Aproximações ao Pensamento de Joseph Ratzinger – Artigo 2: Evolucionismo e Criacionismo.
Os confrontos entre Evolucionismo e Criacionismo têm, ao longo dos tempos, proporcionado os mais diversos debates, distintos quer em veemência quer ao nível da sua fundamentação. Logo em 1860, um ano após Darwin ter publicado A Origem das espécies, assistimos ao confronto entre Samuel Wilberforce, bispo de Oxford e membro da Câmara dos Lordes, e Thomas Henry Huxley, morfologista e paleontólogo; é um embate entre dois grandes vultos da era vitoriana: um da Igreja, outro da ciência. Atravessando o Atlântico, encontramos em tribunal, nos E.U.A., no Tennessee, em 1920, John Thomas Scopes, professor local acusado de ensinar nas aulas a teoria de Darwin da evolução, violando assim a lei estatal. Scopes é declarado culpado e multado, embora posteriormente um recurso tenha anulado a decisão judicial devido a um pormenor técnico. Por fim, em 1957, em plena Guerra Fria, após as conquistas espaciais soviéticas e os seus livros escolares começarem a apresentar exposições completas e pormenorizadas da evolução, surge, no seio do cristianismo americano, uma alternativa a essas posições que viria a ser chamada de Criacionismo, contudo, isto acabou por conduzir a que em 1981, no estado do Arcansas, outro julgamento acabasse por deliberar a favor do Evolucionismo, forçando assim a retirada do Criacionismo dos curricula letivos.
Um dos primeiros homens a falar publicamente a favor do darwinismo, para além de cristão, era clérigo anglicano: refiro-me a Baden Powell, nomeado professor de Geometria pela Universidade de Oxford, que, na época do debate entre Huxley e Wilberforce que referi acima, escreve palavras encomiásticas para com o A Origem das Espécies de Darwin. Também Charles Kingsley, sacerdote e professor de História Moderna na Universidade de Cambridge, afina pelo diapasão de Powell. Uma das figuras mais interessantes desta lista foi o teólogo de Oxford: Aubrey Moore, que, darwinista e cristão, defendia que a ciência iria agora permitir a Deus participar no nosso modo de ver as coisas, a toda a hora e em todo o lugar, isto é, seria agora possível regressar à visão cristã da intervenção divina direta, à imanência omnipresente do poder divino.
Mas não é só do lado da religião que surgem posições conciliatórias, também do lado da ciência irrompem posições
de harmonização e integração: cito aqui dois dos maiores evolucionistas desde de Darwin: o inglês Ronald Fisher, autor de The Genetical Theory of Natural Selection (1930), e Theodosius Dobzhansky, americano nascido na Rússia, autor de Genetics and the Origin of Species (1937). Ambos os cientistas eram assumidamente cristãos: o primeiro na Igreja Anglicana, o segundo na Igreja Ortodoxa. Para Fisher, se a evolução ainda não terminou, a criação também ainda está a decorrer, ela não cessou há muitos séculos atrás e, se quisermos mesmo articular esse processo com o Génesis, nós estamos ainda no sexto dia, aquele em que Deus ainda não descansou para contemplar a sua obra. Dobzhansky articulará a fé com a ciência de modo muito semelhante. Contudo, à medida que nos vamos aproximando da contemporaneidade a distância entre fé e ciência irá apresentar-se, para alguns autores, como incomensurável ou, em alguns mesmo, insuperável, é o caso de Richard Dawkins (nascido a 26 de março de 1941): biólogo em Oxford, profundamente ateu e duro darwinista. Se Dawkins é o forte defensor do Evolucionismo, encontramos na outra extremidade Phillip E. Johnson (1940-2019) grande adversário dessa corrente e defensor acérrimo do Criacionismo. Todavia, e para além destas posições extremadas, autores existem que argumentam que a ciência e a religião podem coexistir em harmonia, é o caso de Stephen Jay Gould (10/09/1941 – 20/05/2002). Gould, paleontólogo que se assume como agnóstico, argumenta que não há oposição entre ciência e religião, já que não há sobreposição entre ambas, pois os seus campos de especialidade profissional são radicalmente distintos: a ciência interessa-se pela constituição empírica do universo, já a religião tem por preocupação a busca de valores éticos corretos e o significado das nossas vidas. Este sentimento de unidade e harmonia é também vivido por outros autores como Keith Ward (nascido a 22 de agosto de 1938), professor de Teologia em Oxford, que defende que a seleção natural é uma teoria fecunda, pois o relato evolucionista e a crença religiosa numa força criativa não só são compatíveis, como se reforçam reciprocamente.
Desenhado que está o pano de fundo da polémica, discorrerei agora sobre a posição de Joseph Ratzinger no que a ele diz respeito.
