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O Almoço  (Conto)
Por Miguel Marques Publicado em Contos, Literatura, Portugal a 9 de Junho, 2022 1823 palavras
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                                                                    O almoço

O disco do fogão inflamou-se ao rubro sem que ela conseguisse de lá tirar olhos. Conseguiria tirar a mão? Pensou, não tendo coragem para mais. Uma placa negra onde a circunferência vermelha ganha vida. Cobriu-a com a frigideira onde uma colher de manteiga aguardava serena, não sabendo ao que vai, arrancada do pacote aberto. Duzentos e cinquenta gramas.
Quando pousada a frigideira, por tão próxima do calor, começou a manteiga a correr sobre o seu próprio ser deslaçado, encontrado o sofrimento primitivo como quando o universo foi feito do nada, onde tudo era temperatura excessiva e combustão, densidade absurda. Pensou, apenas.
Toda a cozinha estava por demais quente, apesar da frincha na porta de correr, envidraçada de cima a baixo, e da janela aberta, fazendo muito pouco quando o ar não se move do quente para o frio e assim se renova. Apenas uma frincha na porta para que o cão não entre na cozinha aquecida.
Ela espreita pelo vidro, o cão faz o mesmo.
O sol tudo esmaga, até as sombras já desfeitas em nada. As poucas que restam encolhem-se procurando abrigo; e toda a casa a ferver, fazendo o seu mundo, um mundo apenas desta mulher.
O relógio acusa as horas que passam, o marido sem chegar.
Voltam os duzentos e cinquenta gramas ao frigorífico, menos qualquer coisa, a manteiga que derrete por mais voltas que dê na frigideira.
Dá pelo suor que devagar escorre pelo corpo. Cabeça, tronco e membros. Um vestido largo sobre a pele húmida. Prende o cabelo com o elástico negro que demorou a encontrar no pulso. O vestido cola-se ao corpo alagado.
Já pusera a mesa, dois pratos, quatro talheres, dois copos onde, em cada um e pela boca larga, enfiara um guardanapo de papel liso.
O miúdo almoça na escola, só sairá às cinco e meia. Por um euro e quarenta e sete não justifica ir já buscá-lo, alimentá-lo, e depois o regresso às aulas da tarde. Deixou-o lá de mochila cheia e cheio de sono. Quando o miúdo voltar, há que lhe preparar o lanche, fazer com ele os deveres. Dar-lhe banho. Deixar brincar.
E depois também o marido regressa a casa, talvez já bebido ou talvez não, caso tenha companhia de outro como ele – será sempre uma incógnita que não tem como resolver.
Sobre a mesa, a toalha é branca e ainda limpa. Fora usada no jantar anterior, retirada do cesto da roupa passada a ferro. Fora um jantar calmo, sem nódoas, e já o miúdo dormitava no sofá por ter comido primeiro.
O relógio mede a demora de quem não chega, tortura a manteiga e a carne por onde o sangue borbulha aflito.
Ele já devia ter chegado a casa; são mais que horas. Picado o cartão, saído do emprego, a pé, e mesmo que devagar tivesse percorrido os pouco mais de mil metros para almoçar com alguma pressa, já deveria estar sentado à mesa e calado, a olhar o prato vazio e o guardanapo sujo que se contorce na toalha como um acrobata entorpecido.
O marido não se queixa do superior que o manda fazer os serviços que ninguém quer, nem do atraso no pagamento do salário, dentro de um envelope e cada vez mais repartido ao longo do mês sem fim. Não se queixa da comida, se quente ou fria, salgada ou insossa. Senta-se, come, para depois olhar o prato vazio e o acrobata devastado pelas cãibras ao seu lado.
O cão brinca no quintal entretido com a própria sombra que teima em desafiar o sol do meio-dia.
Ela dá atenção à carne a sofrer na frigideira, vira-a com a ponta do garfo. Agora pica-a, querendo saber. A carne redobra queixumes e dores e o sangue borbulha.
Ele já devia ter comido, arrastado a cadeira e ido ao quarto de banho com qualquer coisa para ler e um cigarro para fumar, e ela levantado os pratos, os talheres, os copos, a travessa, a caneca, os guardanapos doridos, a cesta, as migalhas que arrasta com uma faca, as conversas perdidas sobre a mesa. Lavado as mãos e ter dito que ia para o trabalho. Deixado a porta do quarto de banho aberta, onde o cheiro do cigarro teima em se esconder. Deixado a toalha das mãos mal dobrada sobre o lavatório. Ela a secar toda a louça com um pano já tão embebido.
Nenhum dos dois repara no televisor ligado, preso no alto.
O arroz sua, o tacho envolto em folhas de jornal lido, pousado sobre o balcão que se estende pelas paredes. Faz manchete com um crime violento: «homem retalha a mulher e atira o cadáver a um poço» profundo. O tacho esconde-se, aperta o arroz que respira fechado. Ela não lê o corpo da notícia, não querendo pormenores. O corpo violentado daquela mulher desconhecida, que podia ser o seu próprio, no sossego das profundezas de um poço.
Cabeça, tronco e membros.
