Aproximações ao Pensamento de Joseph Ratzinger – Artigo 3: Cristianismo e Judaísmo.
Sendo o tema deste artigo demasiado complexo e extenso, e tendo Joseph Ratzinger falado dele em vários pontos da sua obra, cingir-me-ei apenas a dois textos: um, a correspondência trocada, em 2018, entre Ratzinger e Arie Folger, Rabino-Mor da Comunidade de Culto Israelita de Viena; dois, o ensaio Graça e Chamamento sem revogação: observações sobre o Tratado De Iudaeis.
Relativamente ao primeiro tópico transcrevo o excerto de uma carta de Ratzinger para Folger:
“(…) O Cristianismo só existe em sentido próprio porque, depois da destruição do Templo e tomando como referência a vida e a morte de Jesus de Nazaré, se constituiu em torno de Jesus uma comunidade convencida de que a Bíblia hebraica, em conjunto, versava sobre Jesus e devia ser explicada tomando-O como referência, todavia, esta convicção não foi partilhada pela maior parte do povo hebraico. Daí derivou a discussão sobre se uma ou outra interpretação era correta. Esta disputa foi infelizmente conduzida pelos cristãos, frequentemente ou até quase sempre, sem o devido respeito pela outra parte. Pelo contrário, organizou-se a triste história do antissemitismo cristão, que em última análise desembocou na triste história do antissemitismo nazi que se patenteou no triste desfecho de Auschwitz.” ( RATZINGER, 2023, p 84); a esta carta do Papa Emérito, responde o Rabino Arie Folger no dia 24 de Elul de 5778, dia que corresponde – segundo a datação cristã – a 4 de setembro de 2018: “(…) É efetivamente assim. Os judeus e católicos deste tempo são particularmente chamados a comprometer-se em conjunto para velar pela manutenção da moral do Ocidente. O Ocidente está a tornar-se cada vez mais laicista (…) e ultimamente a maioria tem vindo a tornar-se cada vez mais intolerante à religião, aos crentes e às práticas religiosas. Por isso, podemos e devemos apresentar-nos juntos com mais frequência no domínio público. Juntos conseguimos ser muito mais fortes do que separados. (…) Representamos ainda as confissões que mostram e defendem publicamente uma grande tolerância. Naturalmente que em cada uma das duas confissões existem também extremistas (…) para nós é importante o compromisso em prol de uma sociedade tolerante, e que ficamos sempre horrorizados quando um fanático nas nossas fileiras se exprime ou age de modo diverso. Creio que acontece o mesmo com os Católicos. (…) Como discípulo de diversos discípulos do rabino Joseph Ber Soloveitchik, tenho uma atração bastante maior pelo seu terceiro ponto, o do empenho em desenvolver a sensibilidade moral da sociedade, e assim proteger os crentes e a sua liberdade religiosa, do que pelo diálogo teológico (…). O senhor não defende, efetivamente, um diálogo em que procuremos convencer-nos
mutuamente, mas antes um diálogo em que procuremos compreender-nos melhor. Penso que é particularmente importante a sua afirmação seguinte: “De acordo com as previsões humanas, este diálogo nunca conduzirá à unidade das duas interpretações durante a história atual. Essa unidade está reservada para Deus no fim da história.” Efetivamente, desta forma assinala-se que o diálogo deve fomentar a compreensão e a amizade, não visando, pelo contrário, a conversão ou o tratamento de pontos teológicos.” (RATZINGER, 2023, 87-89).
Da troca de correspondência acima referida poder-se-á concluir os seguintes tópicos: um, clarifica-se o momento e as razões subjacentes à rutura entre Judaísmo e Cristianismo; dois, criticam-se os excessos, que, ao longo da História, essa rutura proporcionou, aludindo-se inclusivamente ao antissemitismo e ao nazismo; três, apesar das fortes diferenças teológicas entre as duas religiões, é possível – e desejável – um traçar de pontes em defesa da Moral do Ocidente, da tolerância e, ao mesmo tempo, da recusa da intolerância, dos extremismos e de todos os tipos de fanatismo; quatro, sendo um ponto assente as diferenças teológicas entre as duas religiões, cujos debates, e tentativas mútuas de conversão, levariam a becos sem saída, importa então desenvolver um espírito de amizade e de compreensão entre o Cristianismo e o Judaísmo, visando a defesa do que é comum, e que está referido aqui no ponto três.
Relativamente ao ensaio referido no primeiro parágrafo deste artigo, Joseph Ratzinger começa por referir a existência de duas respostas, que, historicamente, existiram quanto à destruição do Templo e ao novo exílio de Israel. Convém acrescentar que Israel já havia conhecido outras situações de destruição do Templo e de dispersão, contudo, em todas essas vezes se mantivera a esperança na reedificação do Templo e no regresso à Terra Prometida, mas agora, após a destruição de 70 d.c. e da revolta fracassada de Bar Kochba, a situação apresenta-se de um modo bastante diferente: o Templo, com o seu culto, aparecia de impossível reedificação, acrescia ainda o facto de, para a maioria, tudo isto se apresentar como definitivo. A reação dos Cristãos, que, inicialmente, não estavam ainda completamente distanciados do Judaísmo, foi de manter a continuidade de Israel com a sua Fé, mas apenas uma pequena porção de Israel acolheu esta resposta, tendo a maioria opondo-se-lhe. Assim, se as duas vias não eram, de facto e no início, claramente distintas, acabariam por se distanciar uma da outra, muitas vezes com fortes disputas. A comunidade que se formou após a vida, morte e crucificação de Jesus de Nazaré, que, como dissemos procurou o seu caminho apenas dentro de Israel, mas, em vista do anteriormente referido, em breve se estenderia para o mundo grego, opondo-se cada vez mais ao Judaísmo.
