A identidade no romance cabo-verdiano e o paradigma comparativo entre O Escravo e Bom Crioulo
Da tragédia brasileira à esperança cabo-verdiana
A literatura cabo-verdiana, nascida sob o signo da resistência cultural, constitui uma das expressões mais significativas da consciência pós-colonial dos países africanos que têm o português como língua oficial.
O romance O Escravo, de José Evaristo de Almeida, publicado em 1856, marca de modo incontornável o início de uma literatura nacional de ficção, sendo, com justiça, considerado o primeiro romance cabo-verdiano e um dos primeiros romances produzidos em África durante o longo período colonial português. A sua publicação constitui uma afirmação política e identitária de incontornável alcance.
Este primeiro romance cabo-verdiano, escrito em língua portuguesa, inaugura uma consciência literária e social marcada pela tensão entre tradição e modernidade, entre as particularidades arquipelágicas e as influências externas. A obra de Evaristo de Almeida, ao dar voz a experiências, afetos e dilemas locais, estabelece um marco de legitimação cultural e histórica, situando-se como referência da literatura africana de expressão portuguesa, cujas repercussões se prolongam até aos debates contemporâneos sobre identidade, miscigenação e crioulização.
A publicação de O Escravo, em pleno século XIX, num contexto em que a escravatura ainda estruturava a economia e as hierarquias coloniais, constitui um acontecimento de incontornável alcance político, moral e literário. O romance antecipa, por vias narrativas e simbólicas, a reflexão que as literaturas africanas de expressão portuguesa viriam a aprofundar apenas décadas mais tarde: a tensão entre a condição subalterna do homem africano e a possibilidade de emancipação pela consciência e pela palavra. José Evaristo de Almeida propõe uma narrativa que, embora ancorada nos modelos estéticos do romantismo e do realismo moralizante, já contém a semente da crítica à desumanização e à ordem colonial. O Escravo é, neste sentido, uma obra de referência não apenas pela cronologia, mas pelo conteúdo simbólico. Este romance traduz, pela primeira vez, a consciência da miscigenação cultural e linguística como núcleo da identidade cabo-verdiana. É um romance de aprendizagem e de resistência, em que a escrita serve de mediação entre a experiência individual e a consciência nacional.
O romance cabo-verdiano afirma-se, assim, como o texto fundamental para uma literatura que se pensa a si mesma enquanto nação e destino coletivo. Evaristo de Almeida produz uma narrativa de síntese civilizacional, evidenciando a enunciação de um sujeito que, ao narrar-se, descobre a sua própria historicidade e consciência nacional numa estética de rara maturidade literária no espaço africano de língua portuguesa.
O Escravo transcende, portanto, o valor local ou documental e converte-se num gesto de fundação. Sendo inaugural no plano simbólico e político, por instaurar a possibilidade de uma literatura africana de língua portuguesa que se reconhece enquanto tal, consciente das suas contradições coloniais e da sua singularidade cultural.
Se O Escravo, em 1856, implanta uma consciência literária africana de expressão portuguesa, Bom Crioulo, de Adolfo Caminha, oferece-nos o reverso desse mesmo espelho colonial. Publicado em 1895, este romance brasileiro inscreve-se ainda sob o peso ideológico do naturalismo e da moral burguesa oitocentista. Adolfo Caminha, embora transgressor ao representar o amor entre dois homens, um negro e um branco, não logra romper com o paradigma racial e social do seu tempo. O corpo negro, em Bom Crioulo, é o corpo do interdito, o espaço simbólico onde o desejo se converte em culpa e a miscigenação em trágica impossibilidade.
Em contrapartida, O Escravo emerge de um outro horizonte histórico e espiritual. A miscigenação que transcende a mera mistura biológica ou fenotípica, sendo acima de tudo, um processo dinâmico de relação, diálogo e criação cultural. Mostrando que a identidade não é um dado fixo ou homogéneo, constroi-se no encontro com o Outro, na alteridade que instiga transformação, tensiona limites e abre caminhos para formas inéditas de expressão. Esta conceção oferece um quadro interpretativo privilegiado para compreender a literatura cabo-verdiana, onde o fenómeno da crioulização, resultado da confluência histórica de culturas africanas e europeias, configura modos de sentir, pensar e narrar profundamente singulares.
