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Figurações da Subjetividade na Filmografia de André Téchiné (Parte 9 )
Por Victor Oliveira Mateus Publicado em Artes, Cinema, Portugal a 2 de Abril, 2025 1661 palavras
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EPÍLOGO

Como ponto prévio deste epílogo pretendo deixar claro, que, sempre que se justifique, os títulos dos filmes referidos não aparecerão por extenso,
mas através de uma fórmula constituída pelas iniciais, em maiúsculas, dos títulos em francês.
Iniciei este ensaio chamando a atenção para a especificidade do toque dado, pela mão do realizador do filme, na figuração das personagens; passando, num segundo ponto, a clarificar esse paradoxo, onde a diversidade dos referidos toques não põe em causa a unicidade da apreensão percetiva dos espectadores; num terceiro momento clarifiquei alguns conceitos e noções tal como aparecem neste ensaio, nomeadamente o conceito de subjetividade, onde contrapus a tese proveniente das neurociências com outras provenientes da psicanálise, da literatura e da filosofia, deixando assim aberto o caminho, que a filmografia de André Téchiné vem trilhando, para a Moral, a Ética, a Sexologia, a Filosofia Política e a Sociologia. Foi a partir destes tópicos preambulares, que passei à esquematização dos dez filmes que me pareceram representativos da globalidade da obra de Téchiné, alertando sempre o leitor para aspetos relacionados com os temas e as áreas disciplinares que acabo de enumerar.
No primeiro filme (“Rendez-vous”, 1985), estamos perante a vinda de uma jovem (Nina), que, proveniente da província, procura, em Paris, a sua sorte como atriz. Logo aqui assinalei elementos que são constitutivos da filmografia de Téchiné: a Redenção (nem sempre assumidamente positiva); a ideia de Errância/Caminho intimamente articulada com as noções de Procura e de Habitar; a ideia de que o Autoconhecimento e a Autoconstrução são processos ininterruptos, que umas vezes contam com a solidariedade do Outro (Paulot, Scrutzier), mas que, em outros momentos, podem ser surpreendidos pela Maldade humana (Quentin); aqui não deixei de assinalar os traços do Psicopata (muitas vezes camuflados na figura do Psicopata Integrado), do Sociopata e da perversidade do Narcisista Maligno.
No segundo filme (“J’embrasse pas”, (1991) há uma forte incursão nos territórios da Sexologia e da Ética. Convém enfatizar aqui que as questões ligadas à relação Sexualidade/Sociedade são uma constante no cinema de André Téchiné: descoberta da sexualidade na adolescência, prostituição, travestismo, visões (geralmente fugazes) do orgiástico, solidariedade e apoio de figuras com orientações sexuais diferentes, etc. Neste filme vemos também um jovem proveniente da província, tentando percorrer o seu Caminho para Habitar o seu sonho de ser ator, lamentavelmente a sua sorte será diferente da de Nina (RV) e, de fracasso em fracasso, acabará num jardim público a alugar o corpo: a sua ingenuidade em pouco tempo descamba na degradação moral; neste processo de Construção e de Autoconhecimento intervêm três figuras importantes: Evelyne, uma mulher de meia idade e solitária, que rapidamente se torna controladora e obsessiva, afastando de imediato o cândido Pierre; um velho, culto e poderoso pederasta (Romain) que lhe oferecia uma amizade sincera, mas assexuada, coisa que era completamente estranha aos estereótipos de Pierre e, por fim, já em pleno Habitar do monturo, o surgir de Ingrid, a esplendorosa prostituta que – como única – consegue fazer ressurgir o inocente Pierre do início do filme, lamentavelmente esta história de uma paixão recíproca não pode ser concretizada, já que Ingrid “tem um homem”, e este, acenando de novo à Psicologia, faz questão de deixar clara a noção de Poder na hierarquização das Masculinidades: sequestrando Pierre, violando-o e forçando Ingrid a assistir a esse ato de humilhação e de Dominação. A Redenção aqui tem mais um caráter abissal e escatológico, tendo mais a ver com Sade do que com Kant, já que Pierre deixa claro, no final do filme, que há de voltar a Paris, mas dessa vez virá “já devidamente preparado”, dando a entender que a Construção do Eu fora operada de modo danoso e enviesado.
