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Um ensaio (Auschwitz e a Genialidade do Mal)
Por David Guimarães Publicado em Filosofia, Filosofia Social e Política, Portugal a 1 de Março, 2021 1440 palavras
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“Onde o “Diabo tirava notas.” Auschwitz e a “Genialidade do Mal”.

(Uma homenagem a Claude Lanzmann (escrito dias após a sua morte, 5 de Julho de 2018)

Ainda desolado pela morte de Claude Lanzmann, o cineasta que mais admiro, escrevo com angústia. Vejam toda a sua obra cinematográfica “Shoah” (palavra hebraica para Holocausto) e filmes subsequentes sobre o tema. Melhor documentário de todos os tempos, foi talvez a única eficaz resposta aos “carrascos voluntaríssimos” de Hitler.)

Tentando suprimir todos os tempos e todos os vestígios, todos os vestígios em todos os tempos, eliminar todo o cheiro da eliminação, os campos de extermínio foram a superação do demónio (em requinte, fôlego, conhecimento, tecnologia, filosofia). As cinzas dos corpos e os campos em cinzas, depois das cinzas dos corpos. Pretenderam aniquilar a aniquilação, eliminado os vestígios genocidas, mas Lanzmann nunca o permitiu.
Para ele, “apesar de tudo, não há imagens”. Uma espécie de teologia negativa readaptada ao mal. Está onde não está, vê-se onde não se vê, se o imaginamos não é assim. Sacralizou esse mal, divinizou-o. Mais do que crença, importância. Nessa lógica, desconstrói qualquer negacionista. Ninguém sabe como foi, mas existiu e existirá sempre, até ao fim dos tempos. Nos seus documentários não utilizou arquivos, não filmou corpos escanzelados, execuções em valas comuns, pogroms, estrelas de David deambulantes bordadas em uniformes rotos. Não ficcionou com realismo, ou sem ele. “Bateu” em Benigni, Spielberg, Didi-Huberman, Arendt… Talvez não com toda a razão, mas com a legitimidade toda. Para mim, foi quem se demonstrou mais empático, tanto na consumação da obra como no percurso. Os onze anos de suor até “Shoah” estar concluída são um pormenor importante.
No derradeiro filme com enfoque no Holocausto, “O Último dos Injustos”, já velho e desgastadíssimo, percorria com dificuldade os “caminhos negros” dessa história. Parecia carregar toda a angústia do sofrimento das vítimas às costas. Imagino que o seu último pensamento não tenha sido para qualquer ente querido, mas sim para Auschwitz. Partilho com ele o espírito atormentado pela Shoah e, em forma de homenagem, resta-me pensar sobre este fenómeno com toda a sensibilidade, inteligência e empatia que consiga, como o exímio realizador sempre fez.

A “banalidade do mal” como conceito, o raciocínio que lhe está subjacente, é interessante quando utilizado para explicar o envolvimento da sociedade alemã na gigantesca máquina de morte nazi e na sua contribuição para a perfeita burocratização da mesma. Também é muito útil para perceber o quão pouco livre é o ser humano, que quando manietado pelas forças castradoras do meio, não consegue ter uma atitude em contra corrente. A pessoa banal consegue um mal tremendo, quando inserida na manada facínora. Erra a filósofa Hannah Arendt, em meu entender claro, ao aplicar este mesmo raciocínio de “banalidade” a Adolf Eichmann, no julgamento de que foi alvo, em 1961. Esta alta patente do regime é um assassino convicto, psicopata, embrenhado de um profundo racismo e antissemitismo, plenamente consciente do inferno aprimorado que estava a criar. Para este criminoso, a “excepcionalidade do mal” seria o mais indicado. O monstro Eichmann não fora um fantoche, mas sim um agente que estava fora das “massas” e possuía conhecimento profundo da maquinaria de morte, que amava, tendo possibilidade de acção directa na mesma.

Qualquer interpretação filosófica que, em todo o enquadramento global, coloque Eichmann como figurinha emergente da amálgama de massas não convictas e conscientes (ou pouco) é, no mínimo, ingénua. Eichmann é e constrói o sistema. Ele sim “manipula” as massas (mas atenção, todo o sujeito manipulável não é sujeito sem vontade). Invertendo a lógica: O nazismo (na sua componente genocida), no fundo, não é um sistema de massas, faz das massas sistema. O que varia é o grau de consciência da magnitude e dimensão do acto cometido… a percepção. E essa é mais uma das causas da “excepcionalidade” do regime hitleriano, toda a sociedade está envolvida, a tal burocratização nacional, em sentido universal, que a todos implica.

