Rosas. Uma hipótese social (1897)
Este conto passa-se em Utopia ou em Seldwyla ou talvez em toda a parte.
Havia ali entre os cidadãos uma terrível desigualdade. Cada um tinha o seu quinhão de terra, que lhe rendia tanto quanto precisava, desde que não precisasse mais do que ela rendia. Mas alguns ainda podiam dar-se ao luxo de cultivar rosas nas suas pequenas propriedades. Seja porque possuíam mais dinheiro do que os outros, ou gastavam mais tempo nisso, ou tinham terra e sol precisamente como as rosas gostam, – em suma, nelas havia rosas e nas outras não. Durante muito tempo esta situação foi aceite sem rancor, sem se pensar nisso, como se fosse uma necessidade natural que tal posse estivesse distribuída tão desigualmente quanto a posse de beleza e fealdade ou de entendimento e estupidez. Mas quando os possuidores das rosas as multiplicaram e aperfeiçoaram por meio de estacas surgiu por fim um surdo rancor entre os outros cidadãos. Um agitador convenceu com palavras inflamadas que o direito a possuir rosas nasceu connosco e que o acaso cego, que justamente só a alguns poucos fora concedido, teria finalmente de ser travado; um outro gritou para a massa que o tempo da sobriedade contida tinha os dias contados e que a palavra de ordem na luta por uma cultura mais elevada seria: tu deves ambicionar, deves ambicionar; um terceiro comprovou lógica e botanicamente que as rosas, dada a sua tendência para a multiplicação, teriam finalmente de se acumular por si mesmas de modo que os seus poucos possuidores, tal como os convidados de Heliogábalo, haveriam de sufocar em rosas e toda a posse cairia sem mais na massa; mas este inevitável processo de expropriação poderia ser agilizado e acelerado. Não foram de modo algum apenas impulsos inferiores de inveja, cobiça, volúpia que exaltaram a multidão. Mas tal como a própria fragrância da rosa não acaricia apenas o sentido do olfacto (quão pobre quem a cheira só com o nariz!), mas penetra-nos com doces estimulações até ao mais delicado e remoto do nosso ser – assim, em conjunto com este apelo do povo, com os seus impulsos demasiado humanos, cresceram também as derradeiras aspirações de uma alma e os mais profundos pensamentos da cultura. Surgiu um partido da revolução, e face a ele, o partido conservador dos possuidores de rosas que não queriam apenas proteger a sua propriedade, mas também o encanto de que só agora se tomara consciência: ter algo que os outros invejavam e pelo qual ansiavam. Enquanto estes ainda preparavam uma lei que lhes assegurasse, graças a um monopólio, a posse ancestral, herdada, histórica das rosas, desencadeou-se a insurreição, que terminou com a vitória total do partido igualitarista. E terminou desta maneira sobretudo porque a ideia ética que animara este partido se tinha finalmente introduzido também no lado oposto; acima de toda a oposição dos interesses erguera-se o ideal da justiça social e a vitória exterior deste apenas confirmou a vitória interior que já se tinha conquistado.
Assim paz, igualdade, felicidade eram finalmente alcançadas. Em cada mais pequeno talhão que um cidadão possuísse floresceram rosas e a nova repartição da terra, que imediatamente fora aceite, proporcionou a cada um iguais condições para que elas prosperassem. Tudo o que a constituição exterior das coisas pode proporcionar aos homens ela deu-lhes com a mais justa quota parte a seu favor. Contudo, as divisões não podiam dar-se tão uniformemente quanto os lados de uma igualdade matemática. Em todo o caso, um tinha a mão mais feliz para o cultivo de rosas, o outro um pouco mais de sol, o terceiro um enxerto mais potente; de facto, é apenas de um modo totalmente aproximado e sem de alguma forma se lhes ligar que a natureza segue a simetria dos planos humanos. Mas estas desigualdades mínimas eram vistas como algo a que inevitavelmente é preciso acomodar-se, como pouco tempo antes aquelas grandes diferenças, agora eliminadas, eram aceites –; sim, perante o considerável resultado que se tinha alcançado essa quantité négligeable não era propriamente notada.
