menu Menu
Figurações da Subjetividade na Filmografia de André Téchiné ( Parte 3 )
Por Victor Oliveira Mateus Publicado em Artes, Cinema, Portugal a 2 de Abril, 2025 3072 palavras
Figurações da Subjetividade na Filmografia de André Téchiné (Parte 2 ) Anterior Figurações da Subjetividade na Filmografia de André Téchiné (Parte 4) Seguinte

LES ROSEAUX SAUVAGES (1994)

Élodie Bouchez (Maité)
Gael Morel (François)
Frederic Gorny (Henry Mariani)
Serge (Stephane Rideau)
Michelle Moretti (Mme Alvarez)

Os Acordos de Évian assinados em 18/03/1962, entre a França e o Governo Provisório da República da Argélia, estabelecem o cessar-fogo entre essas duas entidades, contudo, não firmam definitivamente a paz, já que uma série de massacres continua. Estes Acordos aumentam a sensação de abandono dos franceses nascidos na Argélia, que começavam a ser expatriados para França, e, como se não bastasse, os ditos Acordos haviam seguido o estabelecido por um referêndum feito em França, mas do qual os franceses que viviam na Argélia tinham sido excluídos. A sensação desses agora “exilados” – designados por “pied-noir” – de terem sido traídos fomenta o seu ódio ao governo francês e às forças de esquerda a quem responsabilizam pelo levar à prática dos ditos acordos. É este o cenário social e político, quando Henry Mariani, um “pied-noir”, chega a um pacato liceu de uma pequena localidade. Com Henry, a defesa dos seus, massacrados, e o seu ódio aos franceses e aos comunistas, assim como a guerra da Argélia acaba por entrar no liceu, não só ao nível do relacional, mas também porque este conjunto de interações trará à superfície o que são aqueles que com ele irão privar diretamente: os seus anseios, os seus medos, os seus desejos: figurações múltiplas tantas vezes opositivas. De certo modo Henry, embora com outra figuração, faz-nos lembrar o intruso (um deus? Um anjo?) do “Teorema” de Pasolini.
Numa das primeiras cenas surgem-nos algumas das personagens principais, que irão percorrer o filme com a sua dialética de aproximações e recusas: durante o copo-d’água do casamento de um ex-aluno de Mme Alvarez (a mãe de Maité), François (um adolescente ávido de saber e dilacerado pelo turbilhão da sua sexualidade) conversa com Maité (uma jovem comunista, tal como a mãe), Serge (um adolescente da região, preso aos hábitos e costumes dela) vem pedir a Maité para dançar, esta, delicadamente, recusa dizendo que não sabe dançar a valsa.
Maité: Tu conhece-lo?
François: Sim, mas é um idiota.
Maité: Ele é o irmão do noivo.
François: Acho que não gosta de mim.
E será em torno destas figuras, às quais se irá juntar Henry, que todo o filme destecerá a sua urdidura de atrações, repulsas, ambições e desejos.
O primeiro embate dá-se logo numa das primeiras aulas, quando Mme Alvarez entrega aos alunos os trabalhos que eles haviam redigido sobre um poema: a professora considera existirem dois trabalhos de nível bom: o de François Forestier, que comentara um poema de Rimbaud, e o de Henry Mariani, que também escolhera Rimbaud para comentar, contudo, este último trabalho estava cheio de falsidades. Aqui ocorre o confronto entre a comunista Mme Alvarez e o pied-noir Henry, que, no entanto, pergunta à professora que nota teria se o seu texto fizesse parte de um exame, Mme Alvarez responde-lhe que, caso fosse ela a corrigi-lo, seria implacável e dar-lhe-ia zero.
O entrecruzar dos comportamentos vai seguindo um percurso cada vez mais complexo, através do qual as personagens vão revelando, a si próprias e aos outros, aquilo que realmente são. Tal como o já referido Pierre Lacaze (JEP), será pelo acúmulo das experiências vividas que a Subjetividade de todas estas figuras se construirá, seguindo depois numa direção ou em outra.
Num destes momentos, e a propósito de experiência vivida, Serge e François espreitam a corpo um do outro. François, o que é já significativo, diz que detesta o seu corpo.
Serge: O que tem a tua pele? Tens borbulhas? Mostra lá! Bates pívias muitas vezes?
François: Sim, às vezes. E tu?
Serge: Todas as noites. Pelo menos uma vez, e penso na filha de Mme Alvarez (Maité) quando o faço.
