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O chão em festa ( Ensaio)
By Nuno Brito Posted in Ensaio, Literatura, Portugal on 20 de Agosto, 2025 2339 words
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O chão em festa

“Não temos outro mundo para tornar mais humano” (João Melo).

“É urgente o amor” (Eugénio de Andrade).

A coragem encheu-nos agora – e para sempre – o coração e a coragem são o mesmo começo,para sempre quer sempre dizer: Agora, este é um caminho-começo. O risco está traçado e por isso a coragem é já uma vitória, a coragem é criadora e por isso invencível, é o mais poético dos actos porque é um fim, é também uma verdade, é a expansão da linguagem e do mundo. E se a dúvida é também o que temos de mais poético e humano e tão entrelaçáveis estes dois mundos com a nossa capacidade de criar (muitas vezes nomeada como uma condição quando ela é em si a própria libertação de todas as condição), a afirmação é também parte da nossa humildade e resistência a dogmas e construções estanques. A máxima “Somos pó e pó voltaremos a ser” tão próxima da construção de um slogan a um produto atual pode ser revista no final de um poema barroco de Quevedo “somos pó, mas pó enamorado”, o diálogo é por expansão e não negação, o diálogo que Quevedo faz com uma propaganda religiosa milenar é adversativo, no entanto este “mas” não nega que somos pó, mas atribui a esse mesmo pó (estranha figura mítica de um imaginário religioso) outras imagens que nos veem e criam enquanto humanos, aumentando um imaginário fortemente imposto por uma elite religiosa que controlava não só o ensino como todos os aspectos da cultura europeia e entre elas o condicionava fortemente o pensamento e a criatividade. Dessa forma a afirmação vital e criativa de Quevedo está do lado de uma coragem cuja origem etimológica se liga desde logo ao coração e ao centro, a cor múltipla de impulso afirmativo, aquilo que pulsa e impulsa o conhecimento, a criatividade e a experiência humana. “Não temos outro mundo” ou outra vida, e por enquanto, estamos só (todos nós) deste lado da estrada antes da curva que nos falava Alberto Caeiro em O guardador de rebanhos, “Para além da curva da estrada / talvez haja um poço ou um castelo”. Mas: “Por agora estamos só na estrada antes da curva e antes da curva há a estrada sem curva nenhuma”. Lembra ainda Caeiro há “beleza bastante em estar aqui e não noutro lado qualquer” e este aqui que é um espaço físico e concreto, o sítio onde estamos, espacialmente e temporalmente (lembrando o que há para além da curva da estrada como a morte ou um futuro remotamente afastado) é, lembrará Caeiro um sítio (tempo e espaço) onde nem sempre estamos realmente, enquanto presença concreta e verdadeira ou ainda mais enquanto ser e estar (juntamente). Sobre essa mesma dualidade Fernando Pessoa vai falar no poema de Álvaro de Campos “Não: devagar”: “Há entre quem sou e estou / Uma diferença de verbo / Que corresponde á realidade.”; “Há entre mim e os meus passos / Uma divergência instintiva” diferença que a nossa própria língua evidencia. Se há beleza suficiente em estar aqui é também porque esse estar é já um ser e essência e por isso uma presença humana mais completa sobre o nosso mundo, algo longe do nomadismo digital e do turismo desenfreado que se veste de uma “fome de mundo” artificial e superficial. Se queremos (por momentos) comer o mundo, lembra uma vez mais Pessoa é porque nos sentimos nele, nesse ser aqui que é um estar aqui mais humanizado. O estar torna-se assim, nessa dimensão, um meio e trânsito para o fim de um estar mais completo ou um ser, completo, por estar aqui e não num outro lado qualquer. Em “Inferno”, livro que inaugura em Pedro Eiras o diálogo com a Divina Comédia de Dante Alighieri o poeta, ensaísta e professor lembra: “Não poderia ser uma viagem mais curta: / nem um passo demora / ir aonde / já estás” (Pedro Eiras). O Aqui do poema de Alberto Caeiro é aqui em Pedro Eiras mais complexo, a completude que existe nele deriva não de um deslocamento e de uma viagem infinita, a viagem mais curta que nem um passo leva exige um salto e um risco e uma coragem acentuada, mergulho-começo numa estrada directa que nos leva aonda precisamente já estamos, linha recta e coração cheio: Ama como a estrada começa (Mário Cesariny), também para além da curva da estrada, sabendo também que antes aqui ela está já completa porque infinita e começada. Se a estrada de Cesariny não acaba, como não acaba o amor (infinito super-real e mágico), a estrada de Fernando Pessoa não acaba também. Nos dois casos há um risco e uma possibilidade ampla e criativa. A viagem infinita de Mário Cesariny cria-se se enquanto uma afirmação completa de vida sugere vitalmente uma linha reta, a linha recorrente e ampla da sua arte visual, as “linhas d’água” da sua pintura. Não há um fim para esse caminho, ascendente (em direção ao sol ou à criança que somos) que não o do próprio amor intransitivo e impessoal à vida que começa, infinitamente. O Amar verbo intransitivo de que nos fala o poeta modernista Mário de Andrade, ao mesmo tempo um dos seus títulos e uma da suas imagens de eleição. Encontro com um Eu ainda, o it de ClariceLispector que está em todos nós e que é o impulso vital do nosso ser mais verdadeiro. O encontro mais inicial entre o eu e o outro, que o poeta e editor da beat generation Lawrence Ferlinghetti chamaria: “a distância mais curta entre duas pessoas” numa definição de poesia que é também a sua ilimitação e mostra de vitalidade em que arte se encontra mais próximo de uma comunhão mais sincera e inicial.

