RENDEZ-VOUS (1985)
Juliette Binoche (Nina)
Jean-Louis Trintignant (Scrutzler)
Wadeck Stanczak (Paulot)
Lambert Wilson (Quentin)
Nina: uma proveniência rural, um autoconceito com algumas limitações, que, no entanto, não a impedem de chegar a Paris visando cumprir o seu desejo de ser atriz. Uma vez na capital, cruza-se com duas outras figurações, opostas entre si: Quentin, um ator fracassado, tenebroso e com fortes traços sociopáticos; Paulot, empregado numa agência imobiliária, que a ajuda a conseguir alojamento. Quentin torna-se amante de Nina: fugaz ligação, constantemente ensombrada por episódicos “regressos”, onde a sua perversidade e o desejo de destruição do Outro irão imperar; Paulot, é a outra ponta do caminho: crédulo, nutrindo por Nina um amor desmesurado e cego, mas esta, por sua vez, está presa na teia do tenebroso sociopata, pelo que a Paulot só pode conceder um elo puramente fraternal. Contudo, um terceiro homem irá irromper na vida de Nina: Scrutzler, um encenador experiente e rígido, que, apesar da sua inflexibilidade, escolherá Nina para o seu primeiro grande papel no teatro. E será Scrutzler que levará Nina a descobrir o seu talento de atriz. Rendez-vous narra-nos a história de uma jovem mulher, que, apresentando-se inicialmente com a sua candura de proveniência, verá depois inscrever-se nela essa imensidão de feridas, que desembocarão, inevitavelmente, em momentos de aprendizagem. Este Rendez-vous, este Encontro, é o que ocorre de Nina com o teatro, o que se dá no encontro de Nina com os três homens que a querem possuir, cada um a seu modo, e, por fim, é o Encontro de Nina consigo própria.
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J’EMBRASSE PAS (1991)
Philippe Noiret (Romain)
Emmanuelle Béart (Ingrid)
Manuel Blanc (Pierre Lacaze)
Hélène Vincent (Evelyne)
Ivan Desny (Dmitri)
Roschdy Zem (Said)
Neste segundo filme encontramos também, à imagem de Nina (RV), um ser ingénuo (Pierre Lacaze), que deixa a sua aldeia natal e ruma a Paris, visando concretizar (igualmente) o seu sonho de ser ator. Logo no primeiro quadro do filme apercebemo-nos de dois tópicos importantes: um, a fuga da aldeia para a cidade, que já havíamos encontrado em Rendez-vouz; dois, a estrutura de uma família rural:
Mãe: Pierrot, espera, toma isto (mete-lhe uma nota no bolso). Não digas nada ao teu pai.
Pierre: Eu não preciso.
A mãe fica a chorar, sentada num banco da pequena mercearia, enquanto o pai, em pé, junto ao balcão, a olha com a dureza estampada no rosto.
Pierre, ainda neste momento da partida, e de motorizada, não deixa de passar por casa de um dos irmãos, não só para lhe deixar a dita motorizada, mas, ao mesmo tempo, para afirmar, que, apesar de lhe ser indiferente a reação do pai, pretende que o irmão não deixe de vigiar a mãe.
Pierre: É preciso que passes por lá para a ver.
Este primeiro quadro é de farto interesse, pois não só mostra a estrutura e o funcionamento de uma família rural, como apresenta a figuração do ingénuo Pierre, que, tal como Nina, irá passar por uma série de vicissitudes que o marcarão indelevelmente. Convém aqui assinalar um aspeto importante no cinema de Téchiné: a redenção. Umas vezes alcançada pela via ascendente ou positiva (Rendez-vous, Quand on a 17 ans, Les temps qui changent, etc.), outras por uma vi tortuosa pejada de momentos de negatividade (J’embrasse pas, Alice et Martin, Nos années folles, etc.). A vasta lista de desencantos e frustrações iniciar-se-á de imediato, mal Pierre chega a Paris: crédulo, procurará alojamento em casa de Evelyne (este aspeto da errância, e da consequente procura de abrigo, que já havíamos visto em Rendez-vous com Nina, surgirá igualmente noutros filmes deste realizador)
Pierre: Bom dia, não me conhece? Pierre Lacaze, Pierrot. Conhecemo-nos em Lourdes, este verão.
