Ruy Belo, leitor de longe: algumas proposições sobre poesia brasileira
Hugo Milhanas Machado
“Aborreço os poetas que se lembram da nacionalidade quando fazem versos”
MANUEL BANDEIRA
Ao seu décimo quinto número, e por ocasião da dupla efeméride assinalada sobre as datas do nascimento e da morte do poeta português Ruy Belo (1933 e 1978, respectivamente) a revista luso-brasileira de poesia Inimigo Rumor – nº15, 2º semestre de 2003 – publicava em forma de fac-símile um texto inédito do poeta. Cumprido o arco de mais de duas décadas sobre este momento editorial, apetece ainda sublinhar que, apesar de descartado pelo autor naquela eventual circunstância de publicação, o manuscrito, de lavra e foro privados, não se encontra isento de ressonâncias verdadeiramente fundamentais para uma aproximação ao entendimento do plano, diríamos, composicional e paisagístico, da obra do autor de Aquele Grande Rio Eufrates e de outros oito livros de poemas depois deste publicados, eixos gravitacionais, como é sabido, de uma das mais potentes viagens da poesia portuguesa do século passado e de todos os séculos. Com transcrição diplomática da responsabilidade de Pedro Serra, o texto até então inédito informa de modo estimulante, no seu sigilo de iniciativa abandonada, qualquer ponderação sobre os gestos de Ruy Belo para efeitos de organização em livro de poemas de segunda metade da década de sessenta, baliza temporal povoada por dois volumes de poesia da mais alta temperatura (o recurso, é de calcular, pedimo-lo emprestado ao poeta): a recolha Boca Bilingue, publicada em 1966 sob chancela Edições Ática, e Homem de Palavra[s], em 1969, nas Publicações Dom Quixote. Fecha este livro de poemas e a década de poemas e livros de poemas o conhecido “Cólofon ou epitáfio”, na sequência da série de poemas em prosa de “Imagens vindas dos dias”, onde Ruy Belo diz, de modo lapidar e não menos ponderoso, de um “ruy belo portugalês”, esse nome que no remate do poema já se diz “ruy belo, era uma vez”, inversão brutal e definitiva – a fechar o pano sobre o livro de poemas do autor com este nome, Ruy Belo, livro de – inversão pura, dizíamos, do lance narrativo. Tomemo-lo como disposição de efeito de sintaxe temporal, bem entendido, como que aplicando a impressão de efectivo transporte de tempo, “era uma vez”, que mais tarde se formalizará noutra deriva preposicional e já em sede de título de livro: “transporte no tempo”, no livro homónimo, publicado em 1973. Aqui acabam os poemas de Ruy Belo, aqui começam os poemas de Ruy Belo: a cortina do livro enquanto forma concretiza em nome – título de livro – os momentos desse tempo de poesia “era uma vez”. E justamente em matéria de regiões, recordemos o tom de um Ruy Belo que em alguns dos seus versos à palavra pátria (“portugalesa”) preferiria a forma mais relaxada da palavra país, e o país extensão da palavra país cifrado também ele em letra minúscula, solução que marcará de forma definitiva a poesia editada após a viragem entre a década de sessenta e a seguinte: “o meu país é o que o mar não quer”, diz em “Morte ao meio-dia”.
