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Figurações da Subjetividade na Filmografia de André Téchiné (Parte 4)
Por Victor Oliveira Mateus Publicado em Artes, Cinema, Portugal a 2 de Abril, 2025 2164 palavras
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ALICE ET MARTIN (1998)

Juliette Binoche (Alice)
Mathieu Amalric (Benjamin)
Alexis Loret (Martin)
Carmen Maura (Jeanine)
Jeremy Kreikenmayer (Martin em criança)
Jean-Pierre Lorit (Frédéric Sauvagnac)

Aos dez anos, Martin vive em Cahors com a cabeleireira Janine, sua mãe, e com o amante desta, Said, um motorista de táxi. Martin é filho ilegítimo de um bem-sucedido homem de negócios, Victor Sauvagnac. A mãe, contra a vontade da criança, envia-a para viver com o pai, que ele até então nunca conhecera. Victor Sauvagnac está agora casado e tem três filhos. Esta é uma infeliz mudança para a criança, e em breve Martin entra em conflito com o pai, um homem frio e rígido. Aos vinte anos, Martin muda-se para Paris, para o apartamento de um dos seus irmãos, Benjamin, este, por sua vez, gay e mais velho do que Martin, é um ator que se esforça por vencer, e partilha o apartamento com Alice, a sua maior amiga, violinista num quinteto local. Alice e Martin acabam por se envolver um com o outro. A princípio, Alice é fria com Martin, o que faz com que ele fique obcecado por ela e a comece a seguir por tudo quanto é sítio. Ao descobrir, Alice confronta-o com a desagradável situação, mas, ao mesmo tempo, começa também a ficar seduzida com as atenções dele, só que Martin é perseguido por algo do seu passado, algo negro que o atormenta. No entanto, agora com vinte anos, Martin rapidamente alcança sucesso como modelo na área da moda, contudo, e ao mesmo tempo, ele tenta conter a sua profunda perturbação interior, que insiste em progredir, e é quando Alice lhe comunica que está grávida, que se esboroa a intensa força com que Martin reprimia esse algo do seu passado que o atormentava.
Tendo abandonado Benjamin, Alice vai com Martin para Espanha, para Granada, onde ele participará num evento relacionado com a moda, mas a sua felicidade será breve, pois o comportamento de Martin começa a tornar-se cada vez mais errático e obsessivo, e é exatamente nesse momento, quando Alice lhe diz que está grávida, que o declínio de Martin se acentua, sofrendo mesmo um colapso nervoso e entrando em coma. Os médicos afirmam que se trata de um problema psicossomático. Num esforço para ele recuperar a saúde, Alice aluga uma casa junto ao mar, no sul de Espanha e ali Martin nada horas a fio, todas as noites, mas permanece ausente e perseguido pela morte do pai.
Um flashback narra-nos, então, o período relacionado com a morte de Victor Sauvagnac: a sua relação com os filhos fora sempre problemática, o distante e sem objetivos Martin não lhe agradava, Benjamin irritava-o e, numa reunião de família para tratar de negócios, acabou por se desencadear uma luta entre François e Frédéric, os dois irmãos mais novos. Martin tinha comemorado os seus vinte anos com Benjamin, que havia vindo de Paris para a ocasião, mas a referida reunião de família é interrompida por um telefonema: François enforcara-se na fábrica da família, e é quando Martin decide regressar a Paris, que há uma discussão com o pai e Martin empurra-o pelas escadas abaixo, provocando-lhe a morte. Incapaz de lidar com o que havia feito, Martin foge. Depois dele revelar que tinha matado o pai, e incapaz de continuar a suportar a dor e a culpa, recorre a uma instituição psiquiátrica. Alice, seguindo os desejos de Martin, vai a Cahors falar com os Sauvagnac. Dá-se bem com a mãe de Martin, mas Lucie, a viúva de Victor, é-lhe hostil. Frédéric Sauvagnac, um dos irmãos de Martin, que é agora presidente de câmara, também lhe é francamente hostil, mas, entretanto, chega Benjamin e impede-a de continuar a interferir nos assuntos da sua família. Lucie decide denunciar Martin às autoridades, por este lhe ter matado o marido, e Martin, por sua vez, confessa o crime e entrega-se: é preso. Alice decide ter a criança, e aparece com o seu violino, tocando num casamento. Martin, já na prisão, escreve a Alice, e na carta confessa-se finalmente em paz consigo próprio.