Evelyne: Ah, bom! Talvez.
Pierre: Disse-me que se eu viesse a Paris, que poderia procurá-la. Estou a incomodá-la?
Evelyne: Não, não! Está de férias?
Pierre: Não, vim para Paris.
Evelyne: Bem, tenho de levar a minha mãe a sair um pouco.
Pierre: Posso pedir-lhe uma coisa? Pensei – nunca se sabe-, como é enfermeira, talvez no seu hospital haja um trabalho para mim.
Evelyne: Trabalho, trabalho, mas não é assim, é preciso tempo, um diploma…
Pierre: Tenho um certificado do fim do estágio (e estende-lhe um papel dobrado, que tira do bolso do casaco).
E é aqui que começa o descalabro existencial e moral do ingénuo e cândido Pierre. Um trabalho como lavador de loiça num hospital; uma aventura com uma mulher mais velha, que, por esse motivo, se tornará controladora e obsessiva; o relacionamento com dois velhos pederastas bem colocados na vida e o “gigolo” de um deles (Said), que é um seu colega de trabalho; o seu fracasso num curso de ator, e, por fim, a sua entrada no sórdido território da prostituição masculina. Será nesta última etapa que Pierre terá os únicos dois relacionamentos que escaparão ao ramerrão da sua descida aos infernos, mas que acabarão por soçobrar, assim como todos os outros. O primeiro, foi com um dos pederastas acima referido: Romain, um homem culto, com grande projeção no meio cultural e social, e que nunca quis com Pierre qualquer envolvimento físico e isso – incompreensível para Pierre – está patente numa conversa entre ambos, quando Romain “tropeça nele” no habitual jardim, onde Pierre passara a vender o corpo para sobreviver.
Romain: Eis o meu anjo de Natal!
Pierre: Não sei para onde ir.
Romain: Todos na miséria, e todos sem se importarem da miséria uns dos outros. Se procuras inspirar piedade aqui, não vais conseguir coisa alguma.
Pierre: Não procuro nada.
Romain: Nada de prazer, nada de sentimentos, apenas dinheiro.
Pierre: Sim, é isso, apenas dinheiro.
Romain: Se quiseres vir comigo, parto em breve para o estrangeiro.
Pierre: Não quero ter nada consigo.
Romain: Não te preocupes, para isso não preciso de ti.
Este desajuste entre expetativas e concretizações, entre estas duas personagens, surge de modo insofismável, já perto do final do filme, quando se torna claro que Pierre nunca havia percebido os intentos de Romain. O nível de degradação a que Pierre já tinha descido não lhe permitia entender a mera amizade que lhe era proposta, por uma portentosa figura da sociedade. O segundo equívoco ocorre com Ingrid, uma jovem prostituta que, como ele, trabalhava no mesmo jardim: aqui as expectativas de Pierre são francas, arrebatadas e repletas de autenticidade, mas os escolhos acabam por, mais uma vez, prevalecer.
Romain: (…) o que mudaste!
Pierre: Ah, bom! Mudado como? Para bem ou para mal?
Romain: Para bem e para mal. Tu estás mais belo, com o mesmo olhar.
Pierre: Continuo o anjo do Natal?
Romain: Sim. Uma mistura… Mas que puta me saíste!
Pierre: É o que sou. É a minha profissão. Como vês cheguei lá.
Romain: Estás a falar verdade?
Pierre: Sim, claro. Estou feliz, como se vê.