Tendo com toda a segurança sido escrito no período compreendido entre o Natal de 1968 (no qual, categoriza o poeta, “desatei a escrever”) e o mês de Fevereiro de 1969 (quando cumpriria o trigésimo – sexto aniversário, e isto tendo em conta a informação lançada no texto de que “tenho 35 anos”), o inédito de Ruy Belo reportar-se-ia a uma muito provável primeira versão de Homem de Palavra[s] – que, a ver pelo registo prefacial nele empregue, viria eventualmente a acompanhar em edição de livro – volume presumivelmente mais breve do que aquele que daria a prelo em 1969 e por fim publicado em 1970 (“O livro, como aí vai, não é comprido”, escreve Ruy Belo neste mesmo texto). Note-se, desde logo, o tom do discurso, apostado de forma séria na consumação em forma de para-texto do livro de poemas a publicar. Esta edição, a de Homem de Palavra[s], no entanto, e como se sabe, não ostentaria qualquer nota de apresentação nem quaisquer para-textos de semelhante natureza, à excepção de um considerável apontamento biobibliográfico, oportunamente mais exaustivo que as notas adjuntas aos livros de poemas anteriores, sintoma do esforço de mapeamento da obra que se tornará claro no romper da década de setenta e que a publicação de poemas em forma de antologia ou reedições de livros anteriores virá reforçar. Do mesmo modo, e insistindo na arqueologia do texto apagado, tenhamos igualmente em conta que a longa nota prefacial à segunda edição de Homem de Palavra[s] (“De como um poeta acha não se haver desencontrado com a publicação deste livro – explicação preliminar à sua segunda edição”), publicada em 1978, nada aproveitará deste manuscrito. A dispensa, à luz de arco temporal cujos topos praticamente tocam o fecho de duas décadas, é perfeitamente expectável: a presença do texto imaginado e negociado numa primeira fase da gestão de Homem de Palavra[s] é necessariamente enfraquecida na sequência de livros que nesse intervalo vieram habitar o elenco de formas e nomes do autor de Rio Maior e transformar, portanto, os modos de instalação da sua obra. Eis, pois, um texto pensado ao lado de um livro que lhe viria a sobreviver, livro sem comentário; no outro extremo do lance, este mesmo livro em lugar de reedição a que se vem juntar, agora sim, um novo texto de regime “explicativo”. Em suma, e apesar do intervalo de tempo entre ambas as edições, sublinhe-se a necessidade de comentário percebida em Homem de Palavra[s]. Uma língua para as palavras do homem, queremos dizer, era uma vez o livro de que quero – ou queria – dizer.
Muito embora o grosso do texto abandonado de Ruy Belo não transitasse para formas futuras de edição, é, no entanto, possível sondar diversas disseminações desse material, distribuídas de forma muito precisa e dispersa em segmentos posteriores dos seus livros, isto é, a bem dizer, da sua obra em curso. Note-se, a título de exemplo, francamente significativo, a transcrição quase textual do trecho respeitante à revolta sentida perante a morte de Lourenço S. Roque, “um pescador de 15 anos, morto numa manhã de sol sem nenhuma nuvem […] a 6 de janeiro de 1965”, na dedicatória de País Possível, a antologia pessoal editada em 1973, onde se lê: “À memória do jovem pescador Lourenço São Miguel, morto sob um céu sem uma nuvem de começos de Janeiro de 1965, quando o seu barco camaroeiro embateu numa língua de areia (…)”, prosseguindo com a inevitável alusão aos “desconhecidos mortos por nós no mar”, luto a que tantas vezes, e de forma tão sentida, se inclinou na sua poesia. De Lourenço S. Roque a Lourenção São Miguel, isto é, de finais de 1968 ou quando muito Fevereiro de 1969 a Maio de 1973 (data registada na “Nota de autor” ao livro), a imprecisão no apelido, ou mero equívoco do também célebre mergulhador Zindo, companheiro de pensão em tempos de solteiro nesse lugar onde chamado Vila do Conde. Em ambas as situações, e confirmando a casuística, texto determinado no horizonte lateral ao livro, em sede de para-texto, sequências instigantes de acessos verbais ao respectivo volume de poemas. Neste mesmo sentido, recorde-se que a antologia País Possível republica treze poemas de Homem de Palavra[s], desdobramento que nos permite aceitar uma hipótese de alargamento da impressão verbal deste último volume sobre a antologia posterior, estrutura de poemas arrastada de um volume a outro, modo de falar contínuo.