Que as coisas se tenham desenrolado de maneira totalmente diferente disso cuidou uma propriedade notável da alma humana, que enraíza tão profundamente nela e de tal modo se ramifica nas suas vivências de cada dia, que só foi estabelecida em geral após milénios de reflexão sobre o nosso espírito. A saber: que a alma não pode sentir a diferença do seu movimento e excitações actuais senão em relação aos precedentes; estes ressoam nela de forma enigmática e formam o pano de fundo no qual o instante actual ganha e mede o seu conteúdo e o seu significado. Por isso a vida nos parece, quaisquer que sejam as alturas e as profundezas em que transcorre, tão vazia e indiferente quando lhe faltam as diferenças internas, de modo que a ininterrupta beatitude do paraíso é temida como uma monotonia igualmente ininterrupta. A perda de cem milhares não faz o rico mais infeliz do que um par de moedas perdidas fazem o pobre e nos primeiros passos do amor um furtivo toque de mãos não anima menos do que, no seu nível mais elevado, a conquista final da satisfação completa. Portanto, não sentimos a grandeza absoluta dos atractivos da vida, não sentimos quão elevado ou quão baixo reside o nível de conjunto das nossas satisfações e privações; mas somente com que diferenças os seus preenchimentos isolados se destacam entre si. Daí, quem tenha sido elevado ou rebaixado de um nível de vida para outro completamente diferente, após um curto período de adaptação, responde às oscilações e diferenças no interior do novo nível precisamente com os mesmos sentimentos de alegria e sofrimento, tal como os maiores ou menores do estado anterior. A nossa alma assemelhase àqueles finos mecanismos que reagem a cada alteração das condições exteriores com uma regulação autónoma, permanecendo o resultado sempre o mesmo. E se na nossa relação com outras pessoas as diferenças de alto e do baixo a respeito delas se interiorizam como sentimentos – então também se manifesta perante tais diferenças que nós somos aqueles seres dotados de tal sensibilidade às diferenças e ao mesmo tempo tão capazes de adaptação que associamos por fim a grandeza variáveis dos estímulos à mesma grandeza do sentimento.
E assim foi por tanto tempo quanto durou; mas um dia a adaptação cessou e aquelas diferenças mínimas de cor e forma, no perfume e atractivo das rosas, com as quais a natureza se apresentava ainda como a última instância para além de todas as tentativas de igualização, excitaram o mesmo ódio e inveja, a mesma soberba de um lado, o mesmo sentimento de privação do outro. E de novo teorias acutilantes começaram a perfurar nos espíritos: para que serviria então toda a propriedade senão para elevar os homens a um patamar mais elevado de felicidade? Se toda a posse externa não ganharia sentido se despertasse sentimentos de satisfação, sem os quais seria uma casca sem núcleo, um apelo a orelhas moucas? Se todo a sublevação contra a situação anterior não se teria originado de outra coisa do que no sofrimento sentido da desigualdade, da privação, da injustiça? E se não poderia ser remediado por uma distribuição externa dos bens, deixando o interior como dantes? Uma mera troca de máscaras! Despontava o conhecimento assustador de que nada há de mais indiferente do que as rosas, se a natureza liga a posse, tal como a carência delas, aos mesmos sentimentos de desigualdade. Foi precisamente este o erro na história do mundo: que se depositou na posse ou não posse de coisas a razão de ser das alegrias ou sofrimentos. Não; não é o facto de eu ter ou não ter que decide os meus sentimentos – mas sim se outros o têm ou não têm. Só as almas inteiramente finas e puras que são suficientemente ricas para viver do seu mais íntimo e mais próprio são capazes de impregnarse com prazer do objecto que fruem sem se sentirem para além dos seus limites; a massa porém nunca se irá satisfazer com o encanto das coisas, mas liga as suas excitações à posse, porque o vizinho é privado dela, à falta dela porque o vizinho a possui. Só a primeira impressão imediata da alteração de propriedade pode prevalecer sobre a comparação; mas as mais finas diferenças do novo nível logo atraem a nossa sensibilidade adaptada, como sucedera com as precedentes e mais grosseiras. E de novo a ilusão volta sempre a impelir-nos no esforço de Sísifo para a igualização exterior até ao ponto no qual a natureza fixa os seus limites e onde reconhecemos que o sofrimento que queríamos esvaziar para fora nos persegue desde o interior.
Se e quando os cidadãos do nosso país do conto consideraram isto, e quão frequentemente a revolução se repetiu – sempre visando o que ainda restava da desigualdade –, não sei. Talvez se venha a saber daqui a cem anos. Mas as rosas na sua beleza auto-suficiente continuarão a viver numa confiante indiferença em relação a todas estas transformações.
Título original: “Rosen. Eine soziale Hypothese” (1897).
Tradução de Adriana Veríssimo Serrão
a partir da edição das obras completas dirigida por Otthein Rammstedt (Georg Simmel Gesamtausgabe, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1989 ss), volume 17, pp. 357-361.