Do tempo
Pedes-me que te fale do tempo, indico-te a cadeira de costura baixa da biblioteca e rogo-te que se sentes.
É uma cadeira de pernas curtas que outrora serviu para os serões de costura da minha avó. Guardo ainda, na única gaveta, minúscula, um carro de linhas que hesito em usar. Sinto que o facto da linha permanecer imóvel, enrolada na exacta medida em que foi deixada, me permite guardar alguma coisa desses serões da minha avó, dos nossos serões. A ponta da linha continua por isso solta, como que a pedir que o trabalho continue, mas não será ainda neste tempo. Não no meu tempo. Preciso absolutamente que esse pedaço de permanência que me devolve a lembrança e me sossega, permaneça exactamente como foi deixada.
Assim, contigo sentado na cadeira baixa da biblioteca, é mais fácil coincidirmos. Eu aqui, no sofá de veludo com orelhas onde o meu avô lia e relia, porque reler explicou-me tantas vezes, é ler duas vezes e perceber por isso os conteúdos que calha esvaírem-se nos numa primeira impressão. Cuidava assim, o meu avô, de segurar melhor as paisagens, os percalços e as emoções de cada um desses livros. Reler era para ele tão ou mais frutuoso como a primeira descoberta. Ao reler, punha os pés num caminho já percorrido mas fazia-o com outra descontracção. Creio que guardava marcados, entre as folhas, os lapsos dessas realidades que mais lhe interessavam para depois os fazer ressurgir.
Olhas-me da cadeira baixa de costura da minha avó e sorris-te. Sei exactamente o que estás a pensar. Por mais que tentasse, o meu avô nunca conseguiria guardar o tempo, sequer um lapso desse tempo, quanto muito alguma recordação.
A memória é efectivamente o que nos resta do passado, de todo ele, livros incluídos, mas a memória é apenas uma imagem desse passado. Uma construção mais ou menos generosa, com anseios e vontades à mistura. Da memória fazem parte as coisas que realmente se passaram e as coisas que existem apenas porque as imaginamos e, é tão difícil saber onde começam umas e acabam as outras. De facto, lembranças e sonhos andam muitas vezes de mãos dadas. Lembranças e imaginação. Uma espécie de arco iris desengonçado onde balançam as fotografias, todas as fotografias, incluindo aquelas que só se revelam muito tempo depois.
Podia dizer-te que me lembro exactamente do bordado que essa linha, agora quieta, pintava no colo da minha avó. Quase o adivinho em cores bruxuleantes debaixo do pequeno candeeiro de vidro. Não é no entanto, enquanto lembrança, nada parecido com o bordado da minha avó. Eu sei disso. Estamos noutro tempo apesar do espaço ser aparentemente o mesmo e as mãos que antes dançavam por de cima do pano grosso de linho já não existem.
Olhas-me calado. Respeitas as minhas lembranças e sabes que este não é o momento. Falar-te do passado é falar-te de um lugar que ninguém segura mais. Um emaranhado de acontecimentos enrolados no fundo do baú. Quando muito, existe desse passado e como forma de nos ligarmos a ele, um carro de linhas com uma ponta solta. Esta linha, com esta ponta solta que seguras agora entre as tuas mãos.
Nada disto te esclarece, nada disso te abre portas. Esse tempo de que te falei já não existe. Para ti que me olhas com complacência, nem nunca sequer existiu. Para mim, se existiu permanece longe, tão longe quanto a distância das minhas memórias à sua essência, aquilo que de facto é ou foi a “sua pequena matéria de existência”.
É esse o tempo de que te estou a falar, uma essência e uma pequena matéria de existência que me permite agora disfrutar de momentos de lembrança, apenas isso mas não mais do que isso.