-*

LES TEMPS QUI CHANGENT (2004)

Catherine Deneuve (Cecile)
Gérard Depardieu (Antoine)
Gilbert Melki (Nathan)
Malik Zidi (Sami)
Lubna Azabal (Nádia)

No presente filme, Téchiné apresenta-nos uma narração interpolada, onde a ação principal vai sendo entrecortada por uma ação secundária, que, no entanto, se apresenta de algum valor, até porque ambas as ações se condicionam nos mais variados momentos. Na primeira delas ficamos a saber que Cecile havia tido uma relação amorosa com Antoine, nos seus tempos de juventude. Entretanto, essa relação terminara, Cecile refizera a sua vida: casara com Nathan, ambos tiveram um filho (Sami), e ela é atualmente uma mulher integrada na sociedade marroquina, como uma competente locutora de rádio em Tânger. Outra direção impusera a vida a Antoine, que não casara, nem, ao longo das décadas, conseguira esquecer Cecile, tornando-se, contudo, um homem de sucesso. Passados todos esses anos, Antoine chega a Tânger para vistoriar as obras de um Centro Audiovisual, que irá difundir o Islão moderado e concorrer com a Al Jaazera. O encurtar da distância física entre estas duas figuras cimenta a proximidade que sempre existira na memória de Antoine, este, fechado no quarto de hotel, e nas pausas do trabalho, fala para um gravador.
Antoine: Todas as noites oiço a tua voz, olho para esta cidade e vejo-te.
Cecile apresenta-nos uma figuração forte, decidida, racional, ao contrário de Sami, o filho: um jovem preso às emoções e aos sentimentos, que, às certezas da mãe, contrapõe uma dada fragilidade e uma docilidade afetiva, que Cecile insiste em reprimir. O primeiro embate entre ambos, e, consequentemente, o primeiro cruzamento das duas ações, dá-se logo no início do filme, quando Cecile, no aeroporto, espera o filho, que havia rapado a pera, e faz-lhe de imediato sentir as indefinições dele.
Cecile: Com ou sem pera não consigo encontrar o teu estilo.
Sami trouxera Nádia, a sua atual companheira, que, por sua vez, trouxera um filho seu de outra relação, estes factos enervaram ainda mais a mãe.
Cecile: Pões-nos sempre perante factos consumados e a gente que se desenrasque. Vamos fazer o que te der jeito, como sempre.
Em casa, Cecile tenta, em vão, estabelecer pontes com o filho.
Cecile: Fala-me de ti, da tua vida.
Por sua vez, no hotel, Antoine continua de rádio ligado, escutando a voz de Cecile. Decide mesmo enviar-lhe, para a estação de rádio, um bouquet de rosas vermelhas; a colega que lho entrega diz-lhe que ela poderá perguntar na florista quem lhas teria enviado, mas Cecile atira as rosas para o caixote do lixo.
Cecile: Prendas e cartas anónimas são para nos fazer reféns.
Sami volta, pela segunda vez, a uma vivenda que já tinha rondado, mas da qual havia fugido por causa dos cães. No lado de dentro aparece um jovem árabe. E aqui apresenta-se o tal interpolamento da narração que referi acima.
Sami: Não sabia se querias ver-me.
Bilal: Eu já te disse para entrares.
Sami: O jardim parece-me bonito, mostras-mo?
Bilal: Foi para isso que vieste?
Sami: Não, foi por ti! Em Paris não podia dar-te tudo isto.
Bilal: Não me venhas com essa de Paris. Foi divertido, mas nem pensar em lá ficar. Já te disse que não quero depender de ti.
Sami: Desculpa ter falado de Paris.
Bilal: Sempre a desculpares-te, como os europeus.
Bilal é mordaz relativamente à relação de Nádia com Sami, este responde que precisa dela, da sua cumplicidade.
Bilal (irónico e duro): Mas eu não procuro o amor, só quero que me respeitem; e tu, meio francês meio marroquino, metade homem metade mulher, deve mesmo ser difícil encontrares-te.
Apesar do tom agressivo, Bilal avança na direção do ato sexual.
Sami: Pensei que não querias.
Bilal: Não sinto necessidade, mas quando a ocasião surge…
O filme regressa à ação principal: Antoine vê Cecile na fila de pagamento de um supermercado, esconde-se atrás de uma planta alta. Cecile está com Nathan, o marido. Quando Antoine tenta escapar-se, esbarra numa porta de vidro, cai e é socorrido no local pelo marido de Cecile que é médico.
Cecile e Antoine encontram-se.
Cecile: Continuas a usar Eau Sauvage.
Antoine: Sim, sou um tipo fiel. É a minha natureza!
Voltam a encontrar-se para Cecile lhe mostrar uma vivenda para ele alugar durante a estadia, e assim sair do hotel. O carro empana e eles fazem o pouco caminho que lhes resta a pé. Conversam.
Antoine: Tenho a sensação de que te esqueceste de mim com o tempo.
Cecile: É normal. Não vivo no passado. A minha vida continuou.
Antoine: Pois, estou a ver! Comigo foi ao contrário: a ausência aproximou-me de ti. Quanto mais o tempo passou, mais senti a tua falta.
Cecile: Queres que eu acredite que tens saudades minhas há trinta anos?
Antoine: Trinta e um anos, oito meses e vinte dias, exatamente. Sempre soube que te voltaria a encontrar.
Cecile: Foi o acaso, Antoine.
Antoine: Não foi o acaso! Procurei-te! O que é que tu julgas?
Cecile: Mas o que é que queres exatamente de mim?
Antoine: Quero que envelheçamos juntos.
Cecile: Ah, meu pobre Antoine, estás completamente louco!
Antoine: Sabia que irias dizer isso. Não tem importância. Não te vou forçar. Esperarei.

