UM OLHAR PESSOAL
Eduardo Lourenço foi provavelmente o primeiro a chamar-me poeta: e que perplexidade isso então fez brotar em mim! Ora, declarando-me à partida como poeta, sou algo «suspeito» na abordagem, pelo que em conformidade dou início à presente reflexão com esta chamada de atenção, reclamando a possível dose de perdão, ou pelo menos de condescendência. Apesar dos esforços honestos nesse sentido, dificilmente nos conseguimos afastar o suficiente do «objecto» amado. Porém, isso não elimina a possibilidade de reflectir. E o acto de reflectir, que acreditamos ser «livre», resulta de uma panóplia de circunstâncias, não sendo os resultados imutáveis, ou seja, são susceptíveis de ajuste. A liberdade de expressão e de erro, bem como alguma desresponsabilização, são porventura assinaláveis tendo em conta que não sou académico, nem investigador na área de literatura.
O que é poesia? Bem podia ser este o título do presente artigo, todavia confesso que fugi dele, recordando-me do belo poema de Nuno Júdice O QUE É A POESIA . Desde logo é uma forma de expressão com um mercado reduzido em Portugal. Porquê? Várias podem ser as tentativas de explicação: além das prioridades e dificuldades crescentes dos consumidores com reconhecida perda do poder de compra, o próprio mercado é em geral tendencialmente reduzido, os índices de leitura são fracos, muitas pessoas não gostam simplesmente de poesia, em parte porque não a compreendem e acham que deviam conseguir fazê-lo. Perante um grande número de autores de poesia, desconhecidos, mas que publicam este género literário, destacam-se sobretudo «grandes nomes» firmados, e são esses que vão tendo algum público. Em consequência, o segmento de mercado que lê poesia não é grande e parte dos leitores em si é poeta, acompanhando a produção dos outros poetas. A poesia é, em consequência, um estilo mal-amado pela maioria das editoras, que entende ser gerador de fracas vendas. Bem sei do que falo, visto que há longos anos trabalho numa editora.
Todavia, poesia não se resume ao «parente» pobre da edição. Entendo que é uma forma «maior» de expressão literária, resulta do que mais de humano temos em nós. Cada obra tem características próprias e um dado nível de qualidade, não obstante a natural subjectividade que estará sempre presente em qualquer apreciação. A própria poesia está indelevelmente associada à subjectividade, e desse modo, encontra-se intimamente ligada
à aludida condição humana. Potencialmente deve conter beleza no seu conjunto, no ritmo, na estética, na potencial riqueza imagética, na abertura livre à exploração, na possibilidade praticamente inesgotável de criação e de fausto interpretativo. O gosto que a poesia é susceptível de induzir nos leitores, o deleite que proporciona no contacto com os pensamentos ou raciocínios que lhe estão subjacentes, sejam baseados ou inspirados em factos reais ou totalmente imaginados, também as possíveis inquietações produzidas – vistas em sentido positivo – são realmente aspectos únicos, como as obras de arte plástica, como a música, como as produções audiovisuais, até como a gastronomia, como todas elas interligadas. Neste sentido, pode cumprir uma missão importante, não no sentido único de auto-satisfação do poeta, mas fundamentalmente no potencial contributo no que respeita ao que de «bom» induz nos leitores e no respectivo usufruto, sendo consequentemente útil.
Diversos analistas, críticos literários e poetas, por vezes, apresentam grelhas de leitura e de apreciação poética com «malhas algo estreitas», não raramente pautadas por elitismo e certo fechamento a todas as produções que saem de determinados «estilos» que preferem. Tal situação leva a desprezar poesia interessante e válida, condenada desde a nascença, mesmo não se tratando de criações puramente experimentais ou de qualidade muito discutível ou duvidosa, que obviamente também as há. Conduz ainda – conforme acredito – ao condicionamento na própria construção das palavras, quando os poetas são decisivamente influenciados pela crítica, o que poderia ser bom tratando-se de uma depuração útil, visando ser uma escrita mais cuidada «no laboratório criativo», eliminar um caos criativo ou opções de mau gosto, evitáveis. Contudo, pode igualmente acarretar um efeito perverso de impedir alguma beleza de geração poética genuína, ideias que se matam desnecessariamente. A proibição de utilizar certo tipo de palavras ou de expressões na poesia, é susceptível de inibir a plena criação. E, se ideologias ou preconceitos político-partidários impregnarem as posturas analíticas, então nesse âmbito, qualquer crítica está à partida inquinada, e, jamais será isenta, na medida em que gera uma espécie de censura prévia ou condena o sujeito pelo seu rótulo pessoal e desvirtua injustamente o bom resultado do seu trabalho. É preciso separar preferências pessoais do reconhecimento de um trabalho válido. Não se afigura fácil, na prática.