Descrita em traços amplos a situação deste interessante texto inédito de Ruy Belo, importa-nos nesta breve interpelação sondar o valor e significação de uma passagem muito concreta do escrito em questão, momento que pela natureza do documento diríamos sujeito a um duplo apagamento de evidência, a bem dizer, palimpséstica. Com efeito, referimo-nos a um trecho que o próprio poeta terá rasurado quando escrito (ou, convenhamos, em estância sempre posterior à escritura; a rasura é, diga-se de passagem, de traço firme, preciso): o fac-símile publicado na revista Inimigo Rumor permite observar com nitidez a limpeza do corte. Disputando-se a leitura nestes termos, e para efeitos de colocação crítica, importa rastrear as extensões semânticas de um gesto desta natureza: marcas de leitura e reorganização do escrito, rasura, texto rejeitado em forma de risco, imprecisão, emenda, rectificação. Suponhamos, a bem da leitura, a utilidade deste quadro de referências. Entre a massa de material assinalado pelo autor em evidência de supressão, uma sequência vai merecer-nos mais demorado cuidado. O parágrafo entretanto mutilado é proposto nos seguintes termos: “Considero urgente a publicação deste livro, numa altura em que se joga o futuro da poesia de língua portuguesa. Não é que eu pretenda ser um mestre ou exercer influências. Pretendo simplesmente estar presente, com a minha crença no poder das palavras, apesar de tudo. Tenho 35 anos e cheguei a pensar que a poesia morrera. E ela efectivamente morreu, levada por onde a levaram alguns. Um novo parnasianismo se apoderou das nossas letras. A nossa tradição temos de ir buscá-la ao modernismo. E os poetas modernos são poucos. Ou, por outras palavras, o que é o mesmo: os poetas são poucos.”1 E diz – ou diria – então, sob a rasura, prestando-se a identificar um corpus dessa (“pouca”) pretensa tradição de poesia moderna: “Cito, além de Pessoa, alguns. Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima. Brasileiros, sim. Peço desculpa, mas não distingo. E embora admire muito João Cabral de Melo Neto, não o cito. João Cabral é um contra-revolucionário.”2 E prosseguiria ainda, no segmento truncado: “Em Portugal, a Sophia, o António Ramos Rosa, o Herberto Helder parecem-me poetas do presente e do futuro.”3 Pede desculpa, que não distingue, diz Ruy Belo. Ora, que o poeta, segundo um princípio de potência poética, convoque a prioridade da língua sobre a nacionalidade, constituindo aquela o perímetro que lhe interessa, não é – dizíamos – novidade, e para atestá-lo bastaria o cotejo do argumento nas três entrevistas que abrem Na Senda da Poesia (1969) – onde, a título de exemplo, aduz a inclinação a tomar por sua a célebre sentença de Pessoa/Soares (“A minha pátria é a língua portuguesa”) – ou alguma das (posteriores) notas prefaciais às segundas edições de Aquele Grande Rio Eufrates (1972) ou Homem de Palavras, onde o argumento de alguma forma é reiterado, sempre na esteira de uma aversão a pátrias e nacionalidades ou – como diria no “Breve programa para uma iniciação ao canto” – à “conivência com a ordem, qualquer ordem estabelecida” que se imponha sobre o livre dizer da poesia. De que situe em casa afim, portanto (e em língua portuguesa, naturalmente – a deste espaço), poetas portugueses e brasileiros, não advém estranheza, considerando, pois, este argumento de traço genesíaco, fundado na língua e na poesia. Já a rasura sobre papel deste raciocínio implica certa precaução, na medida em que, se parece indiciar uma momentânea e sensível falta de solidariedade com o argumento, veicula nessa mesma incerteza a crise habitacional de um sistema (de uma casa, aporíamos) que tenciona decifrar como a herança de uma memória lírica moderna de língua portuguesa, que o poeta ponderará, e assinale-se, como questão de poemas, e não de poetas: estes tendem a ocupar a casa, as casas, aqueles constituem-nas. Em instância última, e merecendo aqui a maior atenção, de novo interessada no gesto de apagamento, ficam a dúvida e o problema desta possibilidade de habitação, a que a seguinte passagem de um texto de Abril de 1967 (anterior, portanto, àquele que aqui se considera), “Manuel Bandeira em verso e prosa”, que convocamos de Na Senda da Poesia, não deixa de submeter importante subsídio, nas suas conotações de âmbitos cultural e social: “A língua falada em Portugal e no Brasil é reconhecidamente a mesma, apesar da diversidade de estilos, mas as literaturas, reflectindo meios e recursos muito diferentes, teriam forçosamente de se afastar uma da outra. Esse progressivo afastamento, operado como é natural mais por iniciativa da gente do Brasil, já vem de longe.”4 Experiência de afastamento, a das literaturas de Portugal e do Brasil, gestada na ressaca de “meios e recursos muito diferentes”, símile de condições sociais de país também elas díspares, muito embora a raiz falante preservada como elemento comum: a língua portuguesa. Afastamento na impressão de espaço, o destas literaturas de longe, qualquer uma delas, e, no entanto, episódios desiguais de uma matriz de calibre ou domínio comum, como se no fundo dessas literaturas desirmanadas em forma de território ou alcance de relação se mantivesse palpitando a semelhança da “língua falada”.