No terceiro filme deste ensaio (“Les roseaux sauvages”, 1994), o realizador remete-nos para um ambiente completamente distinto do anterior: a adolescência com as suas descobertas e desacertos; a lealdade na amizade, que, sendo de tal maneira forte, ultrapassa todo o tipo de Diferenças. E esta é uma das grandes virtudes do cinema de Téchiné: a maestria com que se move em todos os contextos, dos socialmente mais condenáveis aos moralmente mais inocentes, por vezes até “piscando o olho” a um certo romantismo. O presente filme parte da fábula “O carvalho e o junco” de La Fontaine, para, a partir daí, construir uma intriga que entra por certas disciplinas adentro, tais como: Psicologia do Desenvolvimento, Psicologia da Aprendizagem e a Construção da Personalidade. A película narra as relações que se estabelecem entre quatro adolescentes, todos eles diferentes entre si a vários níveis: ideológico, social, cultural e sexual. Neste filme reforçam-se dois dos grandes temas desta filmografia: o Medo (quando François descobre a sua homossexualidade ou quando frisa o horror que sente pelo seu próprio corpo; quando Maité percebe que ama Henry, o mesmo que ela deveria odiar, e não ousa mostrar-se-lhe com seu horroroso fato de banho amarelo) e a Confiança, esse Valor que Romain acusa Pierre de não possuir (JEP). Aqui ilustra-se, na perfeição, a fábula de La Fontaine, já que os quatro adolescentes assolados por tantos desencantos, frustrações e circunstâncias traumáticas (exemplo: o efeito que teve sobre a vida afetiva de Maité a separação dos pais) apresentam-se como o junco do escritor francês: balançam para um lado e para outro, mas não caem, não se Desenraízam, e lá continuam: Henry a caminho de Marselha para se encontrar com a mãe, Serge com a sua ruralidade intrínseca e o seu desejo de conformidade, François na sua luta com o que em si acabara de descobrir, Maité agarrada à sua força, aos seus princípios ideológicos e a esse François, que, apesar de frágil, é o único que a faz sentir segura. Assim como no primeiro filme (RV), e ao contrário do segundo (JEP), estamos perante uma das várias formas de Redenção positiva.
No quarto filme (“Les voleurs”, 1996) os vetores Social e Moral da ação humana correm a par. Não é, portanto, em vão, que alguns críticos afirmam que André Téchiné, ao conseguir conciliar a vertente culta com a do entretenimento, é o realizador desta época que mais se aproxima de François Truffaut. Neste filme estamos, de modo vincado, frente a uma tábua axiológica de caráter opositivo e de raiz judaico-cristã: o Mal, representado por Ivan e Victor, o seu pai, assim como por Jimmy Fontana, todos eles especialistas em assaltos, roubo e tráfico de carros, clubes noturnos de baixo coturno, etc.; o Bem, representado sobretudo por Alex, o outro filho de Victor, portanto, irmão de Ivan, que, repudiando a família, acabou por se tornar polícia. No entanto, surgem-nos duas figuras cuja classificação é pouco clara: Juliette Fontana, simultaneamente amante de Alex e de Marie Leblanc, uma professora universitária da área da Filosofia; a instabilidade emocional e comportamental de Juliette faz-nos suspeitar estarmos perante uma perturbação da personalidade, provavelmente um quadro de bipolaridade; a outra figura é Marie Leblanc, lúcida, segura, outrora casada com um psiquiatra, Lucien, a quem Marie chega a pedir ajuda para apoiar Juliette, que, no entanto, foge a qualquer tipo de apoio. De qualquer modo, os temas da Confiança e do Medo ressurgem: Alex e Marie Leblanc não Confiam um no outro, mas estabelecem entre si dadas alianças oportunistas, unicamente para proteger Juliette, a amante de ambos. Quanto à Redenção, tem aqui um caráter oportunista e ambíguo: é evidente que mais tarde vemos Juliette, em Marselha, com uma vida reconstruída, como se nada tivesse acontecido; vemos também a viúva de Ivan (Mireille) e o filho (Justin) com a vida igualmente refeita. Contudo, o bicho do fruto manter-se-á vivo, naquilo que parece ser uma visão do que afinal é a Natureza Humana.
Em (“Alice et Martin”, 1998), o quinto filme desta minha lista, juntam-se, aos tópicos que tenho vindo a enumerar, um outro, que assumirá nos filmes que se seguirão uma importância determinante: o fenómeno amoroso. Mas aqui existe também uma forte incursão na Sociologia da Família, nomeadamente na estrutura e funcionamento da dita Instituição, já tínhamos visto abordagens deste tipo em filmes anteriores (JEP, logo no início; LV), mas aqui ela apresenta-se de modo veemente: Martin, filho bastardo de Victor Sauvagnac e de uma cabeleireira (Jeanine), terá a sua vida marcada por essa bastardia, sobretudo depois de ter, acidentalmente, matado o pai durante uma discussão. Esta relação pai-filho irá também surgir nos filmes seguintes desta lista, relação essa umas vezes marcada pelo relaxamento dos laços (LTQC), outras por uma intraduzível falha interior (QOADA). Será exatamente tudo isto, que, devido ao remorso e à sensação de culpa, interiorizados e somatizados, conduzirá Martin a comportamentos erráticos e ajudas psiquiátricas, que, tudo somado, e após saber da gravidez de Alice, que, amando-o, tudo faz para lhe atenuar a dor, será tudo isto, repito, que fará Martin entregar-se. Apesar da forte Confiança entre o casal, Martin não tem já Medo de, por fim, confessar o seu crime e entregar-se, e será depois, a partir da sua cela, que Martin se sentirá finalmente apaziguado e liberto de todo o peso que a sua alma vinha acarretando. De todos os filmes que aqui selecionei para este ensaio, este é o único em que a Redenção se dá por via judicial.


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