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Figurações da Subjetividade na Filmografia de André Téchiné (Parte 5 )
Por Victor Oliveira Mateus Publicado em Artes, Cinema, Portugal a 2 de Abril, 2025 4764 palavras
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QUAND ON A 17 ANS (2016)

Kacey Mottet Klein (Damien)
Corentin Fila (Thomas)
Sandrine Kiberlain (Dra. Dolille)
Alexis Loret (Tenente Dolille)

Este filme está organizado em torno de três trimestres (escolares).
PRIMEIRO TRIMESTRE

Thomas, um jovem moreno, filho adotado por um casal que não tem conseguido ter filhos, vive numa quinta longe da localidade principal e do liceu: para chegar às aulas atravessa uma vasta superfície, por vezes coberta de neve, e ainda tem de fazer uma longa viagem de camioneta
Numa aula de Desporto, o professor organiza um jogo de andebol.
Professor: Vamos terminar com um pequeno jogo. Óscar, escolhe a equipa dos amarelos; Gregory, a equipa dos azuis.
É significativo que nenhum dos dois capitães de equipa escolha Thomas nem Damien, que ficam ambos, inexpressivos, sentados no recinto. Será o professor a pressionar os ditos capitães para chamarem os dois alunos, que tinham permanecido sentados: Thomas veste a camisola azul e Damien a amarela. Thomas, enquanto veste a camisola, observa Damien com um olhar parado. Se, numa das análises anteriores, chamei a atenção para o plano simbólico desta filmografia, ressalvo agora a interpretação psicanalítica dos comportamentos, muitas vezes intimamente associada aos que se exprimem de modo não verbal, e, neste caso, convém salientar o olhar de Thomas que não deixa de “falar” ao longo de todo o filme.
Estamos agora numa aula de Francês, Damien, perto da professora e diante da turma, diz, de modo magistral, um poema de Rimbaud (convém lembrar que Rimbaud já aparecera em outro filme: LRS). Durante a recitação do poema, o olhar de Thomas é penetrante, e, quando o outro regressa à sua carteira, Thomas soergue-se, estende uma das pernas e rasteira-o, Damien estatela-se, de modo aparatoso, na coxia entre as carteiras. À saída das aulas, Thomas não entra logo na camioneta, fica junto a uma árvore com ar desafiador, e quando Damien sai o portão percebe-se que Thomas o chama para a luta, Damien olha-o com a expressão de quem lhe dará combate, contudo, a cena é interrompida pelo buzinar de um jipe: é a Dra. Dolille, mãe de Damien, que o viera buscar à escola. Aqui é interessante perceber, e já que falei de Sociologia, as diferenças entre um adolescente, essencialmente rural, vivendo longe de tudo, e um outro, filho de uma médica e de um tenente do exército, por conseguinte, membro da burguesia média-alta.
Damien entra no jipe.
Dra. Dolille: Tiveste um dia bom?
Damien: Sim, e tu?
Dra. Dolille: Com gripe. E tu?
Damien: Rimbaud.
A mãe tira-lhe o gorro e afaga-lhe a cabeça com os cabelos rapados.
Dra. Dolille: Preferia quando os tinhas compridos.
Damien: É?
Dra. Dolille: Sim.
Na ótica por mim adotada na análise deste filme, penso que é importante, observar minuciosamente como os dois adolescentes reagem às relações que cada um deles vai tendo com os respetivos pais: há em Thomas um trauma, uma ferida, uma enorme falha narcísica, pelo facto de ser adotado, a tudo isso não é alheio, como é óbvio, o ódio que ele pensa sentir pelo superprotegido Damien, mais tarde ele expressará isso numa conversa com a Dra. Dolille. Esta, por sua vez. Fala regularmente com o marido, que está algures numa campanha militar, através do computador, enquanto Damien tem por hábito treinar artes marciais com Paulo, um ex-militar, vizinho e amigo da família.
A Dra. Dolille vai a Casset, atender um episódio de urgência. Thomas, encasacado e no meio da neve, espera-a.
Thomas: Bom dia.
Dra. Dolille: Bom dia.
Thomas: Você é a Dra. Dolille?
Dra. Dolille: Sim.
Thomas: Temos de ir o resto a pé, há demasiada neve para o carro.
Dra. Dolille: Certo! Não vai ser fácil sair depois daqui.
Thomas: Se me der a chave eu faço-lhe a inversão de marcha.
Dra. Dolille: Sim. Ótimo,

