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Uma leitura do livro A Janela de Matisse de Ângela de Almeida
Por Filipa Vera Jardim Publicado em Literatura, Portugal, Recensões a 30 de Novembro, 2024 884 palavras
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Uma leitura de “A janela de Matisse” de Ângela de Almeida, editada pela Nona Poesia, 2024

Bem vindos a esta viajem!

Na primeira parte do livro deparamo-nos, efectivamente, com uma viagem quase sempre solitária e algumas vezes acompanhada de memórias. Uma viagem onde os três elementos estão presentes : a terra, palco de todas as expectativas, o mar que nos amortalha, que nos envolve, nos revolve e, simultaneamente nos impulsiona e o ar, a suprema liberalidade de quem se veste de asas.

Preparem-se pois para a escalada das encostas e o desencanto dos passos, para a persistência da cadência das ondas e para o abraço firme do ar. A terra, essa, será sempre o lugar de algumas respostas e outras tantas perguntas. Haja esperança e havemos de “regressar ao campo acesso da voz para dizer-te há um jardim a crescer lá fora”.

É assim esta janela de Matisse”, um espaço de interioridade e, simultaneamente, essa lonjura que se faz, apesar de tudo, de expectativa e de asas.

Encontra-se o leitor face com uma aquosidade omnipresente e inerente aos caminhos da nossa intrínseca humanidade. Uma massa de água compacta e pesada, ora mar revolto e incerto, morada de uma respiração salgada primordial, um mar que é “casa líquida” e nos faz recordar a cada onda ” a miséria humana no convés da noite bebendo o sangue de uma navio destroçado”, ora o rio amainado, feito de caminhos de abraços entre a nascente e a foz.

Não nos deixa escolha a autora. Não no presente ”do que à janela se anuncia”, é preciso partir! Partir com urgência e as vezes que forem precisas, nos tropeços das lembranças, com ”todas as horas emersas na jornada”. Partir à sombra de Ulisses levando por companhia “toda a desolação a esmagar o verso no caminho /até ao romper do poma na manhã entregue / à mais absurda rendição das águas”

Há um escorrer permanente de água, de rios, de lágrimas, de mares que envolvem as palavras e que se nos transbordam, enquanto leitores, numa liquidez ora transparente, ora envolta em neblina que nos envolve, nos transporta e nos torna criaturas vestidas de gente de cada vez que os pássaros, acima deste ”mar exilado” nos lembram, em uníssono, da vastidão e do espaço.

Galga-se assim o impossível, nesse longor de Odisseia para se receber a memória do que fomos, numa permanente jornada.

Não fossem os rios e nunca saberíamos como “escalar o sal”.

“Seguimos adiados” pois, numa cadência de ondas onde a seara se faz água, onde a cidade se amanhece vertida em lágrimas, onde a água alameda de memórias, ” do

tardio regresso à morada dos olhos”, se espraia em ondas e sinuosidades de rios.

Depois há os olhos que se podem ver e, aqueles que se adivinham. E há também os voos, os espantos e os pássaros em permanente fusão com o ar que se respira em espaço e imensidão, muito para lá desta dimensão última ”das palavras escritas com sal”.

Há um desencanto, sim, a travessar estes poemas. Uma ventura sussurrada a cada onda mas há igualmente peixes que embebidos em esperança e, apesar do ”martírio” e da ”mais absurda rendição das águas”, se dispõem ainda a lançar-se na imensidão do ar.

Sé é certo que “nenhuma mar sobrevive ao deserto da comoção” , também nos apercebemos que será o ar a última fronteira, a estrada que nos permite ”escalar o sal da inquietação lançando a música das ervas nas asas do poema até ao céu da palavra, sílaba a sílaba”.

Deixem-se pois submergir pela imensidão das águas e nas palavras da Ângela de Almeida! Enrolem-se no desconsolo das ondas e, depois, abram os braços e tornem-se pássaros. É de asas que se faz o futuro! Há caminho pois, e haverá sempre caminho e uma janela aberta de Matisse!

A segunda parte deste livro Traz-nos de volta à casa. A terra chão, a noite, os campos lavrados, ”a seara que semeámos em cada adeus”, ”o licor de alfazema/para regar as manhãs de rubis”.

As magnólias, as árvores, o corpo, a claridade, o silêncio, a tranquilidade do que nos acontece entre a alvorada e a vigília, os espaços e o tempo, a cadência do silêncio, a espera, a esperança. ” Hás de voltar à planície/da pulsação solar/quando as horas forem os rios/da nossa alvorada”.

Uma chamada ainda de atenção para a capa deste livro. Da autoria de Henrique Levy esta imensa janela explosiva de cor a que se juntou um pássaro enorme de um lado que se quer aberto, remete-nos para a dicotomia entre interioridade e espaço, entre interioridade e luz que perpassam pela poesia de Ângela de Almeida e da pintura de Matisse.

A ponte entre o mundo interior e ”toda a circunstância da viagem rasgando a solidão do verso”, está expressa nesta essência do instante que nos convida à exploração do espaço para lá da janela no mais puro fauvismo.

Um livro precioso!


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