. Desviando o cabelo da frente […]
ÚLTIMA IMPRESSÃO Tinha uma rara colecção de impressões digitais. O médico, após exame demorado, alertou-o para o insólito museu que guardava num estômago sensível.– Belos grafittis! – comentou.As mais recentes viam-se, sem esforço, à flor do microscópio, inundando paredes – manchadas, algumas, por dever de ofício ou falta de água. Há impressões que não se […]
Conto e Prosa Poética Portugueses
O homem sem coração Um homem desperta. Um homem ergue-se e vê-se reflectido nas paredes de vidro que aquecem o ninho onde se rasgou em parto. Um homem acorda da gestação encomendada. Um homem resolveu parir-se outra vez. Toda a gente deveria ter a hipótese de se gerar de novo, como uma serpente que larga […]
dos prazeres asiáticos (Conto)
dos prazeres asiáticos Adoro as pernas das chinesas. Fico deslumbrado quando olho as pernas delas, alvas, sem um grama de gordura, uma veia saliente. A carne quase incorpórea, impercetível. Corpos para contemplar, como ténues esculturas animadas. Novas, velhas, de meia idade, sempre delgadas, vaporosas. Vou rua fora atrás delas e fotografo-as. Pego no telemóvel disfarçadamente […]
Caderno de Exercícios (Contos)
CADERNO DE EXERCÍCIOS Exercício 1 – Errâncias Cesar Asir, obeso e largo, procurava asilo em casa de Ivo Mua, o arquitecto da moda, no País. Era um pequeno retiro no Amial, com um anexo que mais parecia uma cabina, um curral. Ficava no pátio. Um pátio, que dava para as traseiras da casa-mãe, mas dentro […]
O Leão e o Caracol I. Não se parece com Amis Kopf, atirou-me a pequena alma. Tem toda a razão. Ninguém se parece. E em boa verdade ninguém é Amis Kopf, não realmente, nem mesmo eu. Muito fiz por isso, acredite. Amis Kopf é ninguém. Mas se fosse alguém, garanto-lhe, seria eu. E, se me […]
A resolução de morrer Rather than words comes the thought of high windows Philip Larkin A vida era uma substância ácida, segundo alguns indicadores. No horizonte formava-se já a recordação da chuva que ainda não tinha caído. Nuvens baixas, densas, carregadas de uma imperturbável e escura nostalgia, assaltavam os céus. Quando abri a janela, vi […]
AVENIDA DA LIBERDADE -E tu, como te chamas? -Eu? -Sim, como te chamas? -Avenida da Liberdade. -Mas isso é um lugar. Tu, como te chamas? – Avenida da Liberdade! – És um lugar? -Está ali escrito, não vês? “Avenida da Liberdade”. -Sim, mas tu, tu mesmo, como te chamas? Ninguém é um lugar… -Eu posso […]
Penas Verdes em Tempos e Ventos de Guerra (Conto)
Conto XIX – Penas Verdes em Tempos e Ventos de Guerra Na minha casa, ao fundo do quintal, há um muro cinzento que corta a vista para o quintal das traseiras da casa do vizinho. Mas a cinquenta metros para lá do muro já se consegue ver as janelas do primeiro andar, da água furtada […]
Do tempo Pedes-me que te fale do tempo, indico-te a cadeira de costura baixa da biblioteca e rogo-te que se sentes.É uma cadeira de pernas curtas que outrora serviu para os serões de costura da minha avó. Guardo ainda, na única gaveta, minúscula, um carro de linhas que hesito em usar. Sinto que o facto […]
O almoço O disco do fogão inflamou-se ao rubro sem que ela conseguisse de lá tirar olhos. Conseguiria tirar a mão? Pensou, não tendo coragem para mais. Uma placa negra onde a circunferência vermelha ganha vida. Cobriu-a com a frigideira onde uma colher de manteiga aguardava serena, não sabendo ao que vai, arrancada do pacote […]
Só de pensar nela — Volta-te para mim — pediu ela. Ele girou na cama, tomando consciência do colchão duro, dos lençóis leves, do corpo pesado, o seu, subitamente desperto e consciente do outro corpo ao seu lado. — Abraça-me — pediu ela. Tinha uma voz rouca e falava muito baixo. Cheirava a animal marinho. […]
Três objetivos de um escritor (conto)
Três objectivos de um escritor Confesso-vos que o meu primeiro objectivo como escritor foi melhorar o meu tipo de letra, e essa secreta intenção de imitar uma escritora famosa cujo tipo de letra invejava. Em parte, alcancei-o sem nunca me libertar, desde logo, de um ligeiro traço de infância na minha escrita, uma irregular tendência […]
Notas sobre Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Szymborska (Ensaio)
PERGUNTA, LENTIDÃO E DIFERENÇA: Algumas notas sobre Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Wislawa Szymborska Uma poética que vai tão radicalmente ao fundo como a de Carlos Drummond de Andrade, é invariavelmente uma poética do risco, na dupla aceção da palavra, que enfrenta um perigo, mas que também o é a de um traço […]
Não importa se Deus existe ou não, mas como ele goza. Jacques Lacan […]
Asas Devoradas por Hienas (Conto)
A escassa argúcia dos antepassados não se revelava nas atitudes, pensamentos e vontades de Domitila. Por oposição ao pai, ateu sem qualquer temor a Deus, Domitila desde pequena encontrara na religião o melhor formato onde deter medos e inseguranças surgidas na escuridão da infância. Estabelecera entre a alma e o Céu um caminho eterno a […]
As cinco horas da manhã não são propriamente o momento ideal para recebermos visitas ou, ainda mais estranho, para que se nos depare um forasteiro cirandando ao longo do corredor, contudo, depois de ter espreitado pela porta do meu quarto, foi com esta última alternativa que me deparei. Um homem, com mais de sessenta anos, […]
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