Já em casa da paciente, a Dra. Dolille descobre que ela, a mãe adotiva de Thomas, tem uma infeção pulmonar e que provavelmente estará grávida.
Thomas: Você é da região?
Dra. Dolille: Não, de La Bause.
Quando a médica se dirige para o jipe, Thomas chama-a e traz, debaixo do braço, uma galinha.
Thomas: Doutora! Tome! É para lhe agradecer a consulta e por nos ter dado crédito.
Dra. Dolille: Obrigado. Não é preciso.
Thomas: Eu mesmo a mato! – E quebra o pescoço à galinha ante o grito horrorizado da médica.
No regresso ao liceu, Thomas, antes de entrar, encosta-se à vedação da entrada a fumar um cigarro. Os olhos caem-lhe sobre Damien, que chega, e a mãe, num gesto de carinho, sai do carro para lhe pôr o gorro. De novo o olhar de Thomas, agora triste, ante aqueles gestos.
Dra. Dolille (enfiando o gorro no filho): Damien, põe isto! Não quero que apanhes gripe.
Quando regressa ao jipe, a Dra. Dolille vê Thomas:
Dra. Dolille: Olá, bom dia!
Thomas: Bom dia.
Dra. Dolille: Vem a pé desde lá de cima?
Thomas: A pé e de camioneta.
Dra. Dolille: Isso deve levar muito tempo.
Thomas: Uma hora e meia, mais ou menos.
Dra. Dolille: É precisa muita coragem.
Thomas (sorrindo): Eu gosto das montanhas.
Dra. Dolille: Diga à sua mãe que devo receber os medicamentos hoje, e que depois ligo-lhe.
Thomas: Certo.
Dra. Dolille: Até breve.
Thomas: Até breve.

