menu Menu
Poesia portuguesa
By Carlos Nuno Granja Posted in Literatura, Poesia, Portugal on 17 de Maio, 2024 541 words
Poesia portuguesa Previous Fragmentos de la publicación "a salto de mata" (2024) Next

Perder o rumo

Perdi o rumo, ou a identidade de nada saber de mim,
do que procuro dentro de mim, o mito fosco da realidade,
a mentira fechada na ferida aberta. Corro atrás do meteorito,
sonho ser a estrela que explode num universo paralelo,
desfragmentado resisto à ebulição da matéria no vulcão
que lança as flechas de deus sobre a aldeia dos indigentes.
Os animais sonham nas madrugadas tristes, de pálpebras
acesas acordam os donos que abandonam o primeiro sono
para escapar às maldições. Somam assombrações no plano
indigesto de feras, monstros comandados à distância
pelas hostes difusas de gregos guerreiros nos labirintos
do medo, no azar de enfrentar Minotauros bélicos,
que não são de carne e osso, são máquinas feitas de metal.
Perdem-se os homens na dúbia figura do poder, os gananciosos
caem na justa medida do merecimento, são crateras profundas
no peito, lava que escorre pelas veias, o coração sobreaquece,
como motores da nau Argo, já sem remos, nem Atena, apenas
o horror do mar revolto, que os engole na simples mordida – o fim
anunciado não se denuncia, vem, simplesmente vem,
um justiceiro que castiga o pecador. Perdi o rumo,
se houver futuro, o que houver de mim
será o fruto da metade que ainda está por semear.

*-*-*

Ao lado da minha mãe

Tenho aqui a minha mãe do meu lado
e ela diz que se esqueceu da minha idade, lembro-a bem,
mas ela recorda o meu nascimento, que eu próprio
olvidei, sonhamos os dois acordados neste sofá
onde tantas vezes adormeci. Reparo nas suas rugas
e ainda ontem não as tinha, enquanto ela fala
e dá um ar da sua graça – é graciosa a minha mãe –
respira fatigada porque de cansaço é o seu passado,
lembro-o bem. Comecei a escrever poemas
porque ela brincava com as palavras,
agora brinco eu também, com a idade que ela tinha,
que hoje já não tem.

Tenho aqui a minha mãe do meu lado
e recordo o passado, que é feito do vazio mais puro,
esfera reluzente, espiral tangível, estrada finita e ilusória,
vida restrita e acessória. Sigo na berma do tempo,
do que ele pretender dizer, que o significado esmoreço,
cabelos grisalhos, relento, desânimo para desistir –
a voz do além faz-se eco, no dorso do vento a fluir,
para longe, bem longe, prisioneiro de Calipso,
escravo de Atlas, o medo não me arruina,
o amor não me fulmina, se é fingimento de quem
no passado disse que vinha mas afinal nunca vem.

Tenho aqui a minha mãe do meu lado,
com o seu ar jovial, a parte inteira de todo
o amor incondicional – ela mesma o poema,
o que sobra no poente mais distante,
a sombra do oriente, o tridente ousado,
tributo à minha deusa que esqueceu a minha idade. Aqui nesta sala de memórias,
vamos recolhendo os anseios das clausuras
que se puseram no meio – com sorrisos
a velhice é da cor do futuro, dos dias que lentos atravessam o deserto da claridade.
Tenho aqui a minha mãe do meu lado, ouço-a
falar e calo-me, dou-lhe a maior atenção,
ela sabe, no alto da sua idade, a forma
como se pisa o chão.


Previous Next

keyboard_arrow_up