O que a linguística designa como processos de crioulização, expressão que aqui utilizo com reservas, dada a sua carga teórica e ambiguidade histórica, pode antes ser entendido como um movimento de reconfiguração identitária e linguística, no qual as culturas e línguas africanas reinterpretam os códigos coloniais a partir das suas próprias matrizes simbólicas e éticas, correspondendo, no contexto cabo-verdiano, a um processo de recomposição cultural e semântica, em que o sujeito colonizado se apropria, desestabiliza e reescreve o discurso europeu. Em Cabo Verde, observa-se um processo de reinscrição linguística e simbólica, em que a língua cabo-verdiana assume o papel de língua de resistência, de memória e de reinvenção do sujeito africano, sendo através da dela que se enunciam as vozes silenciadas pela história, que se recupera a dignidade das experiências colectivas e que se restitui à palavra o seu poder originário de fundar mundos. O crioulo, longe de ser mero resíduo de contacto colonial, assume-se como instrumento de emancipação espiritual e de criação estética. A crioulização é essencialmente um processo de hibridação cultural, que se propõe evidenciar a interação dinâmica entre heranças africanas, portuguesas e outras influências, sem reduzir a cultura a uma essência fixa ou imutável. Estamos, portanto, perante uma transculturação criativa, que evidencia o carácter inventivo, adaptativo e singular das manifestações culturais de Cabo Verde, produzindo formas originais e autónomas que refletem a complexidade linguística e cultural do país.
Em O Escravo, o amor entre o protagonista negro e a mulher mestiça não se concretiza plenamente, pelo menos não da forma idealizada ou libertadora. A relação é atravessada por barreiras sociais, raciais e morais, reflexo direto do contexto colonial do século XIX, em que as hierarquias raciais e de classe estruturavam profundamente a vida afetiva e a organização simbólica da colónia. O sentimento amoroso, embora sincero e intenso, é tratado como uma metáfora da luta pela dignidade e pela emancipação do sujeito negro, que tenta transcender os limites impostos pela ordem colonial. Nesse sentido, o amor em O Escravo é uma promessa interrompida, um gesto de resistência que, embora não encontre consumação na esfera íntima, inscreve no texto a possibilidade de uma regeneração política, ética e cultural, que será retomada e amplificada em Chiquinho (1947), de Baltasar Lopes, onde a mestiçagem ganha finalmente um sentido de pertença e construção nacional. Assim, a identidade que O Escravo propõe não é uma essência fixa, mas uma multiplicidade relacional, em contínuo devir, alimentada pelos encontros, pelas trocas e pela memória viva da comunidade. Pelo contrário, Bom Crioulo, de Adolfo Caminha, mostra como a mestiçagem e o desejo se enredam num destino trágico, revelando o impasse moral de uma sociedade que aboliu a escravatura sem abolir o racismo e na herança invisível de um poder colonial que persiste, até hoje, nas mentalidades, nos afetos e nas estruturas sociais, perpetuando hierarquias que o discurso contemporâneo não logrou ultrapassar, e que ainda hoje se mantém nas instituições e nas mentalidades, onde se erguem hierarquias fundadas na exclusão da voz não branca, numa retórica que continua a afastar o afrodescendente dos espaços de poder, decisão e representação simbólica.
Portanto, a miscigenação, longe de ser apenas um dado etnográfico, assume nas letras cabo-verdianas uma dimensão filosófica e estética. É a base de uma literatura que concebe a identidade como tecido relacional, dinâmica e transformadora, capaz de fundar pontes entre passado e futuro, entre o local e o universal. É nesse espaço de confluências e de criação estética que a literatura cabo-verdiana manifesta a plenitude da sua singularidade, configurando-se como um locus de elaboração simbólica que projeta uma consciência crítica e histórica de notável densidade, capaz de interrogar as complexidades da condição humana e de iluminar, com rigor e sensibilidade, os meandros da experiência histórica e existencial do país fundado na invenção cultural e na capacidade de transcender divisões para forjar novas identidades coletivas.
Enquanto em Bom Crioulo a miscigenação está à partida condenada à impossibilidade e à esterilidade simbólica, em O Escravo encontra não a consumação carnal, mas a possibilidade ética e espiritual de comunhão entre mundos. Um ato de reconciliação histórica que o Brasil oitocentista, ainda escravocrata e racialmente hierarquizado, não podia conceber.