É necessário perceber que a Shoah começou por ser feita por balas e abertura de valas comuns, depois em camiões de gás e por fim através de câmaras de gás. Portanto, mais do que uma organização perfeita e burocrática, devemos colocar a tónica na profunda originalidade, na criatividade, na novidade da morte nazi. O Holocausto teve avanços e recuos, improvisações, conseguiu criar um “inferno aprimorado”, nem Dante o concebeu tão dantesco. E essa improvisação do mal, como um fervor artístico em forma de genocídio, retira-lhe o carácter banal, apanágio sim das massas acríticas seguidistas. A conduta instintiva (visando a sobrevivência), como algo justificável para não discutir o “sistema” vigente, levanta um facto eloquente, que faz com que a perplexidade e revolta para com o fenómeno aumente ainda mais: quem estava nos campos de morte como guarda podia renunciar e sair, não era obrigado a fazer aquele “trabalho”.
O Director da CIA, Allen Dulles, teve acesso a todos os detalhes via espionagem, sabia pormenorizadamente quais os procedimentos da “Solução Final”. Quando em 1945 teve acesso a fotografias do processo genocida, desabafou: “Ah então é verdade”. Isto diz-nos que ele não conseguia conceber tudo aquilo, apesar da descrição detalhada que possuía através dos relatórios que lhe foram disponibilizados.

A “banalidade do mal” será então um gérmen sem metamorfose. Algo concluído, sem lapidação. Com potencial de alastramento. Uma valência de todo e qualquer ser humano. Sem o procurar ou sentir, executar sem nunca o ter pensado. Mas tal lógica não nos responde acerca de como terá sido orquestrado ou instigado esse mesmo mal. “Todos nós copiamos uma estátua de Soares dos Reis, como todos nós baleamos uma nuca a um palmo de distância”. Mas o Holocausto não nasceu feito, tal como a estátua não nasce esculpida. Para isso é preciso génio. Os campos de morte foram uma incessante folha em branco, por preencher. Apelaram a uma constante experimentação e improvisação. “A genialidade do mal” teve avanços e recuos, falhanços e inovações, sempre numa tentativa de aperfeiçoamento.
Deus será a multiplicidade de perguntas “certas” para a vida, Auschwitz será a multiplicidade de respostas “certas” para a morte. Assim como “Deus nos chama” quando esgotamos naturalmente, Auschwitz esgota e asfixia com gás. Só “Deus” e “Auschwitz” sabem a “hora da nossa morte”. É verdade que homens banais, quando em circunstâncias extraordinárias, fazem um mal extraordinário. Mas o mal não é banal, as pessoas é que podem ser banais no sentido da sua quotidianidade muitas vezes manifestada, mas praticam esse mal excepcional, genial. Se Deus for o criador da vida, Auschwitz é o criador de morte. Satanás foi superado! A Shoah é a obra prima do mal, a sua “revelação”. Integra, na sua génese, um ateísmo. Intocável positivismo adorador da ciência, da tecnologia, do progresso. Contendo lógica de evolução positiva através da negação da vida, da existência passada e futura, individual e colectiva (não é contradição, mas sim coerência negra). Negacionismo de Deus, pela maldade das maldades, o genocídio. Onde a redenção está ausente. Condição necessária de todas as religiões, dos corações de fé, da espiritualidade que jorre de qualquer peito.
Resta-me uma certeza. Para a Shoah, as não respostas. A limitação em oposição ao fundamentalismo. Sinto-me culpado da alienação e do conforto de todos os dias, peço perdão por ele. O que posso acrescentar? Mais questões. Lanzmann morreu e sinto uma enorme angústia em relação a tantas outras coisas. Não só sobre a Shoah. Será que existe algo para além dela?


“Mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, trabalhou o futebol mediatizado como potencial transmissor dos ideais salazaristas e forma de enquadramento de massas. Autor de diversos conteúdos em formato escrito e audiovisual, debruçando-se preferencialmente sobre futebol, vê no estudo das múltiplas formas de nacionalismo e totalitarismo, um meio de pensar o mundo que o rodeia.”


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