Na aula de matemática, Thomas está no quadro tentando resolver uma equação, não a consegue concluir. A professora pergunta se alguém quer vir ao quadro resolver o problema. Vem Damien, que a resolve num ápice, quando devolve o marcador a Thomas, diz-lhe entre dentes:
Damien: És mais burro do que eu pensava.
Thomas vem sentar-se, durante o resto da aula não deixam de se olhar com agressividade. À saída, Thomas resolve ajustar contas: apanha Damien pelas costas e empurra-o, socam-se um au outro, Damien atinge-o na boca e Thomas fica a sangrar, são separados pelos outros alunos e por um funcionário, mesmo assim Thomas não desiste: vai atrás de Damien e quando o ultrapassa empurra-o com o ombro, deixando Damien caído na neve.
A Dra. Dolille e o filho estão à mesa, começam a jantar. Damien tira da travessa pedaços de galinha.
Dra. Dolille: Conheci bem essa galinha!
Damien: O quê?
Dra. Dolille: Vi-a morrer, quando fui dar consulta naquela quinta em Chardul.
Damien: Chardul?
Dra. Dolille: Conheces o Thomas?
Damien: Sim, é da minha turma. Agora é paga em galinhas?
Dra. Dolille: Eu não pedi nada.
Dra. Dolille: Como é ele?
Damien: Quem?
Dra. Dolille: O rapaz da tua turma, o Thomas.
Damien: Anda sempre sozinho. Era da Escola Agrícola, mas saiu para tentar o vestibular.
Dra. Dolille: É adotado.
Damien: Não sei, não o conheço.
Dra. Dolille: E quer ser veterinário.
Damien: Nossa! Está bem informada, hein?
Dra, Dolille: Sim, gostei dele!
Damien: Ah, sim?
Dra. Dolille: Ele é bonito. Deve ter muito sucesso.
Damien: Ele não se interessa pelas raparigas. Não se interessa por ninguém.
Dra. Dolille: Podes entregar-lhe os remédios da mãe? Assim, escuso de subir até lá, de novo?
Damien: …
Dra. Dolille: Ok?
Damien: Claro.
Durante um dos intervalos escolares, Damien vê Thomas ao longe. Segue-o. Thomas tira a comida do seu cacifo e dirige-se aos balneários para comer, isolado. Damien entra também, põe-se à sua frente e estende-lhe um pequeno saco com os medicamentos.
Damien: É da parte da minha mãe, a médica.
Thomas pega no saco e observa-lhe o interior, enquanto Damien se senta à sua frente.
Thomas: Põe-te a andar!
Damien: Porquê?
Thomas: Não quero que me vejam contigo.
Depois de saber que a mãe tem de fazer o teste da gravidez, Thomas fica mais triste: olha na noite fria, através de uma janela, o barulho do vento nos ramos das árvores. Esta imagem da janela, e já que falei de símbolos, volta a aparecer neste filme (e em outros), e sempre associada a algo de negativo.
De novo no liceu. De novo numa aula de Desporto: durante um jogo de andebol, Damien, jogando pelos amarelos e Thomas jogando pelos azuis envolvem-se numa cena de pancadaria, que o professor, só a custo, consegue suster. A Dra. Dolille é chamada ao liceu e, juntamente com ambos os rapazes, tem uma reunião com o diretor de curso. A certa altura, e depois de Thomas ter sido convidado a sair da reunião, o professor tenta perceber as razões de tanta hostilidade entre os dois alunos.
Professor: Damien, será que podes explicar à tua mãe, e a mim, por que é que vocês brigam tanto?
Damien: Não gostamos um do outro, é tudo!
Professor: Não, isso não é suficiente, não é por as pessoas não gostarem umas das outras que andam à pancada. Há aí qualquer outra coisa! Aqui, entre nós os três, tu, a tua mãe e eu, podes falar sem medo. O Thomas trata-te mal?
Damien: Não.
Dra. Dolille: Não é muito vago isto? Definir uma vítima e um culpado?
Professor: Madame, isto trata-se, provavelmente, de um caso de assédio, o que será muito mais grave. E isto é só uma hipótese. É que Thomas tem o perfil de um de um agressor.
Dra. Dolille: E o que é para si o perfil de um agressor?
Professor: Por exemplo, o Thomas fez cair o Damien em plena aula de Francês, sem razão aparente.
Damien: Fui eu que o provoquei primeiro.

Saída das aulas. Thomas dirige-se para a camioneta, mas há uma fila grande para entrar e ele volta para trás. Encosta-se à árvore do costume e vê o pai de Damien à espera do filho
Tenente: Estou contente por te ver.
Damien: Eu também.
Tenente: Olha, como cresceste, em breve estarás mais alto do que eu
Damien: Fizeste boa viagem?
Tenente: Sim.
Damien: Estás feliz por estar em casa?
Tenente: Sim.
Abraçam-se. O pai passa a mão pelos ombros do filho. Thomas, encostado à árvore, assiste a estas manifestações de afeto. E de novo o seu olhar: vazio, perdido, sofredor.

