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Figurações da Subjetividade na Filmografia de André Téchiné (Parte 10)
Por Victor Oliveira Mateus Publicado em Artes, Cinema, Portugal a 2 de Abril, 2025 1579 palavras
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O sexto filme (“Les temps qui changent”, 2004) apresenta-nos uma narração interpolada, onde duas histórias se submetem a uma triangulação afetiva: a) Cecile/Nathan/Antoine; b) Sami/Nádia/Bilal. As figurações destas personagens são completamente distintas, assim como os finais das duas histórias: enquanto na primeira tríade Cecile rompe com o marido (Nathan) e recupera o amor de há 30 anos (Antoine); na segunda dá-se o oposto, e à rutura prefere-se a continuidade, pelo que Sami se manterá com quem sempre estivera (Nádia) tomando consciência da sem razão daquilo que é fortuito e acidental (Bilal). Os conceitos fundamentais do cinema de Téchiné convergem para aqui de modo indelével: o Caminho e o Habitar (Cf. o monólogo de Cecile quando procura Antoine no hotel); a Confiança (Cf. o diálogo de Sami com Nádia, quando clarifica o estatuto de Bilal na sua vida); a Atração e a Fidelidade (Cf. o momento em que Antoine fala da sua Natureza), a Redenção (Cf. final do filme); o Tempo, o Devir e a Memória (Cf. o diálogo entre Cecile e Antoine, após o carro deles ter empanado); as várias formas como o fenómeno Amoroso pode surgir (Cf. as posições de Antoine relativamente a esse sentimento, claras nas palavras de Rachel perto do final do filme, e a fazerem-nos lembrar um título de Maria Carpi: “A força de não ter força”. Quanto à questão do Simbólico atente-se, por exemplo, ao momento em que Bilal Queima a Ferida de Sami com uma Chave em Fogo.

Se o mundo das Paixões (positivas ou negativas) é um Tópico fundamental na Filmografia de Téchiné, o Fenómeno Amoroso adquire, neste paradigma, uma posição central, na sua multiplicidade de formas. Contudo, no sétimo filme desta lista: (“Quand on a 17 anos”, 2016) o arrebatamento amoroso adquire uma proeminência e um jogo defensivo de ocultações raramente detetáveis no cinema de Téchiné; a coerência, a frontalidade e, diremos mesmo, a sua desprotegida inocência só são suscetíveis de ser encontrados, nesta lista, em dois outros filmes (LRS e LTQC). Não nos esqueçamos das ocultações e da utilização da Máscara nas mais diversas situações, como por exemplo perto do final, quando Thomas diz aos pais que a visita que Damien lhe estava fazendo era um mero ato de gentileza. Ou melhor: a autenticidade, aqui, do amor de Damien por Thomas, só a encontramos em Maité e Henry (LRS) e em Antoine e Cecile (LTQC). Esta irredutibilidade do sentir, este oferecimento sem proteção nem máscaras, conduz-nos a essa espécie de transe de que Stendhal fala quando carateriza o amor-paíxão da “freira portuguesa”. E este é o cerne deste filme: os mecanismos defensivos de Thomas, nomeadamente através da contínua hostilidade e das agressões a Damien, não são mais, como ele confessará no final do filme, do que sintomas do seu Medo em entregar-se a uma situação que ele deseja, mas teme. Medo este que podemos encontrar em múltiplas situações: no diálogo entre Damien e Thomas, no corredor, quando o primeiro surpreende o segundo a fumar erva na casa de banho ou quando a Dra. Dolille, já recuperada, ainda vacila para retomar a sua profissão. Mas não é só o Medo que ressurge neste filme, também o Tópico basilar da Confiança, essa massa que cimenta o relacional, irrompe aqui como mensagem fundamental da película, no momento em que, sabendo que irá mudar de casa, Damien pensa que assim Thomas não mais o visitará, mas o discurso da mãe é claro: Damien precisa de ter Confiança em si, nos outros e na vida. Esta é, no que diz respeito ao Tópico da Redenção, a mensagem fundamental do filme, que o epílogo confirmará com a impetuosa corrida de Thomas para o amigo, que, debaixo de uma árvore, o espera. Não deixa de ser significativo – e ainda relativamente à problemática dos símbolos – considerar outras situações: a subida de Damien, perto do final, para rever o amigo, não só é estafante como precisa de ser retemperada por uma fonte que lhe possa refazer as forças, aliás, e quanto à significação da água, convém não esquecer igualmente, que esse Thomas que tanto sentia a dor de ser adotado (um “falso filho” como chega a insinuar) sinta constantemente a necessidade de regressar às águas do lago, e que Damien tenha posto o boné preto, outrora fedorento, que o pai, lá da guerra, lhe havia enviado, ora, mal Thomas se agarra ao amigo a primeira coisa que faz é arrancar-lhe o boné e atirá-lo por terra: símbolo de uma rutura, da morte simbólica do pai, agora substituído por outra figura. Relativamente à mãe de Damien (Dra. Dolille), importa igualmente sublinhar a sua reação, quando, finalmente, se apercebe da paixão do filho; as suas palavras são exatamente as mesmas que Maité havia proferido perante a angústia de François (LRS): “Mas não há nada a dizer”. Ou seja: o primado dos factos, limpos de quaisquer juízos de valor.