Olho-te devagar para perceber se estás preparado. Falar-te do que ainda não aconteceu é por um lado dar-te esperança e por outro trazer-te angústia. Não há nada como o futuro para percebermos o tão longe que estamos de um momento que ainda não se deu. Pode ser amanhã, pode ser daqui a nada, pode ser dentro de muitos anos, é absolutamente igual. Será sempre uma não vivência. Falar do futuro é, quando muito, adivinhar traçados hipotéticos, caminhos, mas nunca vivenciar. Se do passado ainda conseguimos um laivo de existência através da lembrança mais ou menos clara, acerca do futuro a única coisa com que nos deparamos é com o deserto.
Perguntas-me agora, se podes imaginar esse deserto em tons de azul. Podes, claro que podes imagina-lo de todas as cores, em todos os espaços e em todos os instantes, com a certeza porém de que não possuis nenhum, de que não te encontras em nenhum. A única coisa que temos em relação ao futuro, qualquer que ele seja, é a esperança.
E agora? Vieste aqui para me ouvir falar do tempo. As tuas pernas torcem se debaixo da cadeira. A impaciência vai tomando conta do lugar. Começamos a ter menos para conversar. O passado revisto em imagens mais ou menos fidedignas e o futuro nunca alcançável esgotou-nos. Um tempo e outro que se completam e que se interligam mas que não nos pertencem. Nunca nos pertencerão. Tempos que se reparares bem, se sentam na beira da janela e nos contemplam. Eles sabem que estão a salvo das nossas mãos, dos nossos hábitos, do nosso destempero e da nossa vontade
Devagar, percebi agora, abriste a mão. O carro de linhas da minha avó balança desenfreado na tua palma ágil. Segura-lo e ao mesmo tempo, abres-lhe um caminho de veias e de urgência. O que me pedes, neste preciso momento é que eu segure na ponta solta da linha. E eu, neste preciso minuto faço-te a vontade. O carro de linhas fica do teu lado, a ponta abraçada firme entre os meus dedos. Vou segurá-la e dar o primeiro passo para trás. O carro de linhas desenrola-se no meu caminho em direcção à porta.
Cada volta deste tempo, eu sei disso, queria-lo tu como um presente partilhado que de facto, nos afasta cada vez mais. O aqui e agora de um pequeno carro de linhas transforma-se imediatamente no decorrido e em distância. Sou eu e és tu. No meio de nós, o meu caminho e a tua lonjura que se tornam a cada passo, passado.
-Dá-me a tua mão! Grita do teu lugar quando percebes que os meus passos a caminho da porta me farão sair rapidamente da sala.
-Dá-me agora a tua mão!
Estendes os dedos mas a linha retesada só nos aumenta ainda mais a distância.
Não há nada que possas fazer. O tempo esgota-se em cada um dos meus passos e mesmo que te tornes repentinamente funambulista nunca mais nos alcançaremos.
O meu tempo e o teu tempo coincidirão apenas no passado, que já o é, que sempre o foi.
Nem eu nem tu temos absolutamente nada porque o presente é afinal um lapso, sempre a caminho de se tornar memória.
Portuguesa, natural de Tete, Moçambique e residente em Lisboa, começou a publicar no suplemento “DN Jovem” do Diário de Notícias.
Tem participado em inúmeros eventos de poesia, tertúlias, encontros, revistas, com trabalhos em poesia e prosa, estando os seus trabalhos integrados em várias colectâneas em Portugal, Espanha, Brasil, Africa do Sul, São Tomé e Príncipe, Guiné- Bissau, Angola e Moçambique.
Tem participado em projectos conjuntos de texto e fotografia/ artes plásticas.
Tem publicado em Portugal com o Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora (C.E.M.D), do qual é membro.
Publicou nos “Contos Capitais” que marcaram o início das “Edições Parsifal”.
Mantém o blogue literário “Chez George Sand” onde escreve regularmente (http:// chezgeorgesand.blogspot.pt) e ocasionalmente, a convite, noutros espaços.
Publicou em 2015 o livro “São Martinho do Porto-Momentos”, em co-autoria com o fotógrafo Pedro Soares de Mello.
Tem colaborado com o Jornal Tornado onde escreve regularmente.
É membro do PEN Clube Português