Já em casa.
Dra. Dolille: Coloquei um espelho frente à janela, para haver mais claridade.
Tenente: E assim parece mais espaçoso. Está perfeito. E empenhaste-te na decoração de Natal.
Damien: Já venho. Volto dentro de uma hora.
Tenente: Aonde vais?
Damien: Vou treinar com o Paulo.
Tenente: Que nova mania é essa?
Damien: Não sei. Quero aprender a defender-me.
Tenente: Percebo que queiras ser bom a brigar…
Damien (sorrindo): Como tu ou quê?
Tenente: Não, o meu trabalho é a guerra, não tem nada a ver com brigas. Eu até percebo que tenhas uma antipatia violenta e irracional por alguém, mas esse medo todo não consigo compreender, explica-me.
Damien: De qualquer modo já acabou tudo.
Dra. Dolille: Fico feliz por te ouvir dizer isso. Fica aqui connosco, precisamos de conversar. Senta-te ali. Sabes que a mãe de Thomas foi hospitalizada, então eu propus que o Tom viesse para nossa casa, por uns tempos, para o ajudares a estudar.
Damien: Por que é que não me disseste nada?
Dra. Dolille: Estou a dizer-te agora.
Damien: Por que é que estás a fazer isto?
Dra. Dolille: Caso contrário, ele não consegue, são três horas de trajeto, ida e volta, e tu mesmo disseste que tinham acabado os vossos problemas.
Damien: De qualquer modo, ele não vai querer vir para cá.
Dra. Dolille: E porque não?
Damien: Porque me detesta.
Dra. Dolille (puxando o filho e beijando-o): Quem é que pode não gostar de ti, hein?
Tenente: Eh, espera, vamos dar uma volta.
Pai e filho saem, correm atiram pedaços de neve um ao outro.

O tenente Dolille vai à quinta de Thomas para assentar os pormenores da ida deste para sua casa, contudo ele mostra fortes resistências à ideia.
Thomas: E por que é que tenho de ir morar para sua casa?
Tenente: Terás um quarto só para ti, e estarás mais perto do liceu e do hospital, todo o conforto para poderes trabalhar.
Thomas: Eu quero morar aqui, enquanto estiveres no hospital.
Christine (mãe de Thomas): E eu quero que te ocupes de ti e do teu vestibular.
Tenente: Escuta, eu sei que não te dás bem com o meu filho…
Thomas: Desculpe, mas eu estou-me nas tintas para o seu filho.
Christine: Ó, Thomas, vê como falas! O tenente está aqui para te ajudar.

SEGUNDO TRIMESTRE

Na aula, Thomas e Damien olham um para o outro várias vezes: já não há hostilidade nem indiferença, mas surpresa perante a nova situação. O olhar é um traço fundamental no comportamento destas duas figuras.

A Dra. Dolille e o filho falam com o Tenente através do computador. Brincam. Riem. Thomas, encostado ao umbral da porta, assiste a tudo.
Tenente (falando dos americanos): Eles partiram há uma semana. Olha, ofereceram-me este boné. Gostas?
Damien: Nada mal! Nada mal!
Tenente: Dou-to. É para ti.
Damien: Ah, que bom! Obrigado. Ele já foi à guerra?
Tenente (cheirando o boné): A julgar pelo fedor…
Dra. Dolille: Ah, não!
Tenente: Parece que foi à guerra!
Damien (rindo): Que nojo!
Voltando ao plano simbólico: este boné, protetor mas preto, e fedorento naquele momento, ressurgirá no final do filme.

Thomas vai para uma divisão no interior da casa. Desliga o calorífero. Abre uma janela com a mesma figuração daquela outra, que ele abrira quando soube que a mãe poderia estar grávida. A janela abre para uma noite fria. Thomas senta-se de costas para o exterior.

A Dra. Dolille ausculta Thomas. Palpa-lhe os gânglios. Vê-lhe os ouvidos.
Damien, no exterior da casa, tenta espreitar e ouvir o que se passa no quarto de Thomas.
Dra. Dolille: Tens uma faringite. Depois de três dias de anti-inflamatórios ficas bom. Podes vestir-te. Com uma saúde de ferro na quinta, e aqui à beira da morte. Foste ontem ver a tua mãe?
Thomas: Sim.
Dra. Dolille: Ela precisa de ficar na cama, mas tenho esperanças que desta vez tudo correrá bem.
Thomas: Tenho a impressão de que ela também acredita nisso, enfim, um filho verdadeiro.
Dra. Dolille (olhando-o e percebendo que ele se referia à sua adoção): Mas não há filhos falsos!
Mais uma vez, nesta cena, o jogo dos olhares é bastante significativo.