Na sequência da conversa, Serge propõe que se masturbem, mas isso não impede que acabem por se agarrar um ao outro e que façam sexo: eis a adolescência, a descoberta da sexualidade, com o seu fascínio e os seus tormentos: um Serge tradicionalista e de heterossexualidade bem cimentada e um François atormentado por acabar de descobrir a sua homossexualidade, coisa que só poderá confessar à sua maior amiga, num novo embate entre as personagens:
François: Eu sei absolutamente porque preciso de ti. Tu tranquilizas-me. E tu, sentes, o mesmo? Só estranho que nunca se tenha passado nada entre nós, e a mim não faz falta. E a ti, faz-te falta ou não? Preciso que me respondas, Maité.
Maité: Se bem percebi, dormiste com alguém e isso perturba-te. Espero que tenha sido bom.
François: Não sejas cínica.
Maité: Não sou cínica. Eu também ando contigo para me proteger, para fugir. Detesto grandes paixões. Quando o meu pai deixou a minha mãe aprendi a lição. Essas mulheres, marcadas pelos homens como rezes para o matadouro. Antes de te conhecer, não sabia se devia dar-me a todos ou a nenhum, o que, no fundo, vai dar no mesmo. Felizmente chegaste. Amo-te, porque nunca serás um inimigo para mim, faças o que fizeres.
François: Dormi com um rapaz… Diz qualquer coisa.
Maité: Que queres que te diga? Não há nada a dizer. Não ponhas essa cara! Para mim, nada mudou! Estou-me nas tintas para o que fazes com os outros. Só conta o que existe entre nós, e isso sobrepõe-se ao resto, não é?
E é assim, de etapa em etapa, que este grupo de adolescentes se irá descobrindo: a firmeza e a maturidade de Maité, a fragilidade e a angústia de François, a ruralidade e a conformidade de Serge, a revolta e a hostilidade de Henry. E será também deste modo, entre aproximações e confrontos, que eles, apesar de tantas diferenças, acabarão por partilhar muita coisa sólida e edificante.
Entretanto, dois acontecimentos virão ensombrar o já atribulado quotidiano do grupo: um, o irmão de Serge – militar – durante o seu casamento pedira a Mme Alvarez que o ajudasse a desertar, pois constava-se que os comunistas faziam tal coisa com frequência. Mme Alvarez recusa o pedido, e o irmão de Serge acabará por morrer na guerra, o que atirará para a sua ex-professora a voragem da responsabilidade e da culpa, voragem essa que acabará por a conduzir a uma hospitalização por razões emocionais; dois, a atração entre Maité e Henry vai-se tornando insistente, a hostilidade entre as diferentes posições políticas não consegue estancar o que ambos começam a sentir, e isso denuncia-se na hostilidade e na denegação com que Maité se refere a Henry, quando François se encontra com ela num Centro de Trabalho do Partido Comunista, e, sem perceber o que Maité começara a sentir, tenta reabilitar Henry a seus olhos
Maité: Podes ficar com esse sacana do O.A.S. só para ti!
François: Não é preciso seres agressiva.
Maité: É, sim, há que fazer opções. Para que te dás com ele?
François: Ele não é nenhum diabo!
Maité: Não, porque o diabo não existe, mas os fascistas sim, e não me fascinam.
François: Esquece. És tão sectária como a tua mãe, não podes compreender.
Maité: Compreendo perfeitamente. Tu é que te estás a esconder da verdade. Por uma vez sê sincero. O sacana agrada-te fisicamente?
François: Por que perguntas? Nunca pensei nisso!
Maité: Já é tempo de pensares!
François: Porque reduzes tudo ao sexo?
Maité: Primeiro o Serge, agora este! É lamentável que não o assumas!
François: …
Maité: O que foi?
François: Acho que tens razão.
Maité: Não vale a pena fazer disto uma doença, não é grave. Acalma-te.
François: Estou confuso. É verdade. Apetece-me dormir com o Serge, com o Henry. Oxalá não me apareça um terceiro para a semana. É horrível! Que irá ser de mim? Porque me aconteceu isto a mim?
Maité: Não exageres, François!
François: Não exagero. É uma maldição!
Maité: O Cassagne, por exemplo, não se sente amaldiçoado. Vive com o companheiro e são muito felizes.
François: Quem é esse?
Maité: É meu vizinho.
François: Estás a falar do Cassagne da sapataria?
Maité: Sim.
