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Poesia portuguesa.
By Ana Marques Gastão Posted in Literatura, Poesia, Portugal on 31 de Maio, 2024 588 words
Revista Oresteia, Nº 13,  junho de 2024. Previous Poesia portuguesa Next

Laudes

Obrigo um outro comboio desobediente
a obedecer à luz.

Respiro na espuma do in-movimento
como Adão antes do primeiro passo.
Só, silencioso, seria essa a imobilidade do Paraíso,
gaiva de maçãs tombadas e ostentação

Bastaria soltar a ideia, enrolá-la num lençol vazio
e, rejeitando a rotina lacónica,
esquecer o lodo e a grade, o verbo hipócrita
a perseguição rebelde, matriz de Y
o desamor dos autocentrados,
desaparecer na luz

Para isso teria antes de me desfazer do corpo,
órgão a órgão,
osso a osso, consentir
no avanço
de um estado selvagem na cidade mentirosa
onde não se mereceria nem a delicadeza,
nem o autocontentamento,
só a mercadoria de metal e piercing
a boca que já não é tua

Entristecerias primeiro
porque os dicionários morreram
e a poesia de Beatrice dita em espiral de romã
não teria lugar senão na erosão mediática,
já não penitente, maldita ou incendiária

Pudesse a nossa vontade pós-Adão ser imóvel,
e a dança agitaria a loucura mansa, corpos cinzentos, sólidos,
inaquáticos, adstringentes,
a tinta desenhada a dedo na areia
a madeira do pensamento-farpa, acção-acto

Atravesso, pois, como um elfo, a lâmpada fosca, sinto
um curto-circuito, um flash, um relâmpago,
a palavra não quebrada de um monge alegre,
restaurando
a ordem impossível, aqui encarnada
num «creio»
de vozes desistentes, re (construo-a) com as teclas
desenho uma estrela racional

Digo: louvo a criança, o deficiente, a quem chamam
estúpido, o insecto demasiado intranquilo,
demasiadamente nada, o amor não cumprido mas
vidente, inabilmente taciturno
e, quase de súbito, já sem olhos, sem mãos, sem narinas
arrancado o tacto, a eufonia,
o osso do meu osso-pó afundado em laudes
repetitivas, bendigo o tempo do outro lado do portão afunilado,
e, sem mais, vou

L de Lisboa, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013


O círculo

O ouvido é de círculo, o círculo de disco, voraz,
incontido, fugaz. o ouvido é de círculo em corpo
de homem com treva de mulher. o ouvido é de
círculo, raio de onde se ausentou a luz
nas suas dez mil espécies de fogo sem água;
é angular, o rosto, fantasia, abajur de pagode,
banzé e violência, de tudo tem fartura, é fractura
de devoração. a imagem conspícua traz declínio
e queda, erguida em rocha funda. de tanto não se
ver, torna-se inferno e mentira, deita-se em ilusão;
a chinesa é impaciente, fera sem lamento ou
piedade, não dorme, não sossega. as sobrancelhas
desenham o v de vagido, as mãos são de animal
antigo. a chinesa cobre-se mas a provação é a nudez.

O Olho e a Mão em co-autoria com Sérgio Nazar David, Rio de Janeiro, 7Letras, 2018.
A partir do quadro A Chinesa, de Anita Malfatti.


 

A saia a lua

A saia a lua, a mulher afasta o mal
no sono quando sonha e observa um
corpo celeste girando em mecânica
virtuosa – ao longe uma porta, a rua
desabitada, na maçaneta a mão de um
homem desavindo que, num golpe de
noite, desaparece sem mais. O sonho
é essa solidão anterior ao mundo,

o pavor ou a dor, o salto involuntário,
um tempo sem tempo, a alegria antes
do dia, a mente a galope quando a maré
se esvazia e acalma as falhas do amor.
Até a águia e a sua cauda desaparecem
engolidas pelo sol. Tudo se vai menos
a saia a lua, demasiado livre eu para alguém.

Oníricas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2023

*-*-*

A foto desta publicação é da autoria de Rodrigo Cabrita


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