Ora, consideraríamos manifesto o interesse de Ruy Belo pela poesia brasileira e o conhecimento profundo de suas tensões modernas e vectores de uma memória poética sintagmatizada em tradição, demonstrável desde logo pela consistência das leituras presentes em vários dos ensaios coligidos em Na Senda da Poesia. Cabe destacar o amplo interesse, atrás indiciado, na obra de Manuel Bandeira, a que dedica dois dos ensaios aí editados – concretamente, “Manuel Bandeira ou como um Poeta se Faz” e “Manuel Bandeira em Verso e Prosa” –, por ocasião dos 80.º e 81.º aniversários do autor de “Os Sapos”, que nunca chegou a conhecer e cujo falecimento lhe merecerá o poema “In Memoriam” – em nome, igualmente, do falecido Cristovam Pavia: “Na irmã morte viva a poesia: / Viva bandeira viva pavia”, dirá. No mesmo sentido, não poucos dos seus poemas se constituem como casa de convívio com referentes de significante brasileiro, sejam eles poetas, artistas, lugares, meras imagens, dispositivos de instigante diálogo com os versos deste poeta em português. Convocamos, e em clave de franca homenagem, dois notáveis versos do poema “Óscar Niemeyer”, de Toda a Terra (1976), terceiro poema da secção significativamente intitulada, como se sabe, e em recorte peninsular, “Areias de Portugal”: “O homem de fala medida e breve que fez falar o betão e o fez articular o nome brasília / num céu que outrora apenas cobria um silêncio de selva e sertão”. Apetece ponderar esta areia de Portugal, na extensão litoral das profundas e encarnadas terras de Espanha, as outras “terras” do livro, como que bebendo do Atlântico um lençol de água de que o arquitecto, no seu Brasil, igualmente se cobre. Numa verdadeira política da curva, por sobre o mar (parafraseando Fernão Mendes Pinto cantado por Fausto), a língua portuguesa. Como sobre o mar viajaria igualmente o amigo brasileiro Sérgio Pachá, que visitando Lisboa foi ver a estátua de Camões e “ao ir-se embora, lhe deixou uma flor junto do túmulo, nos Jerónimos”. Tudo isto nos conta Ruy Belo. Sérgio Pachá, autor do poema “Morte em Lisboa”, a que Ruy Belo prestará tributo em texto publicado no número 5 de Ao Km Zero, de 22 de Março de 1969, depois incluído em Na Senda da Poesia, do qual extraímos o seguinte remate: “Creio que a realidade, neste poema, triunfa do sujeito e dessa maneira ele poderá dizer a muitas pessoas o que me disse a mim e ao grupo restrito de amigos que o conhecem. Se o não disser, talvez seja porque a poesia é um problema de uma minoria, Como tudo, aliás. Para só falarmos de Portugal, como o futebol, Fátima, o fado.”5
Interessando-nos, pois, considerar esta disposição atenta e comprometida de Ruy Belo leitor de poetas brasileiros, de poetas, portanto, em sua mesma língua, a de Camões e do muito admirado José Lins do Rego, “romancista do fracasso, onde tudo acaba mal”6, e posto que é da perspectiva do ofício que o poeta de São João da Ribeira os dispõe sobre a mesa, constitui gesto de situação despejar desde já o poeta da sua nacionalidade, na senda, aliás, do fastio da declaração de Manuel Bandeira, aqui convocada em lugar de como epígrafe, que o próprio poeta em dado momento lembrará: como poesia em língua portuguesa que se quer de presente e futuro, a de Ruy Belo caminha, se não em praia mesma, ao lado do passo das poesias modernas brasileiras (as do citado Bandeira, de Drummond, de Jorge de Lima, e João Cabral), nelas convergindo como signos de salvaguarda de um futuro, como atrás vimos, da poesia, de que se quer habitante: ou, corrigimos, fazer de seus poemas um participar nessa e dessa constelação moderna que vai constituindo o moderno dizer e cantar em língua portuguesa. Nesse mesmo sentido se posicionaria Ruy Belo ao considerar neste abandonado manuscrito urgente “a publicação deste livro [Homem de Palavra[s], acrescentamos], numa altura em que se joga o futuro da poesia de língua portuguesa.” A urgência do poeta a propósito da edição em forma de livro dos seus poemas, sintoma aliás não raro na sua trajectória poética (recordemos, por exemplo, uma conhecida carta endereçada de Madrid a Gastão Cruz em 1971, logo no início da sua estância na capital espanhola), trazendo à época já três colectâneas na bagagem, é a de