Mas o drama do autoconhecimento não será uma exclusividade de François, e Maité pagará também a sua quota parte nesse processo, já que a atração entre ela e Henry, até então contida, acabará por irromper com uma violência inaudita: Henry, afirmando-se maior, abandona o colégio, não sem antes comprar um jerrycã e deitar fogo a um cartaz do Partido Comunista, não satisfeito com esse ato dirige-se ao Centro de Trabalho do referido Partido com o intento de o incendiar também, só que Maité está lá dentro, veem-se e o incêndio que irá irromper será de outro tipo, embora igualmente danoso. Maité, ao saber o que Henry tinha tentado fazer, expulsa-o do Centro de Trabalho, ele, por sua vez, acabará dormindo num hotel, no entanto, nesta teia de encontros e desencontros, os três (Maité, François e Serge), para comemorarem a sua passagem de ano, dirigem-se ao lago para se banharem, só que encontram Henry, e os três passam a quatro. Maité, que comprara um horroroso fato de banho amarelo, esconde-se com medo de se mostrar, mas François não entende a razão desse medo.
François: Estou a brincar. Fica-te bem. Esse amarelo é muito bonito, faz lembrar os girassóis de Van Gogh.
Maité: Ah, bom! Lembra-te um girassol, mas isso ainda é pior do que um canário! Estou desesperada!
François: Mas o que é que tens?
Maité: Deve ser dos exames. Tu não estás nervoso?
François: Nadinha. Estou com pessoas de quem gosto e sinto-me feliz. Anda lá!
Maité: Ah, não! Por favor, não insistas.
François: Vais passar aqui o dia sozinha?
Maité: Porque não? O sítio é bonito
François: És maluca ou quê?
Maité: Tenho medo, François. A sério, tenho medo.
Mas o ingénuo François não conseguia perceber a razão dos medos da corajosa e sempre perentória Maité.
François: Não te vais pôr nesse estado por causa de um fato de banho, e, no pior dos casos, não tomas banho, mas tenho pena de ti, porque com o calor que está, vais sofrer.
Maité: O Henry está a tomar banho?
François: Não, só lá está o Serge, e eu vou ter com ele, tenho de me refrescar. Até já!
Mas Henry estava por perto, observando.
Maité: Fico ridícula com este fato de banho.
Henry: Não deixei de pensar em ti. Sabes o que fiz? Vendi o meu relógio, e tinha-lhe muita estima, era do meu pai. Foi para pagar o hotel. Todos os dias pensava: “Tenho de voltar a vê-la!”
Sentam-se. Beijam-se. Fazem sexo.
Maité: Cala-te! A que horas é o teu comboio?
Henry: Às seis, mas já não tenho relógio.
Maité: Tens de te despachar.
Henry: Não faz mal, apanho o próximo. Há outro de manhã. Assim podemos estar mais tempo juntos, a menos que… E se viesse comigo?
Maité: Não, não é possível.
Henry: Por que não é possível? Amo-te, tenho a certeza.
Maité: Também te amo, mas isso não é razão para viver com alguém.
Henry: Então, de que serviu que nos tivéssemos encontrado?
Maité: Porque é que tem sempre de haver um propósito? Achas que a vida tem algum propósito? Julguei poder ter-te dado algum alento e esperança. Tu deste-me.
Henry: Quero ficar contigo.
Maité: Não, tens de ir.
Muitas vezes, basta à força desmedida um ligeiro sopro, para que ela estremeça. Serge e François saem do lago, vestem-se. Perguntam-se por Maité. François grita por ela, ao fundo vê-se Henry a caminho do comboio para Marselha, para ir ter com a mãe. Subitamente começam a ouvir-se os gritos de Maité, cada vez mais perto.
Maité: François! François! François!
François: Mas o que tem ela?
Serge: Vai lá ver
Mas Maité surge já perto deles, agarra a cabeça de François e beija-a sofregamente.
Maité: Julguei que tinhas desaparecido.
François: Tu é que desapareceste. E o Henry, onde está?
Maité: Foi-se embora, tinha de apanhar o comboio das seis.
François: Mas o que tens tu?
Maité não responde e continua, com a cabeça de François entre as mãos, beijando-o desesperadamente. Serge, lívido, observa à distância.
O final do filme acena-nos a fábula de La Fontaine que lhe dá o título: o vento percorre as árvores, pode até, eventualmente, derrubar uma ou outra, mas estas três figuras, quais juncos silvestres, abanarão para um lado e para outro, mas jamais se quebrarão ante o temporal, e, os três de braço dado lá vão desaparecendo na paisagem.