Thomas está na casa de banho. Tosse insistentemente. Damien, no corredor, mastigando qualquer coisa, espera que ele abra a porta. Thomas abre a porta e sai.
Damien: Cheira a erva.
Thomas: …
Damien: Não devias fumar, enquanto estás doente. O que vai a minha mãe dizer?
Thomas: …
Damien: Vem, vou mostrar-te uma coisa.
Mas Thomas continua ignorando-o e afasta-se.
Damien: Então? Tens medo? Vem.
Entram na tal divisão onde Thomas apanhou o resfriado e Damien abre, ostensivamente, a janela.
Damien: Vês? Foi assim que ficaste doente, para poderes ficar de cama e ela ocupar-se de ti. Gostas que sintam pena de ti. Diz-me uma coisa: foi bom? Quando ela te auscultou? Ficaste excitado?
Thomas enfurece-se subitamente, agarra-o pelos colarinhos e atira-o para cima de um sofá.
Thomas: Tens razão, aqui não! Sou eu que escolho o lugar!

Damien e Thomas seguem numa camioneta. Saem junto a uma ladeira. Trepam montes, onde Damien se demonstra menos hábil e menos vigoroso. Ouvem-se trovões. Todas estas cenas estão pejadas de simbolismo: os dois adolescentes lutam até à exaustão, numa clareira, enquanto do céu começa a cair uma chuva torrencial. Os dois exaustos pela pancadaria.
Damien (cambaleando): Continuemos!
Thomas: Não. Chove. Vamos parar.
Abrigam-se numa gruta. Partilham um charro.
Thomas (referindo-se à tempestade, mas com uma associação também interessante): Quando é violenta assim, não costuma durar muito tempo.
Thomas dá umas passas no cigarro e passa-o a Damien.
Thomas: Apetece-me ir ao lago, lá em cima, para dar um mergulho. Conheces?
Damien: Está muito frio.

Thomas e Damien sobem o monte até ao lago. Damien demonstra mais dificuldade em trilhar estes caminhos, enquanto que Thomas, com o seu ar selvagem, caminha sem dificuldade. Frente ao lago, Thomas despe-se, e, completamente nu, corre a mergulhar. De novo os olhos voltam a falar neste filme, agora os de Damien, que, de lábios entreabertos, rende-se ao fascínio daquilo que vê. Quando ambos chegam a casa, mentem à Dra. Dolille, um diz que esteve a treinar com Paulo, o outro que esteve com o pai na quinta. A mentira e a culpa!

Damien sai do seu quarto, ao passar pela sala pega numa maçã vermelha (a maçã, de novo o tema dos símbolos!)
Damien: Posso perguntar-te uma coisa?
Thomas (Interrompe o estudo): …
Damien: Por que me rasteiraste na aula, da primeira vez?
Thomas: Isso já passou! Para!
Damien: Paro, se souber a razão.
Thomas: A razão não a sei. Achava-te pretensioso. E estavas sempre a olhar para mim, e isso incomodava-me.
Damien: Agora também olho sempre para ti.
Thomas (sorrindo): Mas agora já me habituei. Assim como ao teu brinco.
Damien: Porquê? Não gostas do meu brinco?
Thomas: Estou a estudar. Será que me podes deixar?
Damien regressa para o seu quarto. Atira-se para cima da cama. Mete a mão esquerda dentro das bermudas, procurando o sexo. E decide, por fim, consultar sites gay.