uma afirmação de princípios, ante tudo, com sede na palavra publicada. Um compromisso que se consubstancia no inequívoco poder de um título como Homem de Palavra[s], que, de forma não menos significativa, seria, à data, o primeiro dos seus livros aos quais apostaria um prefácio, sinalizando sem dúvida um forte gesto autoral sobre o livro. Uma intenção, entretanto, pois, não concretizada, mas que a considerável presença biobibliográfica de certa forma visaria colmatar, de modo a reafirmar o interesse de localização da obra: livros publicados, locais de publicação, títulos de colecções integradas por esses livros, projectos em curso: eis a obra agora, como aqui chega e como neste presente, em final de década, se reorganiza apontada ao futuro. Neste mesmo sentido, pensado no horizonte semântico do livro, fecundo título, este Homem de Palavra[s], do qual dissera, em entrevista a Maria Teresa Horta publicada em 18 de Setembro de 1968 no suplemento literário do jornal A Capital, depois recuperada para Na Senda da Poesia, perguntado pela publicação próxima de algum livro: “Chama-se Homem de Palavra[s]. Assim mesmo, com parêntesis recto. Para dar a ambiguidade indispensável. ‘Dar o dito por não dito’, escrevi eu não sei onde”7. Com efeito, justo efeito, estranheza e ambiguidade aquelas que igualmente ponderamos na sequência de apagamentos a que hoje dedicamos alguma atenção: se é significativa a rasura a que atrás aludimos, sem dúvida problemática de um ponto de vista crítico, aquele que o pretenderia situar numa pretensa e desejada memória poética, não cabe por outro lado dúvida num aspecto essencial: se Ruy Belo nunca publicou este texto, não é menos válido considerar que, contudo, o manteve em linha de vista, conservando sob as palavras rasuradas um interesse de significação mais adiante repercutido noutros lugares dos seus escritos. Vide a transcrição à dedicatória de País Possível, atrás mencionada, como marca desse regresso em segunda mão ao texto antes hipotecado. Como, da mesma forma, nunca abandonará essa íntima primazia da língua e das gentes da língua sobre qualquer designação nacional de ordem política, num país que, recordemos, o obrigou, por exclusão, a partir para Madrid em 1971 para ocupar o posto de Leitor na Universidad Complutense local, vista a impossibilidade de aceder a um lugar de docente na Faculdade de Letras de Lisboa, que voltaria a tentar em Agosto de 1978, não fosse a prematura morte que o colheu ao oitavo dia desse mês. País possível aquele que a 10 de Junho de 1991, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, o viria a condecorar com o grau de Grande Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada. Homem de Palavra[s], portanto, título de livro votado ao equívoco, à “ambiguidade indispensável”, mas sem dúvida homem muito mais das ou, nas palavras, que de palavra. De resto, apetece lembrar, a propósito desta legenda concedida na apresentação do nome do poeta público, um excerto da citada entrevista a Maria Teresa Horta. Diz Ruy Belo: “Sabe que sou escafandrista de terceira classe? Tenho lá em casa uma fotografia com fato de borracha e tudo. Vou-lha mandar para publicar em vez dessa que lá têm. É mais verdadeira”8.
Ora, lemos antes, escutamos antes, tendo Ruy Belo traçado o elenco destes modernos poetas da língua que em poema diz ou pode matizar como portugalesa, como ele também, o poeta portugalês de “Cólofon ou epitáfio”: “Brasileiros, sim. Peço desculpa, mas não distingo.” Não distingue, como continuará, inédito ou não, a não distinguir. O fenómeno de rasura, dupla obliteração de um argumento remetido ao apagamento em texto, não inviabiliza a saúde da postura, aliás reforçada no modo de se fazer língua intuído nos poemas de Ruy Belo. Na sua poesia moram, em casas contíguas, as mesmas palavras que em palavras parecidas, palavras irmãs, armam também as poesias dos poemas de Jorge de Lima, de Drummond, de Manuel Bandeira ou as palavras de “Morte em Lisboa” do amigo brasileiro Sérgio Pachá, esse amigo brasileiro que “via Portugal pelos olhos de Camões”9. E essas palavras são portuguesas, não de Portugal nem do Brasil, sim signos de uma língua com gente, muita gente dentro. Pedia desculpa, que não