Características estruturais inerentes à nossa «velha cultura», tais como incapacidade de reconhecer o mérito alheio, suspeição e inveja, não merecem aqui menção especial, porque estão omnipresentes na sociedade, e como tal, é necessário lidar com as mesmas, em qualquer área.
Importa referir que em Portugal há maravilhosa e diversificada poesia e grandes poetas. Isso é inequívoco. Mesmo quando alguns não escrevem poesia, não têm de a desprezar como forma de escrita. Refere o Mestre da escrita Mário de Carvalho : «Convém desfazer um equívoco logo à partida, e duma vez por todas. Quando falo em «escritor», refiro-me aos ficcionistas, com vénia aos dramaturgos e aos poetas. Ponto. (…)»
A poesia, tal como outras formas literárias, faz-nos interrogar sobre nós mesmos, sobre a nossa condição, sobre vida, sobre morte, sobre sentimentos, sobre a natureza onde estamos inseridos, extrínseca e extrínseca, sobre o sentido das coisas, sobre civilização, sobre cultura, sobre tudo. Porque, possuindo tal «criação» horizonte ilimitado, ela torna-se «tudo». A propósito – atrevo-me a inferir – lembro-me de uma expressão do Professor Eduardo Lourenço, à qual acabei por dar notoriedade ainda com o Autor entre nós, em uma ou mais sessões públicas de lançamento, posteriormente como título de uma antologia publicada postumamente pela Gradiva, e, até recentemente, como designação de uma exposição do fotógrafo Vitorino Coragem na Fundação Calouste Gulbenkian, aquando do centenário do Autor. Cito: «Ver é ser visto. Por quem? Por tudo.» Com todas as extrapolações possíveis, creio aplicar-se também à poesia. Está em causa perceber além da coisa vista, ver outra em lugar do que se vê, entender a ideia observando outra em seu lugar, ver o «objecto» e dele receber uma reflexão que nos é devolvida, que a nós chega ou regressa e de onde nós mesmos nos vemos, portanto a análise crítica que conduz ao «tudo», consideração que na visão de Guilherme d’Oliveira Martins é constante no pensador e «(…) permite entender o seu sentido crítico, feito de contrapontos entre presença e ausência, entre o eu e o outro.»
Matéria que nunca pode deixar de se considerar com a devida legitimidade é «gostar ou não gostar» de poesia, em geral, ou de certa poesia em particular. Não tem de se gostar e não tem de se gostar de tudo o que em poesia de produz! Claro! Como em quase tudo. Que mundo cinzento e triste seria aquele fundado na unanimidade, que inconsistência – artificial, falsa – seria a concordância automática de todos nas escolhas, também na apreciação poética!
É evidente que a nível de ensino se requer especial conhecimento e formação para tratar a poesia. Mas igualmente algum talento, bom-senso e perspicácia pedagógica para que não seja encarada como uma matéria qualquer, e/ou aborrecida e imperceptível, neste caso somente «impingida» aos alunos como um «mal» necessário, com pouca preparação, e, portanto, sujeita a rejeição por parte dos destinatários. Para alunos que
já não têm apetência para a leitura, injectar-lhes poesia «a frio» arrisca-se a obter notório insucesso.
