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Figurações da Subjetividade na Filmografia de André Téchiné (Parte 1)
Por Victor Oliveira Mateus Publicado em Artes, Cinema, Portugal a 2 de Abril, 2025 1807 palavras
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Figurações da Subjetividade na Filmografia de André Téchiné

Numa entrevista concedida, há alguns anos, Fanny Ardant afirma que, em cinema, não existem personagens-tipo que se classifiquem e se subdividam até ao infinito, e que o importante não é tanto essa inconcebível listagem, mas a mão do realizador através da qual as ditas personagens vêm à vida. Assim, ilustrarei neste primeiro tópico, a posição da atriz francesa através de três exemplos: um, a prostituição; dois, a experiência religiosa e/ou mística; três, aquilo a que Stendhal, no seu ensaio De l’amour, apelidou de amor-paixão ou o caso da freira portuguesa (Mariana Alcoforado). Ver-se-á, por conseguinte, que a Dialética que se estabelece entre o Tipo (que torna o comportamento/representação categorizável; não nos esqueçamos que já Aristóteles afirmava que só há Ciência do Universal) e a Diversidade proveniente da mão do realizador, não só não impede a apreensão dos conteúdos por parte do espectador, como possibilita e enriquece aquilo a que o meu título chama as Figurações da Subjetividade.
Exemplo 1:
“Mamma Roma” (1962) de Pier Paolo Pasolini com Anna Magnani;
“Crimes of Passion” (1984) de Ken Russell com Katheleen Turner;
“J’embrasse pas” (1991) de André Téchiné com Emmanuelle Béart.
Exemplo 2:
“Brother Sun, Sister Moon” (1972) de Franco Zeffirelli com Graham Faulkner;
“Thérèse” (1982) de Alain Cavalier com Catherine Mouchet;
“Mary” (2005) de Abel Ferrara com Juliette Binoche.
Exemplo 3:
“Senso” (1954) de Luchino Visconti com Alida Valli;
“Der Blaue Engel” (1959) de Josef von Stemberg com Marlene Dietrich;
“Aqui d’El Rei!” de António-Pedro de Vasconcelos com Ludmila Mikael e Arnaud Giovaninetti.
Depois de nesta primeira alínea ter clarificado o paradoxo das Figurações (cinematográficas), onde a Diversidade do desempenho corre a par com a Unicidade da apreensão. Passarei agora a elucidar o que este artigo entende por Subjetividade.
Para algumas posições das neurociências, nomeadamente para António Damásio, vemos que as imagens que povoam a minha consciência, e o facto de as saber minhas, se encontra inextricavelmente ligado à criação da subjetividade, já que em circunstâncias patológicas, ou seja, quando a subjetividade desaparece e as imagens da mente deixam de ser apreendidas como minhas, é a própria consciência que deixa de funcionar de modo normal, o conteúdo da mente, numa perspetiva subjetiva, não pertencerá já especificamente a ninguém, pelo que a consciência – e, obviamente, o significado daquele momento – acabaria por desaparecer, ficaria à deriva. Vemos, pois, que nesta posição existe uma triangulação necessária entre: as (minhas) imagens, a origem da subjetividade e o funcionamento da consciência; para este cientista “A subjetividade é um processo, não é uma coisa, e esse processo depende de dois ingredientes essenciais: a criação de uma perspetiva para as imagens na mente, e o acompanhamento das imagens por sentimentos.” (DAMÁSIO, 2017, 209), isto leva-nos a inferir que parte do processo de construção da subjetividade é composto pelo mesmo material com que construímos os seus conteúdos manifestos, ou seja, as imagens. Ora, como insinuei acima, os sentimentos – esses companheiros naturais das imagens entendidas como conteúdo manifesto da consciência – estão igualmente geminados com a apreensão da subjetividade, e é isto que permite ao cientista afirmar: “Quando os sentimentos que descrevem o estado interior da vida agora, estão “colocados”, ou até “situados”, na atual perspetiva de todo o organismo surge a subjetividade. E a partir daí, os acontecimentos que nos rodeiam, os acontecimentos em que participamos e as memórias que invocamos ganham toda uma nova propriedade: passam a ser relevantes para nós, podem afetar o rumo da nossa vida. (…) A subjetividade é necessária para impulsionar a inteligência criativa que edifica as manifestações culturais. “ (DAMÁSIO, 2017, 220).