Os três últimos filmes desta minha seleção, e no que se refere ao sentimento amoroso, apresentam três situações que se distinguem de todas as que tenho vindo a enumerar: em “Nos années folles” (2017), encontramos o amor arrebatado de um casal, que, por vicissitudes várias, descamba em situações de desdobramento da personalidade, parafilias e assassinato; em “L’adieu à la nuit” (2018) encontramos não só o amor entre uma avó e um neto, mas também o fascínio deste último pelo radicalismo islâmico, convém enfatizar neste último ponto, que o neto (Alex), mantém uma ideia ingénua do fenómeno da radicalização, que não deixa de correr a par com a perda de um outro solo matricial (a mãe, morrera tragicamente num acidente de automóvel), e refere mesmo: que terá, finalmente, “a chance de construir a família que quer”, um Alex crédulo e ávido de espiritualidade, que diz ter visto a luz e por isso diz adeus à noite; por fim, o “Les gens d’à cotê” (2024) narra-nos o prendimento de uma mulher ainda jovem (Lucie), polícia e que enviuvara recentemente, por uma família que viera morar para um pavilhão a seu lado. Estes três últimos filmes revestem-se de dinâmicas mais diferenciadoras dos anteriores, contudo, os grande temas de Téchiné continuam lá: atente-se à pergunta do imã de Alex (LADN) para ele e para Lila: “Vocês têm Medo?” ou o confronto, no final do último filme (LGDC) entre Lucie e o seu superior hierárquico, confronto esse devido ao facto de ela ter traído a Confiança que a ordem social depositara nela. Estes três últimos filmes estão também cuidadosamente explanados na primeira parte deste ensaio. Aqui, neste Epílogo, pretendo apenas deixar claro que a obra cinematográfica de André Téchiné não é um titubeante rondar temático em torno de ideias baças e vagas, mas que se nos apresenta como uma estrutura precisa e uma urdidura coerente, e que, apesar das suas mil e uma facetas, é sempre de algo essencial que nos fala, enfim, uma obra cinematográfica a fazer-nos lembrar os pequenos caleidoscópios da nossa infância, que, chocalhados, davam sempre uma nova imagem colorida e fascinante, mas, na realidade, era sempre o mesmo caleidoscópio.

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BIBLIOGRAFIA

ARENDT, Hanna. Lettre nº 15 du 24 de março 1930 de Hanna Arendt à Karl Jaspers, in Hanna Arendt, Karl Jaspers, Correspondance, 1926-1969, Payot, 1995, p 45
DAMÁSIO, António. A Estranha Ordem das Coisas – a Vida, os Sentimentos e as Culturas Humanas, Lisboa: Temas e Debates, 2017.
FREUD, Sigmund. Essais de Psychanalyse Appliquée, Paris: Idéés/Gallimard, 1980.
HANSENNE, Michel. Psicologia da Personalidade, Lisboa: Climepsi Editores, 2004.
HIRIGOYEN, Marie-France. Les Narcise, Ils Ont Pris Le Pouvoir, Paris: La Découvert, 2019.
KRISTEVA, Julia. Les Nouvelles Maladies de L’âme, Paris: Fayard1993.
KRISTEVA, Julia. Cet Incroyable Besoin de Croire. Paris: Bayard, 2007.
REICH, Wilhelm. Análise do Caráter. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
TAUSK, Victor. Oeuvres Psychanalytiques, Paris: Éditions Payot, 2000.

FILMOGRAFIA

RENDEZ-VOUS (1985) com Juliette Binoche, Jean-Louis Trintignant, Wadeck Stanczak, Lambert Wilson;
J’ EMBRASSE PAS (1991) com Philippe Noiret, Emmanuelle Béart, Manuel Blanc, Christophe Bernard, Hélène Vincent, Ivan Desny, Roschdy Zem;
LES ROSEAUX SAUVAGES (1994) com Élodie Bouchez, Gael Morel, Fredric Gorny, Stephane Rideau, Michelle Moretti;
LES VOLEURS (1996) com Catherine Deneuve, Daniel Auteuil, Laurane Côte, Benoît Magimel, Julien Riviere, Fabienne Babe, Ivan Desny, Chiara Mastroianni;
ALICE ET MARTIN (1998) com Juliette Binoche, Mathieu Amalric, Alexis Loret, Carmen Maura, Jeremy Kreikenmayer, Jean-Pierre Lorit;
LES TEMPS QUI CHANGENT (2004) com Catherine Deneuve, Gérard Depardieu, Gilbert Melki, Malik Zidi, Lubna Azabal;
QUAND ON A 17 ANS (2016) com Kacey Mottet Klein, Sandrine Kiberlain, Corentin Fila, Alexis Loret;
NOS ANNÉES FOLLES (2017) com Pierre Deladonchamps, Céline Salette, Grégoire Leprince-Ringuet, Michel Fau, Clotilde Le Roy, Clara Eon, Virgine Pradal;
L’ ADIEU À LA NUIT (2018) com Catherine Deneuve, Kacey Mottet Klein, Oulaya Amamra, Stéphane Bak, Kamel Labroudi, Jacques Nolot, Mohamed Djouhri;
LES GENS D’À CÔTÉ (2024) com Isabelle Huppert, Hafsia Herzi, Nahuek Pérez Biscayart, Stéphane Rideau, Moustapha Mbengue


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