Já quanto à questão de querer a toda a força «entender» qualquer poesia, a minha postura é mais radical. Porquê? Se respeito as mentes que não a percebem, porque na sua «formatação» mental buscam incessantemente uma racionalidade que não lhe está subjacente, que não lhe é estruturalmente inerente, também penso que a poesia não tem realmente de ser entendida. Podemos lê-la de várias formas, podemos estar «certos» e podemos estar «errados» (seja isso o que for!), fazer inferências diversas, podemos descobrir mensagens e ideias que nem o próprio autor pensou nem desejou, todavia, interessa sobretudo fruir, sentir e deixá-la «voar» além das eventuais intenções que estiveram presentes quando foi escrita. No seu todo ou em parte, podemos nunca chegar a descodificar inspirações e intenções do poeta. É natural que assim seja. Admito até que vale mais o momento em que se usufrui da leitura, do que a preocupação em reter quaisquer mensagens concretas após concluir essa leitura. Parte das fontes geradoras das palavras, dessas ideias, mesmo não sendo nada confessionais, jamais pode ser descoberta ou desenrolada numa perspectiva racional, objectiva, mesmo dita «científica», porque isso não faz sentido. Em poesia há mensagens e/ou expressões passíveis de julgarmos que as compreendemos, há até histórias inteligíveis ou em maior ou em menor grau encapsuladas nos poemas, mas isso não é nada obrigatório. Não se afiguram bem-vindas regras ortodoxas que se queiram impôr ao acto criativo, nem a necessidade de interpretar.
Poesia é suprema liberdade, pode ser excesso, extrema audácia; É diversa, sem limites, sem fronteiras, e, nesse sentido, tem associada uma abrangência que não deve ser aprisionada em rótulos, em estilos, nem em preconceitos que a confinem à partida, nem sequer de origem e de natureza geográfica ou de outra. Também assim é a ideia de multiculturalismo, de humanidade, onde cada um de nós, com as suas próprias características, se insere e participa na bênção da vida. Aceitar censores? Com as devidas precauções de razoabilidade, e mesmo retirando a frase do seu contexto, volto a evocar Mário de Carvalho: «E uma advertência a todos nós também, para que não consintamos censores de espécie alguma.»
2 . SOBRE A MINHA POESIA: QUE «MUNDO» DE ESCRITA É ESSE?
Não costumo fazê-lo, mas seguidamente vou abordar o meu caso. E bem sabemos que «cada caso é um caso.» Acresce que, a análise crítica dentro do nosso próprio contexto, dificilmente será imparcial e conseguirá vislumbrar o enquadramento total e desapaixonado do «objecto» focado. Para esta parte da reflexão contribuíram alguns dos meus apontamentos para um encontro de escritores na Feira do Livro de Monchique, a convite desse município e da editora On y va, em Agosto de 2024. Vejamos.
Quando escrevo (e penso tanto em poesia como em ficção), isso significa um encontro, com dupla dimensão: Será necessariamente comigo, por meio da reflexão, das sensações induzidas, do usufruto, do gosto,… E será com os outros, visto que o sentido do que escrevo será partilhado. Pensar nos outros quando escrevo é, para mim, fundamental. São eles que, através do contacto com a obra publicada, lhe dão sentido e legitimidade. O resultado da criação passa a pertencer-lhes. Se não fosse para eles, bastaria escrever um caderno íntimo, confinado às gavetas do autor e muito provavelmente destinado ao lixo, após a sua morte. Todavia, escrever e conseguir divulgar o que se escreve, é um acto em que se acrescenta valor à comunidade, ou em que se deve conseguir isso. A maioria das pessoas não escreve coisa alguma, e nesse âmbito nada oferece. As próprias redes sociais parecem ilustrar esta situação: Partilhar algo que alguém escreveu ou destacou.
Após essa submissão ou «passagem» e independentemente do que os outros pensam, fica a sensação de a escrita ser um processo de liberdade e de evasão. Liberdade para criar (tenho devoção ao acto criativo) e criar em liberdade – «quase tudo é permitido» – com horizontes quase ilimitados, usufruindo da já aludida subjectividade (inerente à típica condição humana).
