ADEPTO DA BISCA
Jecas era um fiel adepto da bisca, sempre ansioso pelas jogatanas de sexta-feira no salão do clube desportivo. Há dois anos que as apostas eram a feijões, mas naquela noite o grupo reunira-se na sua cave e alguém puxou de uma nota de cinquenta. Os ânimos alteraram-se. Desviando o cabelo da frente dos olhos, Jecas mirou os outros jogadores por entre a nuvem de fumo das cigarrilhas. Um deles era um autêntico profissional, nunca hesitava, usava luvas sem dedos e uma pala de plástico transparente; os outros dois estavam destinados a ser somente outros.
Com a luz do candeeiro a cegar, Jecas conferiu as cartas e voltou a roer as unhas. Imaginou-se a pedinchar ao bancário, a assinar os papéis de um novo empréstimo, a penhorar o relógio herdado do tio-avô e a derreter o ouro dos anéis. Tinha pavor às dívidas, tanto pavor que acordava transpirado a meio da noite, irrompendo dos cobertores com os olhos esbugalhados. Jecas estava escaldado porque vendera o calhambeque para emprestar dinheiro a um amigo — ainda por cima um falso amigo! Sucedeu o que mais se temia: não recebeu o empréstimo de volta e teve de vender a mota.
— Então, homem: apostas ou desistes? — as palavras ásperas do jogador à sua frente retiraram-no da ruminação, interromperam a taciturnidade. — Não temos a noite toda, pá!
E subiu-lhe uma acidez estomacal, um refluxo desde as entranhas até às narinas, um estremecimento do âmago. O coração ganhou ímpeto e bombeou ainda mais sangue para as pernas: era hora de fugir.
Perante o pasmo dos adversários, um com a cigarrilha pendurada na boca e outro a interromper o gole de aguardente, Jecas atrapalhou-se a abandonar a cadeira, os pés tropeçando nas mãos e o bom-senso cotovelado pela falta de jeito. Ele tinha um calcanhar «daqueles».
Saiu da cave com o coração nas mãos e a alma desorientada e meteu-se numa divisão caótica a cheirar a mofo. O quarto dos arrumos é sempre o mais desarrumado. Depois de revirar duas caixas de sapatos com fotografias do tempo em que ele tocava fagote na banda filarmónica, escapuliu-se para uma casa de banho minúscula, onde havia dois rolos de papel higiénico — um para a coisa, outro para o coiso. Abriu a tampa do autoclismo, pesquisou com pressa e devolveu-a ao lugar. A seguir, entrou no quarto de cama e viu-se ao espelho. Sentia-se desgastado da vida, a precisar urgentemente de uma intervenção cosmocêntrica.
Contrariando o ditado, ele conseguia ser tão azarado no jogo como no amor. No mundo ideal de Jecas, os casamentos deveriam ser por contrato, tal como os empregos: um período de experiência, uma cláusula de rescisão e a possibilidade de não renovar. Em vez dos dramáticos divórcios, teríamos episódios descontraídos de não-renovação.
A mulher que algum dia contraísse um acordo matrimonial com Jecas só poderia chamar-se Maria Pátria, usaria a aliança nos dedos dos pés, amarraria o cabelo com um lápis e prenderia os óculos na parte de cima do soutien, no ombro, para poder comer sem receio de os sujar.
A melhor recordação de uma relação amorosa que Jecas guardava era a de ter gritado um piropo a duas moçoilas alemãs que se esfregavam com sabão nos chuveiros ao ar livre da praia, em pleno inverno e à luz do dia. Para infortúnio, Jecas usara uma expressão germânica aprendida num filme para adultos.
Imaginara-se a namoriscá-las com as teorias da vida, as filosofias do amor e as ciências do coração. Os autoproclamados peritos afirmam que o coração é uma coisa e o cérebro é outra, mas para Jecas não era bem assim. O coração e o cérebro não são a mesma coisa, mas podem ser ambas as coisas. São, simultaneamente, duas coisas e uma só. Cada coisa é uma coisa, mas o somatório de ambas é uma coisa única ainda maior e mais significativa, maior do que a soma das partes. É a unicidade da dualidade. O coração e o cérebro estão ligados de variadíssimas maneiras, o problema é que ele não sabia explicar nenhuma delas.
Ainda perante o espelho e as curvas da existência, Jecas abriu uma caixa de
joias, de onde tirou três notas de vinte. Fez um sorriso breve com um dos lados da boca. Era homem de lábio fino: soprava a sopa até gelar. Tinha os olhos grossos, de dormir em demasia e outros maus hábitos. Dormir dá fome, comer dá sono. E ele consumia cogumelos, que quase sempre chamava de «coguméis». Sofria de dores pulmonares: quando doía o pulmão esquerdo, respirava apenas pela narina direita, e vice-versa, o que era motivo de chacota por parte dos competidores da bisca. Muitas vezes, a meio dos jogos, eles fumavam as cigarrilhas pelo nariz, a ver quem se engasgava primeiro. Também comiam canela em pó à colherada — perdia quem tossisse primeiro. Além de prosmeiros, batoteiros e misólogos, aqueles adeptos da bisca também eram estúpidos.
Cansado da deambulação pela casa, Jecas regressou à cave, à mesa de jogo, meio aturdido, meio zonzo da confusão mental. Perante o olhar inquisitivo dos restantes apostadores, sentou-se e inclinou-se para diante. Era hora de decidir o que fazer: apostar ou calar-se para todo o sempre. Rasgando o silêncio, ergueu a cabeça, pôs o dinheiro em cima da mesa e declarou: «Aposto tudo».