Algum tempo depois
Damien: Sabes conduzir?
Thomas: Sim, porquê?
Damien: Podes levar-me a um sítio?
Thomas: Não vês que estou a estudar?
Damien: É a primeira vez que te peço uma coisa.
Thomas: …
Damien: Insisto.
Thomas: És um mimado e eu não sou teu empregado. Vira-te!
Damien (mostrando-lhe os hematomas que tinha da pancadaria, chantageia-o): Queres que mostre isto à minha mãe?
Thomas cede e, de rosto fechado, condu-lo até um dos indivíduos que ele conhecera no dito site gay. O encontro de Damien fracassa e ele regressa ao jipe, no entanto, Thomas mete conversa com o homem e este vai mostrar-lhe a quinta.
Damien (no jipe, de regresso a casa): Arranjaste um amigo?
Thomas (de rosto fechado): Ele disse-me o que tu tinhas ido lá fazer.
Damien: Isso surpreende-te?
Thomas (irado): De ti nada me surpreende!
Damien: Precisava de saber se era atraído por homens ou somente por ti.
Thomas: …
Damien: Deves fazer mais o género dele do que eu.
Thomas: …
Damien: Ele tentou deitar-se contigo?
Thomas (gritando): Ninguém se deita comigo! Percebes isso ou não? Tira isso da tua cabeça!

De novo no liceu. A turma sai da sala de aula. Thomas e Damien descem a escada conversando. Damien procura Thomas nos lavabos. Damien toca-o e Thomas corresponde sofregamente, mas, após alguns segundos, como se tivesse acordado, atira com Damien contra a parede e sai. Quando está a guardar as suas coisas no cacifo, surge Damien. De novo o olhar desorbitado de Thomas, olhar de animal em perigo e desfere um soco em Damien, que começa a sangrar da boca. Acorrem todos a separá-los. De novo o olhar de Thomas: mescla de estupefação, de desvario e de arrependimento.

Já em casa. Damien está sentado na cama. Batem à porta do quarto.
Damien: Entra,
Dra. Dolille: Devia ter-te escutado. Não devia tê-lo convidado para ficar aqui.
Damien: …
Dra. Dolille: É verdade que não te defendeste?
Damien: …
Dra. Dolille: Porque é que ele te bateu com toda essa força?
Damien (Olhando calmamente a mãe): Porque eu tentei beijá-lo.
Dra. Dolille: …
Damien: Não dizes nada?
Dra. Dolille (percebendo, finalmente, o que há muito se passava debaixo dos seus olhos, afaga o rosto do filho): Não, estou a escutar-te. Não há nada para dizer. (Esta resposta é exatamente igual à que Maité dá a François, quando este lhe revela que dormiu com Serge (LRS).

O tenente Dolille morre em combate. Cenas do velório, condecoração a título póstumo e funeral. Na noite, Damien, enquanto chora, desfere socos contínuos no saco de boxe onde costumava treinar. Thomas surge do meio da noite.
Thomas: Damien! Damien! Queria dizer-te que estou contigo, pelo teu pai.
Damien cai-lhe nos braços, em choro pungente.
Thomas regressa à casa dos Dolille, sobretudo para apoiar a mãe de Damien, em sofrimento profundo.

Surge, de novo, a imagem da janela. É dia lá fora, cá dentro, sentada na cama, a Dra. Dolille apática, olha através dela.
Noutra sala Damien e Thomas estudam, preparam um trabalho.
Thomas: “Desejo” vem do Latim “desirat”, que significa lamentar a ausência de algo. A melhor definição é a de Leibniz, que diz: “A inquietude que uma pessoa sente em si mesma pela ausência de algo que lhe daria prazer é o que chamamos “desejo”; a aspiração consciente em direção a um objeto do desejo é considerada como própria do homem”.
Damien: Bem, eu escrevi sobre o “desejo” numa passagem de “O Banquete” de Platão, que diz: “Se na cópula um homem encontra uma mulher haverá geração e a espécie perpetuar-se-á, mas, por outro lado, se um homem encontrar outro homem, os dois encontrariam do mesmo modo a saciedade nessa relação.” A saciedade! A satisfação no relacionamento!
Thomas: Já percebi aonde queres chegar, Damien. O ambiente começa a ficar muito pesado.
Damien: Não é culpa minha. Está no programa!
Thomas: Bem, vamos continuar: devemos fazer a distinção entre “desejo” e “necessidade”. “A “necessidade” está inscrita pela natureza, é necessária, vital; ao passo que o “desejo” – exceto o de origem natural – é artificial, contingente, supérfluo.