O mesmo crime, outro marido, o dela. Num lugar distante, pelo menos isso. Pela fotografia é dada a conhecer a fachada da casa, como se passasse a pé no passeio defronte, abrandasse o passo, olhasse sabendo o que lá acontece, mas continuasse a sua vida sem querer saber da dos outros. Gente de bem não se mete em assuntos alheios. Cala-se, quando sai de casa, e caminha de cabeça baixa, olhos atentos ao chão em movimento.
Depois de tanto suar, o arroz arrefece, se bem que agasalhado, e por isso lentamente. O relógio continua no seu afazer.
As moscas sobrevoam pratos e copos procurando pouso, não se decidindo se aqui ou ali. Pousam, caminham um pouco para desentorpecer e contar as patas. Esfregam-nas, e também os focinhos bizarros, e logo usam as minúsculas asas, sem ruído. Fogem, porque podem fugir.
Com a ponta do garfo, ela volta a virar a carne, já o disco no mínimo possível, a carne saturada de tanta tortura. Olhou a carne e o arroz agasalhado para não arrefecer. Olhou a mesa posta, a pouca louça suja na banca funda, onde o ralo guturoso, na sua língua incompreensível, teima em não se calar.
Parece dizer: agora, agora!
Olhou a faca manchada de sangue e as aparas de gordura que guardou para o cão. Quando chegar, o cão dá logo por ele; ladra de alegria e aguarda uma festa, por querer tão pouco. São assim os animais. As pessoas.
Com a ponta do garfo revira a carne.
Junta os bocados de gordura e atira-os ao cão que se deita no pátio. Cabisbaixo, ergue-se a custo e vai cheirar com pouco interesse. Volta a deitar-se após ter comido, lambido o chão duro.
O relógio na sua hora impossível e ele sem vir. Alarmado, o cão já arranha a porta fechada, quer entrar na cozinha e ela não o deixa. Prefere sentar-se à mesa sem destapar o arroz, nem tirar a carne da frigideira.
No televisor as imagens sucedem-se sem ruído, e ela sem as conseguir unir, mudando as notícias e as frases que fogem pelo rodapé. Está demasiado longe para conseguir ler sem óculos.
Onde os terá deixado? Quando fez as camas? Quando estendeu a roupa?
Fez as camas no andar de cima, estendeu a roupa com o cão aos saltos à sua volta. Este arranhou-lhe as pernas com as unhas das patas, pisou-lhe os braços, marcou-lhe o pescoço quando o apertou.
Guardou a bacia e o que sobrou de molas coloridas. Arejou os quartos antes de fazer as camas e limpar o pó.
O telefone toca, sem mais. Já tinha o almoço pronto.
Porque hesita em o atender? Aproxima-se e apenas olha a sua inquietação.
O telefone cala-se.
Senta-se no sofá, junto ao telefone preso ao seu suporte, como o cão que ladra próximo da sua casota, de trela esticada, quando de castigo, sem que ninguém o procure ou chame. O cão ladra toda a noite, quando lhe dá para isso, quando ouve o barulho que vem do interior da casa. Não sabe quem chora, quem berra. Finge não saber.
Arranha a porta, quer entrar na cozinha, mas apenas uma frincha quando a porta desliza sem ruído. Talvez o cheiro da carne já demasiado queimada. As moscas zumbem nas voltas que dão, fogem do cão, do pano da louça que estala no ar quente.
O telefone, mais uma vez. Ela estende o braço, abre a mão, hesita. Apenas o agarra e encosta ao ouvido sem falar. Uma voz faz perguntas, apresenta-se, diz que o marido não apareceu hoje no trabalho. Precisam dele de tarde.
Ela informa que ele já almoçou e saiu de casa, não compreende a demora em lá chegar. Apenas mil metros, mesmo que caminhe devagar e com o olhar sem pouso.
Há que aguardar, então.
Que aguardem.
A carne enegrece no disco brando, um tição sem nome ou forma. Intragável se provado, se alguém lhe conseguir cortar um pedaço que seja, e levado no garfo à boca macia, logo é cuspido para o prato. Quanto ao arroz: suou até à exaustão.
São um vício, as notícias de rodapé, imparáveis e incontornáveis, já pôs os óculos para as conseguir acompanhar. Um frenesi. São frias e com poucos pormenores, e talvez por isso tão apetecíveis, e movem-se sempre da direita para a esquerda. Facilidade de leitura, pensa.
O telefone volta a tocar. Ela não se mexe, não tira olhos do televisor silencioso. O marido que atenda, se quiser. Ou que não atenda, não importa.
Ele continua deitado no chão, junto ao sofá, junto ao telefone. Já estragou o tapete com todo o seu sangue viscoso, movendo-se do centro para os rebordos grossos, uma massa escura em expansão como o universo.
As moscas pousam no rosto frio do cadáver, caminham para desentorpecer as patas, contá-las, e logo voam. Fogem.


Miguel Marques nasceu no Porto em 1971, vive em Vila do Conde.
Com formação em engenharia química, trabalha em indústria desde 1997.
Escreveu os romances Cada Vez Mais Forte o Sino (BookBuilders 2017) e Punição (BookBuilders 2019), os livros de poesia Canto de Tebas (BookBuilders 2021), Ilhas a Vapor (Edições Húmus, 2022) e Cobalto (Flan de Tal, 2022).
Desenvolve actividade cultural intensa na associação Cabe Cave, com especial relevo para a literatura, o cinema e o teatro.


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