-*

LES VOLEURS (1996)

Catherine Deneuve (Marie Leblanc)
Daniel Auteuil (Alex)
Laurane Côte (Juliette Fontana)
Benoît Magimel (Jimmy Fontana)
Julien Riviere (Justin)
Fabienne Babe (Mireille)
Ivan Desny (Victor)

Nem sempre aquilo que nos é roubado se restringe à materialidade, já que, juntamente com esse saque, são-nos arrancados igualmente bens espirituais: a confiança, a esperança, a capacidade de sonhar, etc., e é disso que André Téchiné fala, embora de modo sibilino, no seu Les Voleurs (Os Ladrões).
Ivan Noel administra um clube noturno ligado a negociatas ilícitas; ao mesmo tempo, como bom “empresário do crime” que é, gere uma rede de roubo e tráfico de automóveis. Ivan tem como braço direito, nas suas atividades sujas, Jimmy Fontana, o irmão de Juliette Fontana, esta, por sua vez, para além de manter uma relação amorosa com Alex – o irmão de Ivan – e com Marie Leblanc, uma professora universitária da área da Filosofia, circula também à volta do grupo de Ivan, e está mesmo envolvida no episódio que custara a vida a Ivan: um roubo de automóveis novos na gare de Vénisseux, episódio onde também um segurança fora morto. Será a partir deste nó relacional que Téchiné nos irá mostrar toda uma história de assassinatos, suicídios, assaltos, roubos, mas também de paixões e redenções.
Ora, certo dia, Ivan aparece morto, acontecimento que Victor, o seu pai, tenta justificar de imediato como um “acidente” e fazendo mesmo a menção de incinerar o corpo.
Esta é a versão de Victor para o pequeno Justin, seu neto e filho de Ivan. Ante o incidente, Alex, o outro filho de Victor e, por conseguinte, irmão do morto, chega à casa da família, mas vem acompanhado de uma mulher: Juliette Fontana. Victor não simpatiza com este seu filho, que havia rompido com a família e entrado para a polícia. Com esta receção fria de Alex liga-se um outro episódio: o pequeno Justin surpreende Juliette a tentar beijar a boca do morto. Alex conhecera Juliette na sua esquadra de polícia em Lyon-La-Duchère, onde ela havia estado detida, os dois acabam por se envolver numa relação, mas, no entanto, Alex descobre que Juliette mantinha também uma relação homossexual com Marie Leblanc, uma professora universitária da área da filosofia, será mesmo em casa desta última, que Juliette, num dos seus episódios de instabilidade psíquica, se mutila na boca com um copo partido. Marie Leblanc, confia Juliette aos cuidados do seu ex-marido, o psiquiatra Lucien, contudo, este não consegue opor-se à vontade de Juliette de abandonar a clínica, acontecimento que deixa Marie furiosa, mas acabando por aceitar, de facto, a nova situação. Marie Leblanc e Alex, apesar de não confiarem um no outro, estabelecem o pacto de se irem informando um ao outro acerca do andamento das investigações policiais, nomeadamente do facto do retrato robot de Juliette poder surgir como sendo o de um rapaz. Jimmy Fontana, o eventual sucessor na chefia das negociatas de Victor – agora com um filho morto e o outro como polícia – por sua vez, nada diz sobre os acontecimentos, o que é, obviamente, um desafio a Alex, que ele sabe que não iria trair a família.
Um novo embate na ação do filme acaba por acontecer: Marie Leblanc suicida-se, não sem antes enviar a Alex um manuscrito com cassetes. A princípio Alex desloca-se a Marselha, para entregar essa encomenda a Juliette, contudo, acaba por não o fazer, e, vendo que Juliette refizera a sua vida, ele percebe que fora a si que Marie Leblanc doara as cassetes, onde ela, no seu curso de filosofia, falava: numa, da coexistência do horror no ser humano; na outra cassete, Marie, cita Peguy, a propósito da dificuldade de restituir o sabor a uma obra de arte: isso é tarefa tão difícil como apanhar um coelho bravo; estas duas cassetes apresentam-nos assim a síntese possível da ação narrada ao longo do filme. Referi, numa das análises anteriores deste ensaio, a problemática da redenção na obra de Téchiné, e é interessante regressar aqui a esse tópico, já que este filme relatando a hediondez do humano, não deixa de acenar laivos de positividade: o jovem Justin consegue um novo pai, já que Mireille – a viúva de Ivan – terá agora uma nova relação afetiva, Juliette refizera a sua vida em Marselha, Alex continuará a sua luta contra as forças do mal, e mesmo o suicídio de Marie Leblanc pode ser entendido como aquilo que sacralizou o seu amor por Juliette, conduzindo esta última a um outro tipo de vida.


Anterior Seguinte

keyboard_arrow_up