No entanto, o termo que uso no título deste ensaio, afasta-se do rigor das neurociências; tornando-se mais fluido, surge menos rigoroso, mas, todavia, mais abrangente, aliás, não falo aqui propriamente de um conceito, mas de uma noção, seguramente mais próxima de outras abordagens: “O carácter consiste numa mudança crónica do ego que se poderia descrever como um enriquecimento. Esse enriquecimento é a base real para que o modo de reação característico se torne crónico; sua finalidade é proteger o ego dos perigos internos e externos. Como uma formação protectora que se tornou crónica merece a designação de “encouraçamento” (…) Contudo, a própria couraça deve ser considerada flexível. Seu modo de reagir procede sempre de acordo com o princípio do prazer e do desprazer.” (REICH, 2004, 151). Contudo, apesar da “couraça considerada flexível” do Caráter, segundo Reich, se aproximar mais da noção de Subjetividade deste trabalho do que os modelos fixistas das neurociências, convém notar que tais perspetivas foram hoje substituídas por outros modelos de abordagem, onde se torna possível um relacional com a Sociologia, a Ética, a Moral, coisa que a rigidez explicativa tornava impossível e, convém não esquecer, que aqui se está no domínio da Arte – com todas as suas implicações como as Normas Sociais, os Modelos de Comportamento, as Instituições, os Modos de Aculturação, etc. – e não do Discurso Científico, por todas estas razões socorro-me, neste ensaio, de uma noção de Subjetividade, não mais ou menos mecanicista, mas que incorpore todo o dinamismo e as variáveis referidas, enfim, uma subjetividade muito mais perto de Proust do que de Damásio – exemplo: quando a princesa de Guermantes e o seu marido exteriorizam, em público, um intenso e recíproco afeto, que o auditório logo classifica de uma relação feliz, ambos os elementos do casal sabem distinguir: o que na realidade sentem (pois ambos se sabem traídos pelo outro cônjuge), o que pretendem mostrar da sua relação e, finalmente, o que terceiros dessa relação irão ler – estamos em pleno intersubjetivismo proustiano; mecanismo análogo pode ser encontrado no intrasubjetivismo de Proust, pois quando Robert de Saint Loup conta a Marcel o relacionamento difícil que tem com a sua amante, com quem despende somas consideráveis de dinheiro em presentes, a sua narração, passa através de uma grelha, onde estão outras variáveis nomeadamente a sua inclusão num pequeno grupo aristocrático de homossexuais. Para completar o segundo ponto deste trabalho apresento um último excerto, que, não só conclui a minha posição relativamente a este tópico, como aclara todo esse continum que vai da tese dos Temperamentos a essa outra dos Traços de Personalidade: “A ideia de uma base biológica dos temperamentos remonta à Antiguidade (…)eram em número de quatro (…) fleumático, sanguíneo, melancólico, colérico (…) ainda que estas associações sejam absolutamente ingénuas, podemos encontrar um prolongamento destas mesmas associações em determinadas teorias psicobiológicas actuais. (…) Na realidade, existem diversos temperamentos, embora seja possível agrupá-los num número relativamente restrito (…) Buss e Plomin (1975, 1984) são de opinião que os temperamentos podem resumir-se a três domínios diferentes: a emocionalidade, a actividade e a sociabilidade. (…) Há que distinguir a noção de carácter da de personalidade. Antes de mais, refira-se que a noção de carácter (…) tende a desaparecer do vocabulário científico da psicologia actual (…) já não se fala de carácter (…) diversos autores suprimiram a sua utilização em virtude das diferentes conotações morais que se associavam (a essa) noção (…). É necessário prestar atenção ao seguinte ponto: no modelo de Cloninger, os caracteres exprimem a ideia de que a personalidade não é determinada em exclusivo por temperamentos, cuja origem genética é inegável, mas também pela ação do meio ambiente.” (HANSENNE, 2004, pp 22-32). Com esta montagem de textos termino a segunda parte deste artigo, onde tento elucidar o título do mesmo, e onde me demarco de uma Subjetividade instituída num processo autorreferencial e de um procedimento relacional exclusivamente interno, a fazer-nos lembrar a mónada leibniziana, para uma Subjetividade onde a externalização não põe em causa – antes o complementa – os processos de formação e de mobilidade interna. Assim – e é este o terceiro tópico deste ensaio -, torna-se agora mais fácil o estabelecimento de pontes com outros saberes, nomeadamente a Filosofia, a Semiótica, a Psicologia e a Psicanálise, que jamais deixaram de colocar inúmeras perguntas, e a elas sempre tentaram responder: “Parece que certas pessoas estão na sua própria vida (e unicamente aí, não enquanto pessoas, por exemplo) de tal modo expostas, que se tornam, por assim dizer, em autênticas encruzilhadas e objetivações concretas da vida” (ARENDT, 1995, 45). Nada melhor do que esta passagem de uma carta de Hanna Arendt a Karl Jaspers para nos aproximar do cinema de André Téchiné. Vemos, pois, que as relações entre os humanos, a sua compreensão e a sua possível integração em quadros interpretativos, sempre tem surpreendido e preocupado filósofos e cientistas dos mais diferentes quadrantes; os humanos, “personagens” dos filmes e na vida – não foi por acaso que Shakespeare apelidou o homem de “ator social” – são e têm sido, enquanto indivíduos, e nas suas relações interpessoais, um vasto repositório de perguntas e respostas. Ilustrarei agora apenas com dois exemplos essas inquirições:
O narcisismo:
“O conceito de “narcisismo”, forjado de início pela psicanálise freudiana, tem sofrido imensas transformações e derivas ao longo das imensas interpretações que conheceu. No entanto, ao contrário da opinião comum, o narcisismo em si não é patológico, é unicamente o seu excesso que o pode ser.” (HIRIGOYEN, 2019, 51)
O alcoolismo:
“O material humano de baixo nível intelectual que se encontra geralmente nos delirantes alcoólicos é insuficiente para uma autoanálise psicanalítica e as circunstâncias têm-me impedido até hoje de aceder aos raros exemplares de um material melhor, por conseguinte, a exposição que se segue não deve ser considerada como uma psicanálise do delírio no comportamento dos alcoólicos, contentei-me em utilizar certas aquisições da psicanálise para a compreensão dos sintomas patológicos. “(TAUSK, 2000, p 51).
Passarei agora, numa quarta e última parte deste ensaio, a aplicar tudo o que tenho vindo a dizer, à dezena de filmes de André Téchiné que selecionei como representativos da obra deste realizador. As referências aos filmes surgirão sempre através de maiúsculas pertencentes aos títulos em francês – exemplo: “Les Temps Qui Changent” (LTQC).


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