Thomas leva a Dra. Dolille a passear pelas redondezas. Tenta atenuar-lhe o sofrimento. Conversam.
Thomas: Vamos descer por ali, é menos inclinado …
Dra. Dolille: Não quero mais viver aqui.
Thomas: Vocês vão-se mudar?
Dra. Dolille: Sim.
Thomas: Para longe?
Dra. Dolille: Eu gostaria que sim, mas ainda não falei com o Damien, não sei…
Thomas: Por que não lhe diz?
Dra. Dolille: Porque tenho medo que ele fique triste, por tua causa.

Na cozinha.
Damien (para a mãe): Não se mistura comprimidos com vinho.
Dra. Dolille: Prefiro beber. Uma mãe alcoólica é melhor do que uma mãe depressiva, não?
Damien: Se tu o dizes.
Dra. Dolille: De qualquer maneira estou farta de estar doente, ser médica é mais divertido
Damien: Vais voltar ao trabalho? Sentes-te capaz?
Dra. Dolillie: Francamente, ainda sinto medo, vamos ver… Bem, estou exausta, hoje andámos muito.
Damien: Não comes?
Dra Dolille: Não. Estou a cair de sono, é bom sinal, quer dizer que não preciso de comprimidos. Beija o filho e despede-se de Thomas

Na sala, Damien e Thomas jantam. Thomas acende um cigarro. Damien, acabrunhado, olha-o.
Thomas: Por que é que ela não comeu nada?
Damien (depois de uma pausa): É preciso que partas, Tom. Se ela está pronta para trabalhar, não há razão para continuares aqui.
Thomas (dando uma fumaça e olhando Damien, fixamente): …
Damien: Por que me estás a olhar assim?
Thomas: …
Damien: Estou apaixonado por ti. Não ouves o que te digo?
Thomas mantém o silêncio. Damien levanta-se de rompante e Thomas segue-o.
Damien: Se tu sentes vergonha, eu não quero sentir vergonha.
Thomas (avançando na direção dele): …
Damien (empurra-o): Não tenhas pena de mim!
Thomas (finalmente lançando-se sobre ele): Seu chato! Falas demais! Seu chato! Tens a mania que sabes tudo, mas afinal não percebeste que eu estava com medo.
Amanhece. Thomas sai da cama sem acordar Damien. Veste os slips. Pega na roupa e sai do quarto. Lá fora chove. Thomas protege-se com a sua mala sobre a cabeça.

Damien, sempre com a mesma Tshirt que diz: “My dream is alive”, sobe os montes até à quinta de Thomas. Debruça-se para beber numa fonte já perto da quinta.
Thomas: Como chegaste aqui?
Damien: De camioneta e a pé como tu.
Thomas: Não te perdeste?
Damien (tentando tocar-lhe o rosto, mas Thomas recua automaticamente): Não, como vês. Precisava de te ver.
Thomas: Mantêm a distância, por favor.
Christine (de uma janela): Bom dia, Damien! Queres um café?
Thomas: Não, vamos concertar a cerca. Tomamos café depois. Vem ajudar-me.
Damien (para Christine): Bom dia.
Thomas: Vem! Estou a dizer-te para vires.
Os dois esticando o arame a colocar na cerca.
Thomas (pedindo-lhe a ponta do arame): Dá-me isso. Estica o arame.
Damien: Por que te vieste embora?
Thomas: Porque a tua mãe já não precisava mais de mim.
Damien: Não estou a falar disso.
Thomas: Estás a falar de quê, então?
Damien: Daquela noite.
Thomas: Estica (o arame).
Damien: Foi algo de uma noite? É isso? Estás arrependido?
Thomas: Não, não estou arrependido.
Damien: Então foi só para me consolar? Não funcionou. Isso deixou-me triste.
Thomas: Acho que não é uma coisa boa, se te deixa triste!
Damien: Sim. É uma coisa boa.
Thomas (referindo-se ao arame): Deixa!
Damien tenta tocar-lhe o ombro. Thomas afasta-se de um salto.
Thomas: Aqui não! Vamos continuar (com o trabalho da cerca)! Esta cena é interessante, pois há uma sobreposição do que se passou afetivamente e do trabalho que ambos estão fazendo, já que a cerca é o que prende e une os animais uns aos outros.