A comunidade dos Cristãos impôs a sua identidade através dos textos do Novo Testamento, originados na segunda metade do século I, contudo, só após algum tempo se estabeleceu um cânone, que passaria depois a ser o documento específico da identidade cristã, todavia, estes textos não se exibem por si sós, remetem inapelavelmente para o Antigo Testamento, isto é, para a Bíblia de Israel, pelo que o cânone do Cristianismo passou a ser formado pelo Antigo Testamento (as Escrituras de Israel, atualmente as Escrituras do Judaísmo) e o Novo Testamento, que, segundo o Cristianismo, ilustra o Antigo Testamento a partir de Jesus. As duas religiões têm assim em comum textos do Antigo Testamento, que ambas as religiões interpretam de modo distinto.
Na segunda metade do século II, Marcião e o seu movimento, tentou quebrar esta unidade possível entre Judaísmo e Cristianismo, para que as duas religiões se contrapusessem de modo claro, estabelecendo mesmo um cânone cristão novo, mas Marcião viria a ser excomungado e a sua religião afastada radicalmente do Cristianismo. Uma vez chegados aqui, coloca-se a questão: como é que as duas comunidades que partilham textos sagrados comuns se julgam uma à outra? E é daqui que surge o tratado De Iudaeis também conhecido por Adversus Iudaeos, que, com a sua mensagem polémica, expande uma serie de juízos negativos contra os Judeus, que,
associados a um dado momento social e político, originam uma série de ataques contra os Judeus. Será depois o Concílio Vaticano II, na sua Declaração nº 4, que se debruçava sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs, e que se dedica especialmente à relação Cristianismo-Judaísmo, que reprovará todos os erros do passado relativamente ao Judaísmo, e formulará um critério válido para entender, ex novo, o tratado
De Iudaeis, e em 2015 a Comissão para as Relações Religiosas com o Judaísmo virá a elaborar um documento, cuja síntese do tema é a autorizada até aos nossos dias. Partindo dessa visão de conjunto, podemos afirmar, que, depois do Vaticano II, a nova perspetiva sobre o Judaísmo pode ser sintetizada em duas afirmações:
1º – Deve ser contestada a teoria da substituição, que neste assunto havia dominado o pensamento teológico. Nessa teoria defendia-se que Israel, depois de ter rejeitado Jesus Cristo, deixava de ser portador das Promessas de Deus de modo a poder ser designado como o povo que fora escolhido;
2º – É correto, pelo contrário, falar de uma Aliança nunca revogada, tal como foi desenvolvido depois do Concílio a partir da Carta aos Romanos 9-11.
Ambas as afirmações estão, segundo o nosso autor, corretas em vários aspetos, mas são imprecisas e pedem desenvolvimento sob uma perspetiva crítica, aliás, “é necessário reconhecer que a teoria da substituição, enquanto tal, nunca existiu antes do concílio. (…) Todavia, por outo lado, era claro que Israel, mais precisamente o Judaísmo, conservava sempre uma função própria na atual História da Salvação, e não desapareceu no universo das outras religiões. Foram estas duas considerações que sempre impossibilitaram a ideia de uma total exclusão do povo judeu da Promessa. (…) Israel é sem dúvida alguma o detentor da Sagrada Escritura (…) já como Santo Agostinho, por exemplo, sublinhara que deve existir um Israel não pertencente à Igreja, para testemunhar a autenticidade das Sagradas Escrituras. (…) De acordo com estas duas perspetivas era claro para a Igreja que o Judaísmo não se tornara uma religião como as demais, mas estava numa situação especial que, por isso, devia ser reconhecida enquanto tal pela Igreja”., RATZINGER (2023, 63-65).
Para terminar, e à guisa de conclusão, convém trazer à tona três temas fundamentais, e irredutíveis, quanto à forma de os entender por ambas as religiões, e que afastam, indelevelmente, Cristianismo e Judaísmo, são eles:
a) O estatuto do Messias, que o Judaísmo não o reconhece em Jesus, já que se o Messias vinha trazer a Paz, a realidade é que de facto não a trouxe: “O messianismo de Jesus é, e continua a ser, a verdadeira questão discutida entre Judeus e Cristãos RATZINGER (2023, p 69);
b) A questão do Templo, entendida de outro modo pelo Cristianismo, sobretudo na frase de Jesus, que, aludindo à crucificação e ressurreição, refere que em três dias destruiria o Templo e voltaria a reergue-lo;
c) E, por fim, a questão da Terra da Promessa, que para o Cristianismo não se cinge a um espaço físico com fronteiras delimitadas. Pois “A promessa da terra está reservada concretamente para os filhos de Abraão, enquanto povo histórico. É certo que os cristãos se consideram verdadeiros descendentes de Abraão, como diz incisivamente sobretudo a Carta aos Gálatas, mas não um povo num sentido terreno-histórico. Uma vez que são um povo no meio de outros povos, eles não têm a expetativa de nenhum território concreto neste mundo.” RATZINGER (2023, p 74)
*-*-*
Bibliografia
Cf. final do Artigo 1º dedicado a este tema.