Romain: Isso faz-me lembrar qualquer coisa, deixa ver, é sobre o “dom de si”, está em Nietzsche! Escuta (pega num livro): “Não existe nenhum prazer nobre que não possa conduzir à prostituição”. Isto acalma-te, não?
Pierre: Eu não preciso de ser acalmado.
Romain (continuando a ler): “O ser mais prostituído é Deus”, bem, isto já não é contigo: “O amor pode derivar de um sentimento generoso do fim da prostituição, mas ele evita a corrupção do sentido de propriedade.”
Pierre: Não te esforces, não estou a perceber nada. Se queres ir para a cama comigo, estou de acordo
Romain: Apetece-te. É isso? Não me apetece. Tu nunca foste o meu género.
Pierre: O quê, então? Dizias que me querias conhecer.
Romain: Não sei. Tenho a impressão de que é demasiado tarde. O meu objetivo era ajudar-te.
Pierre: Ajudar-me? Não faz o género. Querias-me como assistente.
Romain: Tu não és capaz de ter confiança.
Pierre: A confiança de que tu falas…
Romain: Por que vieste ver-me?
Pierre: Não sei, precisava de falar com alguém.
Romain: Falar de quê?
Pierre: Não sei. Encontrei uma rapariga, mas ela tem um gajo e eu não sei o que fazer.
Este diálogo, um dos mais significativos do filme, traz à tona alguns aspetos: um, o quão longe estava já este Pierre daquele outro que chegara a Paris visando concretizar o sonho de ser ator; dois, que o relacionamento entre estas duas figuras assentara numa súmula de equívocos, tal como acontecera na relação de Pierre com Evelyne e, mais tarde, com a sua aventura com Ingrid; três, que à redenção positiva de Nina (RV) se contrapunha agora a redenção acidentada e tortuosa de Pierre.
O relacionamento de Pierre com Ingrid é o único em que ele se deixa contagiar pelo fervor da paixão: ambos faziam o trottoir no mesmo jardim, mas no dia em que Ingrid é detida, Pierre faz-se prender só para estar junto dela, só para, na carrinha da polícia, se poder sentar frente a ela
Ingrid: Queres uma foto minha?
Pierre: Eu chamo-me Pierre, e tu?
Ingrid: Eu chamo-me “Esquece”.
É a única vez em que o Pierre do início do filme consegue espreitar: o menino desarmado, o menino dos sonhos inabaláveis. Se Pierre não conseguira entender o poderoso e culto Romain, com Ingrid seria diferente; agora não havia de permeio as sinuosidades da cultura livresca, agora falavam ambos a mesma linguagem: neles ser e aparências eram absolutamente coincidentes
Pierre: Por que escolheste esta profissão?
Ingrid: E tu?
Pierre: Por dinheiro.
Ingrid: Eu quis ser cantora. Tinha uma banda. Fui a um concurso.
Pierre: Isso foi onde?
Ingrid: Em Nice. Conheces Nice?
Pierre: Não. Nunca fui ao pé do mar.
Ingrid: É super!
Pierre: O que vais fazer agora?
Ingrid: O quê? Queres dormir comigo? Ou não te apetece?
Pierre: Claro que quero.
Ingrid (rindo): É a primeira vez que engato em pleno dia. E tu?
Pierre: Eu também (voltam a rir).
Ingrid poderia ter sido a única figura capaz de recuperar o Pierre Lacaze do início do filme, no entanto, o jogo deles acabou tornando-se demasiado perigoso, já que o “homem” dela, desconfiando do que se estava a passar, juntamente com uns amigos, rapta Pierre e levam-no para um descampando, onde ele, forçando Ingrid a assistir, viola Pierre, ficando, desse modo, clara a subtil hierarquia das masculinidades, bem como os estatutos dos vários poderes em cena, e, sobretudo, a definitiva anulação daquele Pierre, que, cândido e ingénuo, havia um dia chegado a Paris cheio de sonhos e de inocência.