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Desejo e Espiritualidade em La Parcela de Alejandro Simón Partal
Por Victor Oliveira Mateus Publicado em Ensaio, Espanha, Literatura a 19 de Junho, 2022 1690 palavras
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La Parcela (Caballo de Troya, 2021) é a primeira incursão no romance de Alejandro Simón Partal, cuja obra poética obteve já, de entre as várias distinções, os Prémios Arcipreste de Hita (2017) e Hermanos Angensola (2019). Em termos de galardões, ao presente romance foi igualmente atribuido o Prémio Cálamo (2021). É doutorado em Filologia Hispânica e investigador associado da Universidade de Salamanca; distribui a sua atividade pela Poesia, Romance, Ensaio e Ensino Universitário.
Em La Parcela, é-nos narrada a viagem – simultaneamente interior e exterior – de um professor universitário espanhol de trinta e doís anos para Bolonia, perto de Calais, onde acaba por vivenciar uma aventura amorosa com um refugiado sírio (Nizar) ligeiramente mais novo, que naquelas paragens aguardava a oportunidade de passar para Inglaterra e que ele havia conhecido num autocarro (pp 87-90) nos arredores de Calais. O autor desenvolve, neste livro, um conceito específico a que chama: o amor radical, que é aquele que pressupõe uma entrega total e, ao mesmo tempo, coarta o mecanismo dos desejos (1): “pouco a pouco comecei a entender que Bolonia não me impedia o desejo, mas tão-só a desmesura dos desejos” (2). Este amor radical comporta na sua estrutura duas instâncias que o fundamentam: a autenticidade e um vínculo necessário com a transcendência, como o autor enfatiza numa entrevista que concedeu: “Sem transcendência minimizamo-nos, empobrecemo-nos, porque nos limitamos ao palpável, quando quase tudo o que nos sustém é aquilo que não podemos ver nem tocar “(3). Estamos, pois, ante uma conceção de amor, que, ao contrário de Platão, assume a materialidade e o corpo, fazendo-nos mesmo lembrar a exclamação de Gabriel Marcel: “Eu sou o meu corpo!”, mas assume-o tentando expurgar dele o excesso e a gratuitidade, não é, pois, por acaso que o tema das lições deste professor é a análise da obra de Montaigne, já que neste filósofo “estão as noções mais elementares de liberdade e igualdade, muito mais atuais do que em alguns tratados dos nossos dias” (4), e em certo momento de uma aula ele decide mesmo comentar uma frase do filósofo “para explicar a relação de Montaigne com o seu amigo Étienne de La Boétie, que converti em seu amante acrescentando assim mais intensidade à história” (5). Esta visão espiritualizante do Amor e do Amado, este Rito de Sacralização a que o Outro é submetido, afasta decididamente este romance das experiências de um certo realismo decadentista, como a de Hollinghurst em “The line of beauty”, e aproxima-o, pelas marcas de poeticidade e de reflexão, de dois monumentos deste tipo de literatura: o “Camere Separate” de Pier Vittorio Tondelli e, até mesmo, desse clássico que é o “Terre Lointaine” de Julien Green.
No romance que aqui nos ocupa estamos perante um narrador autodiegético, que, por ser também a personagem principal, vai tecendo a linha narrativa intrínseca à ação principal e articulando com ela, por encaixe, todas ações secundárias, quer estas – por analepses – remetam o leitor para momentos do passado, quer sejam momentos presentificados através de ações dos seus colegas de faculdade. Relativamente aos momentos do passado o narrador rememora os que foram vividos com o pai, que agora vai agonizando com um cancro na garganta, e que se lhe apresenta, apesar da distância física, através da memória ou da imaginação: “Tão-pouco depois da operação à garganta, voltei a ouvir a voz de meu pai. Minto. Ouvi-o em sonhos, onde ele tinha uma voz angustiada, uma voz que apurava as palavras; ele fundia-se com o mar, tentava revelar-me algo decisivo, mas apenas engolia água enquanto se ia afastando cada vez mais, e da sua boca saíam bolhas e ruídos de impotência até que, aos poucos, desaparecia na obscura profundidade.” (6), esta relação com o pai é, para mim, uma outra vertente do amor radical já referido anteriormente e que neste livro tem uma função dual: a) redentora (veja-se o que o narrador diz sobre os enfermos e a aprendizagem da morte- à imagem de Montaigne- na página 30), que vai ao ponto de aproximar este livro de outros romances que abordam esta temática como, por exemplo, o “L’amour soudain” do israelita Aharon Appelfeld; b) elucidativa – exemplo: a acusação feita à vida da mãe (pp 146-147) que se lhe apresenta vazia e repleta de finitudes, aliás, este olhar para o estatuto da finitude irrompe em outras obras de Simón Partal, atente-se ao seguinte dístico: “El dolor tiende a la finitude:/ exige limites” (7). Esta triangulação relacional: protagonista/pai/mãe, a nível psicanalítico, pode estar em consonância com as experiências vividas no mundo contemporâneo, mas demarca-se de grande parte das narrativas clássicas com vivências semelhantes, veja-se, por exemplo, o The Charioteer de Mary Renault, onde nos capítulos 4, 5 e 6 Laurie deixa clara a forte adoração pela mãe, que, apesar de já viúva, ainda encontra resistências no filho ante o pastor Straike com quem ela pretende refazer a vida.