Essa viagem infinita e em linha reta, sempre começo e sempre enchente (a meio do caminho, viagem-fim) é no poema de Alberto Caeiro uma estrada com curvas em que o caminho é desconhecido, a dúvida sobre o que existe para além da curva da estrada é expressa pelo subjuntivo, “talvez haja um castelo ou talvez haja um poço”. Mas o castelo e o poço não interessam por agora porque estão para além da curva e não aqui, na estrada antes da curva. A estrada com curvas de Caeiro, a estrada de aldeia, com inclinações, montanhas, declives está próxima da estrada pedregosa de Minas, de Carlos Drummond de Andrade, o “canto torto” ou “canto esponjoso” que considera seus, são artes poéticas de um modernismo fragmentário “deste tempo e não outro” que satura a sala. O canto ou a poesia só é possível para Drummond enquanto desviante e enquanto torto, enquanto caminho poroso, infiltrado em tudo, o poema como uma bomba relógio cheia de espelhos pronto a explodir, vitalizado de referências concretas e saturado de experiências o poema é um caminhar sobre um mundo complexo e colectivo, um exercício de criação e aprendizagem infinito, vital e arriscado. A estrada que agora começa até ao infinito é a imagem viva da poesia a estrada viva em direção ao outro. O caminho reto ou curvo é afinal o mesmo porque não tem fim nem começo, ele faz-se sem deslocação, por um salto vital de coragem. Na poesia o coração está cheio e sobressai o nítido, tudo se enche de vida e tudo está a começar e a acabar. A viagem é então a única opção, ela é um risco e não uma condição que para a nossa possibilidade humana é ficcional. O risco é um começo poético (o fim do medo).

Não poderia ser uma viagem mais curta:
nem um passo demora
ir aonde
já estás.

Em verdade é bem leve
l’invitation au voyage:
sem passaporte nem salto de fronteira,
nem um instantâneo correio de luz
(mas inevitável o assombro
Do chão a fugir
sob os pés):

nem tropeço ou grande passo:
nada:

somente ir
aonde
já estás.

(Pedro Eiras, Inferno)

Não temos medo quando a Poesia é verdadeira e enche o mundo, e o mergulho é verdadeiro, possível: nem tropeço ou grande passo: “(mas inevitável o assombro / Do chão a fugir / sob os pés)”.