Neste filme, não é apenas o facto das histórias vivenciais e afetivas estarem interpoladas, acontece também que ambas estão sujeitas a um esquema de triangulação: Cecile/ Nathan/Antoine e Sami/Bilal/Nádia. Vejamos:
Sami (para Nádia): Queres voltar para Paris?
Nádia: Não quero impedir-te de ver Bilal.
Sami: Bilal não passa de uma aventura. Não é o essencial. O que conta és tu!
Nathan tem um projeto de trabalho em Casablanca. Cecile recusa-se a acompanhá-lo e ocorre uma cena de violência.
Cecile: Só pensas nos teus interesses. Não vês os que te cercam: acaso alguma vez reparaste que o teu filho gosta de rapazes?
Nathan: Isso não é assunto que me diga respeito.

Entre Cecile e Nathan dá-se a rutura, este, por sua vez, conhece a gémea de Nádia com quem segue uma nova etapa da sua vida. Sami continua a passar noites com Bilal. Numa delas vem cá fora urinar e um dos cães morde-o numa das pernas, Bilal queima-lhe a ferida com uma chave grande em fogo (convém estar-se atento também aos símbolos, neste caso: ferida, queimar, chave em fogo!), mas será o pai, já em casa, que, suspeitando do que que passara, mas sem lhe fazer perguntas, lhe dará a injeção contra o tétano.
Cecile procura Antoine no hotel onde este se aloja.
Cecile: Antoine, o que tenho para te dizer: a tua história de amor comigo não existe. Pões ideias na tua cabeça, porque é mais fácil sonhar do que viver (…) Mas como vês estou aqui, com um corpo que já não me agrada, com uma vida a desmoronar-se. Então, o que te proponho não é o que me ofereces. Não quero uma relação para o futuro, mas gostava de fazer uma pausa. Só uma pausa antes de retomar o caminho, se estiveres de acordo.
Antoine: Uma pausa? E o que é uma pausa?
Cecile: É o que prefiro na vida. Quando nos esquecemos do propósito da viagem, deixamos de pensar no caminho, é quando paramos para respirar.
Antoine: Está bem, façamos uma pausa! Mas gostava de ir mudar de roupa, de tirar estes farrapos.
Cacile: Falei demais. Desculpa.
Deitam-se. Fazem sexo.
O filme volta aqui às cenas do prólogo: Antoine vistoriando uma vala enorme da obra é atingido por uma derrocada.
Antoine está agora hospitalizado, entubado, em coma. Cecile, senta-se ao lado da cama, fala com ele, diz-lhe que Nathan encontrara alguém, e continua falando para um Antoine em coma.
Cecile lancha agora com Rachel, uma amiga e colega de trabalho, diz-lhe que Antoine irá ser repatriado para França, para recuperar, e que ela o acompanhará.
Rachel: Nunca vi um homem como ele.
Cecile: O que é que queres dizer com isso?
Rachel: É que costumam ser as mulheres que se apaixonam desse jeito.
Numa outra visita ao hospital, Cecile continua falando para Antoine, este, entretanto, sai de coma, mexe a mão. As mãos de ambos tocam-se, agarram-se uma à outra.


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