distinguia, que gostava de ter dito aquilo que disse Pessoa, já se sabe, por entreposta voz de Bernardo Soares, ocorrência genial e com o tamanho de séculos de cultura e dos mais honestos patrimónios a tomar por bandeira. Nestes mesmos termos, e segundo palavras de Vítor Aguiar e Silva retomadas em artigo de Guilherme d’Oliveira Martins publicado em 2014 no Jornal de Letras: “A língua portuguesa é a mais esplendorosa, perdurável e irradiante criação de Portugal”10, argumento que nos recorda, com renovada energia, o poder significativo daquele tão frequentado emblema pessoano que Ruy Belo com tanto rigor procurou cultivar. E assim mesmo, trabalhando à margem – a margem – do imperativo de qualquer fixação de nacionalidade, ratificamos o título deste texto, pese a que ao poeta lhe não interessasse o aposto pátrio, mais não fosse, afinal, por essa figuração do lavrador de versos como agente marginal das sociedades, artesão da rebeldia, um nome em nome desse coração imolado à palavra. É poesia brasileira a dos poetas brasileiros citados em modo de referência, contextos de circunstância civil, mas as suas línguas irradiam do coração do português, nele instalam as bases dos seus edifícios de palavras. Habitantes íntimos, a língua não distingue as poesias desses poetas inscritos em nomes de países separados por um oceano. Habitantes íntimos, leitores de longe, o trabalho de investigação da língua nesses poemas explorado significa um bem comum, descobertos de efeitos expressivos e surpresas de significação, modos novos de dizer a língua e de dizer na língua. E é nesse sentido que se manobra a perspectiva de época sobre o jogo do futuro da poesia em língua portuguesa, conforme os termos aplicados por Ruy Belo naquele texto abandonado, mas, de qualquer das formas, pensado para acompanhar os poemas de Homem de Palavra[s], volume que, informa-nos a investigadora brasileira Manaíra Aires Athayde, chegou a ser ponderado a partir de, pelo menos, outros três títulos: “Perigos de Morte”, “Manhã de Outros” e “Senhor de Palavras”11. Da forma definitiva, “Homem de Palavra” dobrada em “Homem de Palavras”, no tal segmento de indispensável ambiguidade, a extensão de uma pertença absoluta à língua portuguesa, isto é, afinando, às palavras, todas as palavras da língua portuguesa. Língua é vizinhança, a língua é uma vizinhança, o bom tamanho da fala e do silêncio, o franco poder de nomeação e diversão das coisas do mundo. A língua fala mas também falha, e por isso falta: entrar na língua é concorrer na poderosa lacuna da sua decifração dos objectos e das ideias, dos acidentes e das vontades. O presente da poesia como condição de futuro daquele escrito de Ruy Belo implica também, pois, a salvação da língua como exercício precário, experiência da falha, uma inteira e constante remontagem da máquina do idioma. Palavras novas, pois, para o jogo do mundo. Impressão acústica renovada, como naquele poema de Miguel-Manso12: “estão a construir um bar / e começaram pela música”. Bem-vistas as coisas, e poeta de vizinhanças, Ruy Belo, homem do mar e da praia, sambou também ele, do seu jeito, no seu fado, à sua maneira.
Nota bibliográfica
ATHAYDE, Manaíra Aires (2012): “Os sulcos da morte na poesia de Ruy Belo”, Revista de Estudios Portugueses y Brasileiros, nº11. Salamanca: Luso-Española de Ediciones.
BELO, Ruy (1984): Obra Poética de Ruy Belo, organização e notas de Joaquim Manuel Magalhães e Maria Jorge Vilar de Figueiredo, vol. 3. Lisboa: Editorial Presença, Colecção Forma.
BELO, Ruy (2003): “Sempre pensei neste livro como”, Inimigo Rumor, nº15. Livros Cotovia; Angelus Novus, Editora; Viveiros de Castro Editora Ltda.; Cosac & Naify Edições.
BELO, Ruy (2004): Todos os Poemas, volumes I, II e III, 2ªed.. Lisboa: Assírio & Alvim.
MANSO, Miguel (2013): Tojo. Lisboa: Relógio D’Água.
MARTINS, Guilherme de Oliveira (2014): “Língua, leitura e literatura”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 1130. Portugal.
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1 Belo, 2003: 13
2 Belo, 2003: 13
3 Belo, 2003: 13
4 Belo, 1984: 191
5 Belo, 1984: 224
6 Belo, 1984: 35
7 Belo, 1984: 37
8 Belo, 1984: 34,35
9 Belo, 1969: 222
10 Martins, 2014: 31
11 Athayde, 2012: 212
12 Manso, 2013: 55