A diferença entre ambos os romances é, pois, reveladora do abismo entre duas temporalidades culturais. Bom Crioulo expõe o impasse moral de uma sociedade que, embora tenha juridicamente abolido a escravatura, perpetua a indignidade da servidão através da persistência estrutural do racismo e da hierarquização social. O protagonista, de Bom Crioulo, Amaro, um marinheiro negro, ex-escravo, apaixona-se por Aleixo, um grumete branco. Adolfo Caminha ousou narrar o desejo homoerótico e interracial, rompendo convenções literárias e morais do seu tempo. A sua audácia valeu-lhe a receção escandalizada da crítica, que classificou o romance como expressão da degenerescência moral e racial, projetando sobre a figura do protagonista a metáfora da decadência social. Durante várias décadas, esta obra permaneceu como o único romance de temática homoerótica escrito em língua portuguesa.
O Escravo, pelo contrário, anuncia a emergência de uma voz africana que já não precisa de pedir autorização para existir. A miscigenação no romance de Evaristo de Almeida é ato fundador, não transgressão. Não é interditada, mas naturalizada, surge como condição fundadora do próprio sujeito cabo-verdiano.
O amor entre o homem negro e a mulher mestiça, longe de ser um tabu, torna-se símbolo de síntese cultural e de continuidade, de fecundidade social e linguística. O que em Adolfo Caminha se mostra estéril, em Evaristo de Almeida anuncia uma herança regeneradora para a reconciliação possível entre mundos.
Essa diferença é, no plano simbólico, crucial.
Enquanto Adolfo Caminha escreve a partir de uma sociedade ainda prisioneira do trauma da escravatura, onde o corpo negro permanece codificado como corpo trágico e interdito, o romance de José Evaristo de Almeida é pensado a partir de um arquipélago que transformou a mestiçagem cultural, linguística e espiritual em horizonte de sentido, fazendo dela não uma fatalidade, mas uma forma de ser no mundo. Uma ontologia insular onde o diverso se reconcilia e se recria. Em O Escravo não é o Outro que procura aceitação social. É um «eu» coletivo que se reconhece e se afirma numa atitude fundadora da consciência nacional cabo-verdiana.
Ao afirmar uma voz que fala «de dentro», pela primeira vez, o colonizado assume a palavra escrita, não como imitação da metrópole, mas como instrumento de autodefinição.
Nesse sentido, pode dizer-se que O Escravo inaugura a modernidade literária africana de língua portuguesa. Enquanto Adolfo Caminha, ao revelar as contradições da sociedade brasileira, oferece um espelho do impasse colonial e racial que Evaristo de Almeida quarenta e nove anos antes já havia transcendido, revelando, através da miscigenação, caminhos de reconciliação e transformação cultural.
Entre a esterilidade simbólica de Adolfo Caminha e a fecundidade moral de Baltasar Lopes, afirma-se o caminho da literatura cabo-verdiana como voz de síntese, reparação e esperança.
A análise cruzada de Bom Crioulo e O Escravo evidencia, em última instância, dois paradigmas civilizacionais antitéticos na forma de conceber a alteridade e o encontro entre culturas.
No contexto brasileiro, a mestiçagem surge como sintoma de culpa e fratura moral, expressão de uma sociedade prisioneira de hierarquias raciais e interditos coloniais que relegam o corpo negro à esfera do trágico e do excluído. Já em Cabo Verde, a fusão de heranças adquire uma dimensão ontológica e fundadora. Não é desvio, mas princípio estruturante de uma identidade que se inventa na travessia, na relação e na síntese. Neste horizonte, a literatura cabo-verdiana, desde O Escravo, converte-se em espaço de mediação e criação simbólica, onde o ato de narrar coincide com o gesto de fundar uma nação plural.
Na plenitude das suas raízes múltiplas, a literatura cabo-verdiana ergue-se como um monumento vivo, onde memória, resistência e criatividade se fundem com vigor e intensidade.
Em Cabo Verde, a literatura ergue-se como espaço de lucidez e de resistência ontológica, onde a palavra resgata a biografia de um povo e restitui sentido à experiência coletiva. É uma memória viva que questiona o mundo e reescreve a história, desafiando os silêncios impostos e as narrativas hegemónicas. Pela força do verbo e pela dignidade conquistada na travessia, proclama que a verdadeira universalidade apenas se realiza quando reconhece, no arquipélago de vozes insubmissas, a pulsação profunda de uma humanidade que resiste ao esquecimento e renasce, intacta, da força criadora da sua própria palavra.
Henrique Levy
Festival Literário Outono Vivo
Praia da Vitória, 26 de outubro de 2025
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