Assim, e no respeitante ao que tenho vindo a escrever, este autor não se coíbe de colocar a questão: “Mas hoje a nossa pergunta é: na época da ciência e da técnica, ainda tem sentido falar de criação? Como devemos compreender as narrações do Génesis?” (RATZINGER, 2023, p 27). Vemos, por conseguinte, que a problemática da criação se encontra imbrincada com o modo de olhar a narrativa bíblica. A sua posição é bastante clara: a Bíblia não é um manual de ciências naturais, o que ela pretende é compreender a verdade autêntica e profunda da realidade, ou seja, o que o Génesis ambiciona é revelar que o mundo não é um conjunto de forças contrastantes entre si; aquilo a que a Bíblia aspira é revelar que o mundo tem origem no Logos, na Razão eterna de Deus. A partir deste tópico a questão da Criação segue a par da metodologia com que devem ser olhadas as Escrituras: “Portanto, a Escritura diz-nos que a origem do ser, do mundo, a nossa origem não é o irracional, mas a razão, o amor e a liberdade.” (RATZINGER, 2023, p 27). A partir daqui temos de reconhecer que o homem não se fez sozinho; os humanos não são mais do que pó, e é Deus que inspira o sopro de vida nesse corpo modelado de terra, ou seja, nós trazemos em nós esse sopro vital, daí a inviolabilidade da pessoa humana, a sua dignidade, que jamais deve ser entendida através de critérios utilitaristas. Uma vez este ponto assente, o jardim com a árvore do conhecimento do bem e do mal revela-nos tão-só (ou acima de tudo?) que o homem deve reconhecer que o mundo não é propriedade a destruir e a explorar, já que sendo dádiva do Criador, ele é um dom a cultivar e a conservar. Mas Ratzinger não se limita ao modo de ler as Escrituras, ele articula essas narrações com o contexto sócio-cultural ao qual elas se dirigiam e se dirigem, pois da Bíblia ninguém pode obter informações relativas às ciências naturais, já que dela apenas se podem obter conhecimentos relativos à experiência religiosa, então “Tudo o mais não passa de uma imagem e de uma forma de narração com o único objectivo de tornar realidades profundas acessíveis aos seres humanos.” (RATZINGER, 2009, p 19). Urge então distinguir “forma de uma representação” de “conteúdo dessa mesma representação”, e a forma terá sido escolhida num contexto epocal em que podia ser compreendida, uma vez chegados aqui surgem-nos dois outros subtemas: um, só se pretende representar, através dessas imagens, realidades que são perenes, isto é, não interessa demonstrar como as árvores, as estrelas, o sol, etc., foram aparecendo, a intenção é outra: mostrar que Deus criou tudo o que vemos neste Aqui que nos envolve, que tudo procede da Razão de Deus, de um Logos criador pela “Palavra de Deus, que é a mensagem do seu acto criador” (RATZINGER, 2009, p 25); dois, há uma constatação da (e na) Bíblia aparentemente contraditória com o que escrevi anteriormente, é que ela adapta constantemente as suas imagens ao desenvolvimento do pensar que, no tempo, necessariamente vem ao seu encontro; as imagens, portanto, corrigem-se constantemente através dum processo interativo e gradual, e é desse modo que elas nos vão dizendo que não passam de imagens de algo que as ultrapassa. Assim, as narrativas bíblicas relativas à criação são um modo de referência à realidade distinto dos que podemos encontrar na biologia, na astrofísica, na paleontologia, etc., elas não explicam o processo evolutivo do que nos rodeia nem a estrutura matemática da matéria, dizem-nos, isso sim – e de forma diferente -, que há um só Deus e que o universo não é um mero campo onde forças obscuras se digladiam, mas que é Criação do Logos, da Razão e da Palavra de Deus. Contudo, convém acrescentar que as passagens particulares da Bíblia não caiem numa ausência de significado nem que este se encontra limitado ao seu conteúdo: elas representam a verdade segundo o modo próprio dos símbolos – exemplo: a narração bíblica está marcada por números que não reproduzem a estrutura material do universo, mas o plano interno da sua construção, assim encontramos com frequência o 4, o 7, o 10; a expressão “disse Deus” surge 10 vezes na narração da Criação, numa antecipação dos 10 Mandamentos, que se apresentam como o eco dessa mesma Criação, e os exemplos – não arbitrários – são inúmeros, numa tradução que aponta para a linguagem, para o espírito, para a tradução da linguagem do universo, para a lógica com que Deus o criou. Antecipando a posição de Ratzinger posso afiançar que a relação Evolução/ Criacionismo não se apresenta sob a forma de uma oposição: “Ora, espíritos mais pensativos deram-se há muito conta de que não estamos perante uma alternativa. Não podemos dizer criação ou evolução. A fórmula correcta seria criação e evolução, pois estes dois conceitos respondem a duas questões diferentes. A história do pó da terra e do sopro de Deus, que atrás ouvimos, de facto, não explica como as pessoas surgiram, mas antes aquilo que elas são. Explica a sua mais profunda origem e lança uma luz sobre o projecto que elas são. A teoria da evolução procura, por outro lado, compreender e descrever os desenvolvimentos biológicos. Mas, ao fazê-lo, não pode explicar de onde veio o “projecto” das pessoas humanas, nem a sua origem interior, nem a sua natureza particular. Neste sentido, somos aqui confrontados com duas realidades que são complementares – em vez de se excluírem mutuamente.” (RATZINGER, 2009, p 50). Esta posição remete-nos para um outro tema importante no pensamento de Ratzinger, refiro-me à questão da relação Saber/ Ignorância, que, por sua vez, nos assinala um tema fundamental no pensamento deste autor: a Fé. Considerando que esse tema tangencia tudo o que aqui abordei, tomo a liberdade de referir o cuidado com que, segundo Ratzinger, devemos trilhar as sendas do conhecimento: “Obviamente, esta mistura de saber e ignorância, de conhecimento material e profunda incompreensão existe em todos os tempos. Por isso, a palavra de Jesus relativa à ignorância, com as suas aplicações nas diversas situações da Escritura, deve, também hoje, inquietar os pretensos sábios. Porventura não seremos cegos precisamente quando nos consideramos sábios?” (RATZINGER, 2011, p 171).
BIBLIOGRAFIA
Consultar o final do Artigo 1, também neste número da Revista.
Victor Oliveira Mateus