E falo em «evasão» na medida em que se saio das fronteiras de um quotidiano para outro, saio do mundo das obrigações, das pressões, das lutas, das contrariedades, das injustiças, e vou ao encontro de um espaço e de um tempo próprios para escrever. O que fazemos depende de decisões (se conscientes, controlamos, se inconscientes, só parcialmente) e de circunstâncias (que em boa medida não dominamos): portanto, através da escrita, saímos de uma realidade que não controlamos totalmente, para outra que achamos dominar. Ligado a isto, lembro-me de há uns bons anos ter sido convidado para assistir presencialmente a uma acção de formação com um reputado consultor internacional (creio que se chamava Daniel Yoleck – canadiano), que partilhou o que tinha aprendido com um grande mestre oriental de artes marciais, como postura para a vida:
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Apesar das influências mais ou menos conscientes de tudo o que se lê, evidentes, naturais, não me sinto inserido (muito menos obrigado ou preso) numa dada corrente ou estética de escrita de poesia. Isso é maravilhoso e é (para mim) uma sensação imensamente especial.
Pensando mais um pouco no meu mundo poético, concluí que no resultado da escrita, de alguma forma acabo por chegar ao lugar da «origem» ou da «influência histórica» ou aos dois, quando coincidem. Achava que isso seria algo de básico, mas não o tinha associado ao meu caso. Que importância tem? É quando temos recordações desse local, nessa altura precoce, que é importante identificar as marcas. Se são para a vida, são também para aquilo que escrevemos. Assim, surgem criações que acabam por estar ligadas a sensações fortes, e/ou da infância, registadas, no consciente ou no subconsciente: Casa(s), jardins, ruas, cheiros (ex: Macau, Estoril, Angola, Góis, Alentejo, etc), escola, colegas, família, pessoas, amores, incidentes críticos, situações que marcaram.
Outro aspecto que descobri ser recorrente na minha poesia é a proximidade ao mundo natural, curiosamente identificada por Eduardo Lourenço . Trata-se de «rebobinar» (meu abuso de linguagem) experiências únicas, gratuitas, e trazê-las à produção criativa. Tem a ver com a história de vida, e, com a sensibilidade que é possível desenvolver para olhar a natureza à nossa volta. O que tenho publicado é indissociável da natureza. Designadamente tal proximidade directa encontra-se nos meus dois últimos livros. No livro de poesia Respiração (editora On y va, 1999), encontramo-lo quer na primeira parte – respiração das margens (tem muito a ver com paisagens de água… mas não só) quer na segunda parte – respiração mineral das coisas. No próprio romance Uma Estranha Brisa Pela Madrugada (editora On y va, 2022) deparamos com muitas inclusões explícitas relativas a aspectos da natureza.
Outra característica que identifico, é que o mundo, quando escrevo, é bastante visual, seja na visão de coisas «reais», seja a visão de coisas «imaginadas». Há um ou mais mundos transportados para a criação. Na concepção do autor, cada poema pode associar-se a uma ilustração, a uma pintura, a um filme.
Além disso, e em conexão com o que acabo de referir, o mundo, quando escrevo, fica registado em histórias, sejam elas mais percetíveis ou mais escondidas, sejam mais verosímeis ou mais efabuladas. Podiam não o ser, mas «descobri» que há sempre algo que estou a contar, mesmo em poesia, mesmo quando isso não está (nem pode ser) evidente para os leitores, mesmo quando se mistura com a pura fantasia. Um mundo de histórias, sobre um mundo humano, portanto com as suas imperfeições, as suas perversidades, as suas várias dimensões reais, incluindo a psicológica.
Finalmente, o meu mundo da escrita dita momentos de enorme intensidade e fruição, depois, um distanciamento tal, que passado algum tempo, leio o que escrevi e fico algo surpreendido com o resultado, como se não tivesse sido realmente eu o autor.
Concluindo, direi que a poesia pode ser o género possivelmente mal-amado das editoras, mas é sublime em virtude da intensa expressão de beleza, de liberdade e de criatividade… portanto profundamente humana. Independentemente da valia do que escrevi e do que virei a escrever, não passo sem imersões frequentes na minha criação poética e obviamente na leitura das maravilhosas criações dos outros.
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