Nas entrevistas acima referidas, Simón Partal tem a preocupação em afastar o seu livro da prosa poética, preocupação com a qual concordo, mas que não impede que, aqui e ali, a subtileza e a pertinência da função poética irrompam como modo de complemento ou ilustração: “Que força convoca a manhã que é capaz de levantar, com um lento amanhecer, os que têm um coração cansado? Que estranha confiança traz para que a acolham, todos os dias, aqueles que já se tinham abandonado a si próprios?” (8); “Porque as pedras da calçada abrem caminhos quando já não temos rumo. Formam o tapete áspero do tempo e, no entanto, sobreviver-me-ão, sobreviver-nos-ão. Permanecerão juntas, quando já aqui não estivermos, quando ninguém nos recordar…” (9), esta preocupação em afastar o seu livro da prosa poética, não o impede de ter em mente o que é para si a poesia: “Considero a poesia mais como uma forma de estar no mundo do que como um trabalho literário” (10).
Mas não é só relativamente à prosa poética que Simón Partal traça fronteiras, já que nessas entrevistas afirma não ter pretendido escrever um livro social nem político, asserção que aceito, acrescentando, todavia, que esta vinculação do amor à transcendência não é uma levitação abstrata, mas um estar-aqui através de todos os aspetos do humano – incluindo o social e o económico (11) – e é na urdidura de todas essas variáveis que a maestria de Partal atinge o seu ponto mais alto, ao saber dosear na justa proporção: aspirações, fracassos, desejos, frustrações e vontade de recomeço.
Importa também advertir que La Parcela jamais cai em quaisquer tipos de cultismo ou de hermetismo de exibição, coisa que poderíamos ser tentados a pensar dado o constante tom reflexivo, assim como as enumerações de autores (Montaigne, Santo Agostinho, Pascal, William Blake, o cardeal Walter Kasper, etc.), as referências eruditas são sempre solicitadas pelo desenrolar da ação e/ou pela estrutura do texto, jamais surgem como excrescências de péssimo estilo: umas vezes essas marcas do discurso surgem de forma nítida como na página 91: “Tinha comentado, nas minhas aulas as viagens ao norte de África de poetas franceses e espanhóis que iam em busca de sexo, peles lisas e juventude” (12); outras vezes, essas marcas de saber ou de espiritualidade estão de tal modo imbuídas na ação, que dificilmente as vislumbramos, como por exemplo a seguinte passagem da página 124: “ Estou num bom lugar, repeti várias vezes como se fosse um salmo.” Agora comparemos essas palavras com o segundo verso do Salmo 23: “Javé é o meu pastor. / Nada me falta. / Em verdes pastagens me faz repousar;/ para fontes tranquilas me conduz,” (13).
La Parcela apresenta-se-nos, por conseguinte, como a radiografia natural e espiritual de um homem chamado a habitar, numa parcela do universo, essa parcela de absoluto, onde os apelos bio-fisiológicos e culturais (álcool, drogas, raves, bares, saunas, sexualidade, “encontros” de ocasião…), muitas vezes, tomam a dianteira sobre a vontade e a razão, mas que, no mais fundo de si, se apreende em concordância com a expressão latina (e também de acordo com um título do já referido Gabriel Marcel) como Homo Viator. Nenhuma queda, por maior que possa ser, lhe suprimirá o desejo dessa parcela de Amor que, melhor ou pior, todos os dias vai construindo no seu aqui, daí eu concluir com uma constatação, que, a certa altura, o narrador faz num dos seus momentos de silêncio: “Uma pessoa que passa uma terça-feira numa igreja é alguém que se oferece, que se mostra disponível para o que possa acontecer. Ali sentado, uma pessoa pode perceber como a eternidade desce nessas horas de uma manhã de outono. Poucos atos são tão subversivos como passar a semana sentado numa igreja fazendo parte da serenidade que ali acontece, protegido da intempérie que o espera do outro lado da porta.” (14).

(1) Cf. Diário Digital La Nueva Crónica, 2022/03/14;
(2) In La Parcela, p 85. Todas as traduções deste ensaio são de minha autoria;
(3) Cf. Entrevista referida acima in La Nueva Crónica;
(4) Cf. Entrevista concedida ao Periódico Digital Heraldo de 2022/03/14;
(5) In La Parcela, p 76;
(6) Idem, pp 78-79;
(7) In “La Fuerza Viva”. Valencia: Editorial Pre-Textos, 2017, p 27;
(8) In La Parcela, p 85;
(9) Idem, p 153;
(10)Cf. Entrevista referida acima in La Nueva Crónica;
(11) Cf. La Parcela, p 17, pp 22-23, p 47, p 75, p 131;
(12) Acerca deste tema poder-se-á ler o modo como Gide experienciou a tríade: experiências vividas, espiritualidade e relacionamento com Óscar Wilde e Alfred Douglas, In André Gide. Si le grain ne meurt. Paris: Éditions Gallimard, 2018, pp 285-362;
(13) Bíblia. Apelação: Paulus, 1993, p 730;
(14) In La Parcela, p 73.


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