Na cozinha da quinta, Christine enche a chávena de Damien.
Damien: Obrigado.
Thomas (recorrendo à Máscara): Foi gentil ele ter-me vindo visitar. Ajudou-me a trocar os fios enferrujados.
Damien (entrando na representação): Sim. E ele ensinou-me. Não há muitos sítios destes por aqui.
O pai: Vai buscar o carro para o ires levar.
Thomas: Mas eu trabalhei todo o dia, tenho de estudar.
O pai: Então levo-o eu.
Damien (triste): Não, não é preciso. Vou a pé, como vim.
De novo o olhar. Agora de Thomas sobre Damien: entre a admiração e o remorso.

É de noite. Damien estuda na sala com os apontamentos espalhados pela mesa. Tocam à campainha.
Damien (para a mãe que está no interior da casa): Estás à espera de alguém?
Abre a porta. Thomas entra desvairado.
Damien: Mas o que fazes aqui?
Thomas não responde, parece um autómato.
Damien: Tudo bem? Tom o que te aconteceu?
Dra. Dolille (aparecendo de robe): O que sucedeu?
Thomas: Ela entrou em trabalho de parto. Saíram há três horas.
Dra. Dolille: Por que não estás com ela na maternidade?
Thomas: Porque… não vai dar certo.
Dra. Dolille: Mas sim, vai correr tudo bem. O bebé está no tempo certo. O perigo já passou. Bem, vou vestir-me e vamos lá, hein?
Thomas continua desfeito. Olha para Damien, que está sentado no braço do sofá com o seu braço por cima dos ombros dele.
Thomas (para Damien): Tu também vens, ok?
Damien: Sim, claro!

A Dra. Dolille e o filho sobem uma escadaria em direção a um espaço com esplanadas.
Dra. Dolille: Tens os olhos vermelhos.
Damien: Chorei! Não tenho parado de chorar ultimamente.
Dra. Dolille: Fico orgulhosa por ter um filho tão sensível.
Damien: Não sejas ridícula.
Dra. Dolille (afagando-lhe a cabeça): É verdade.
Sentam-se a uma mesa numa esplanada e a mãe mostra ao filho, no telemóvel, a nova proposta de trabalho que lhe fizeram.
Dra. Dolille: Propuseram-me isto em Lyon. Têm um gabinete vago.
Damien: Queres ir?
Dra. Dolille: Sim. É longe, mas o Thomas pode aparecer quando quiser.
Damien: Ele jamais irá.
Dra. Dolille: Tens de ter confiança, Damien.
Damien: Confiança em quê
Dra. Dolille: Confiança em ti, nos outros, na vida.

Imagem pouco clara de canas ardendo com galhos floridos, a música é a mesma de quando Thomas foi viver, a primeira vez, para a casa dos Dolille. Damien olha para tudo isto com ar triste. De novo a mesma música, mas agora é Thomas que caminha pelos montes, começa a correr, salta, abre os braços como se esvoaçasse, corre cada vez com mais velocidade, alcança finalmente uma árvore sob a qual Damien o aguarda. Riem-se. Durante os beijos, Thomas arranca-lhe da cabeça, e atira-o para o chão, o boné preto que o tenente Dolille dera ao filho, o boné fedorento que tinha vindo da guerra.


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