O COPO DE HERÁCLITO
Serão ainda teus os objectos sobre a mesa?
A surpresa do pão, a evidência do lápis afiado,
aquele fulgor de pássaro sobrevoando a cama
coexistem sobre a mesa e eu pergunto
de quem são agora: o pão sempre fresco
aparece às vezes coberto de bolor e ao amanhecer
a neblina esconde o rio que passa sob a ponte
por onde passo: alguns quilómetros por hora
e deixas de correr em mim. O pão nos dentes
da saliva será teu, tu outro que rondas
os meus dias? O mesmo caderno e esta tinta
quando anoitece os teus olhos de quem são?
Ainda teus e desse outro que se vai tornando visível
e desarruma tudo o que eu sabia e o meu vestido?
Sobre a mesa o copo nunca bebe a mesma água.
In O Mundo não acaba no Frio dos teus Ossos
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AINDA VIVOS JÁ?
A pêra ficará docemente sobre o prato
e a romã jamais será comida.
A temperatura da sala é fresca e os teus lábios
mordem distraídos um gomo de laranja.
Salpica-me o rosto de tão perto, mas já o engoles,
já é só parte de ti e nada dele.
O gomo da laranja cruza a minha boca
e o riso líquido pousa o olhar no quadro:
a pêra suspensa na parede entre a esperança de vida do óleo
sobre tela e pensar que foi colhida tão cedo,
os poros de tinta sobre o rubor adolescente da carne.
A redondez da maçã é uma ilusão da minha boca
(pensa ela) enquanto olhas na romã imperecível
a idade das coisas que se arrugam. Olho ainda o pó
na moldura dos teus dedos antes de atirar fora o caroço.
Saio da sala e tomo a rua paralela à dos teus lábios.
Não me encontrarei contigo no infinito
porque eu caminho no chão e tu azedas na parede
suspenso por um fio do gomo de laranja.
In O Mundo não acaba no Frio dos teus Ossos
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