Quando a estrada começa, e começou desde sempre, o espanto e o assombro consomem o medo e a vitória não tem fim. Porque sempre haverá choques, sempre haverá poesia, mergulho, surpresa e espanto. Tal como sempre haverá caminhos haverá necessidade de criar outros e também de os unir. A estrada de Caeiro e de Cesariny estremecem de assombro como uma gota que cai ao chão. A atenção de uma gota que cai num poema de Emily Dickinson:

A drop fell on the apple tree.
Another on the roof;
A half a dozen kissed the eaves,
And made the gables laugh.
A few went out to help the brook,
That went to help the sea.
Myself conjectured, Were they pearls,
What necklaces could be!
The dust replaced in hoisted roads,
The bird jocoser sung;
The sunshine threw his hat away,
The orchands spangles hung.
The breezes brought dejected lutes,
And bathed them in the glee;
The East put out a single flag,
And signed the fête away.

(Emily Dickinson)

A atenção de uma gota que cai ao chão, na maceira, no telhado, nas ervas é em si revolucionária enquanto singularização e estremecimento: “Em poesia, vale mais sentir

um estremecimento a propósito de uma gota de água que cai em terra e comunicar esse estremecimento,do que expor o melhor programa de entreajuda social.” (Henry Micheaux). Estremecimento e festa da possibilidade, enquanto perspetiva do chão, afirmação da festa do chão, possibilidade do chão: “Façam completo silêncio, paralisem os negócios, / garanto que uma flor nasceu.” (Carlos Drummond de Andrade, a Flor e a Náusea).

“Parar é então o que temos de mais revolucionário” (André Barata) e na lentidão de se agachar para observar com atenção uma flor que nasce rompendo o asfalto (pequena, mínima, frágil) o chão é já uma festa, porque ela está já nos olhos e com eles criamos ativamente e poeticamente o mundo. A física é então a própria magia de tudo a ser revelada. As gotas que caem vão aumentar o mar. E a morte vai aumentar o mundo. A morte vai aumentar a vida.

“Façam completo silêncio, paralisem os negócios pode transformar-se muito facilmente, agora mesmo, em Façam uma festa completa, garanto que uma flor nasceu”. A física e a magia material e concreta de nos sabermos intuitivamente eternos quando nos vemos – 0utroeu – nos olhos, diretamente, a poesia é a estrada mais curta e a estrada que começa, a partir da lentidão.

Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde á realidade.
Devagar…
Sim, devagar…
Quero pensar no que quer dizer Este
devagar…
Talvez o mundo exterior tenha pressa de
mais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais
cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja
muito próxima…
Talvez isso tudo…
Mas o que me preocupa é esta palavra:
devagar…
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo…
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?

E sendo de queda, estagnação. ou Ascenção a viagem é já um estremecimento vital, feita de certezas ou de dúvidas, de uma linha reta infinita ou de curvas contínuas de montanha, de declives, oscilações, sombras e pedras, pode nela haver um poço ou um castelo mas seja a estrada de Caeiro ou a estrada de Mario Cesariny há sob elas um chão que estremece, há sob nós um chão em festa, um mundo que gira cada vez mais rápido sobre o seu próprio eixo e só poeticamente o podemos habitar verdadeiramente, “ir aonde já se está” é então risco mais necessário e a coragem é já uma vitória. Estarmos aqui é então já uma vitória ao mesmo tempo que uma viagem, mais intensamente, um regresso ao cosmos, numa estrada que começa e cujo final está já dentro, “escrevemos, regressamos, não há outro caminho” lembrará Rui Pires Cabral. Todo o caminho é de regresso, ao centro de nós, aqui (ir aonde já se está), comecemos então por Aqui. Aqui é onde é sempre a festa. Aqui é onde estamos:

Aqui nesta pedra alguém sentou olhando

Aqui
nesta pedra
alguém sentou
olhando o mar

o mar
não parou
para ser olhado
foi mar
para tudo quanto é lado

(Paulo Leminsk)

O chão é uma vitória e a festa do chão é a vida do chão. As bombas não devem cair no chão. As bombas devem cair no céu. Essa é a festa do céu. No chão temos a vida. A vida opulente, sincera e afirmativa, a vida com todas as mortes que é a vida sem fim. A Poesia divina, eterna, opulenta e vital que há em nós. Temos o chão por vida. Aqui a festa do céu.
Transformar tudo em Poesia é apenas ver tudo já como Poesia. A Poesia está em Tudo. E Prova Deus haja ou não haja estamos e somos também em todo o lado. A omnipotência do Amor: O Chão ondulante em festa.

Nuno Brito


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