«O MENINO DO ELEFANTE» de LUÍS FILIPE SARMENTO
A capacidade de memória dos elefantes, celebrada pela tradição e confirmada pela ciência, aproxima-nos desses grandes paquidermes e, talvez por isso, eles nos pareçam tão familiares, que protagonizam mil e uma histórias tradicionais, contos infantis, romances, filmes, sempre transportando uma ideia de suave espessura, infantil travessura, reflexão, resistência e permanência da memória. Veremos se é este o caso do mais recente elefante que irrompeu na literatura portuguesa, certamente para ficar, como ficaram os de Lobo Antunes, Saramago, António Cabrita ou Luísa Dacosta.
Clarifiquemos. Este elefante de Luís Filipe Sarmento não é nenhum Salomão, protagonista de uma viagem histórica, mas é um companheiro indispensável de um troço de viagem sem o qual o verdadeiro protagonista – o menino – não chegaria a bom porto, quer dizer, ao lugar/tempo a que, muito cedo se propôs chegar (“Enquanto as lágrimas e o ranho me desfocavam o rosto em pânico, questionava-me se teria cometido algum despropósito que tivesse provocado a morte da mãe. E nesse dia, sem saber muito bem o que me estaria destinado, comecei inconscientemente a desenhar o meu plano para a liberdade”. p.14). A liberdade que, cedo perceberemos ter diversos rostos, à medida que a narrativa avança, será sempre a meta que o protagonista, também ele ostentando diferentes rostos, procurará alcançar.
O ‘Menino do Elefante’ inscreve-se, já muitos o disseram, na fértil categoria do romance de iniciação, neste caso, como em muitos outros, contado com a subjectividade que o uso da primeira pessoa lhe confere. O esquema
narrativo que o autor escolhe e que se adequa, na perfeição, ao objectivo traçado desde o início – revisitar o passado para compreender – é a ordenação cronológica que desenha, com focos episódicos e elipses, o percurso do narrador protagonista, desde a primeira infância à entrada na idade adulta. Diz, no cap. 7, o narrador “Tenho a esperança que esta viagem na máquina do tempo possa esclarecer-me e, assim, volatilizar os registos, libertando espaço na memória, tão necessário para o trabalho de descodificação das coisas urgentes que me esperam (…). Viabilizar-me como testemunha indesmentível das façanhas que me obrigaram a ser homem quando ainda era baixinho, tímido e assustadiço”.
Acompanhemos, pois, a caminhada do menino ainda sem nome, mas antes detenhamo-nos na frase de abertura: “O meu pai morreu hoje. O que não tem qualquer importância”. É impossível ler este incipit sem sermos imediatamente assaltados pela presença de um outro, um dos mais citados da história da literatura, o do ‘Estrangeiro’ de Camus. (“Aujourd’hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas”. Ambos chocantes, convenhamos, preparação do leitor para a entrada abrupta num túnel de estranheza fria. Do imenso Camus não cabe aqui falar, do menino do elefante, sim, ele que, desta forma, inicia um relato de perdas, depois de perdas e ganhos, iniciado num tempo anterior à abertura narrativa e para além dela continuado.
A dureza do capítulo primeiro faz-nos crer que este será um romance de ajuste de contas sobretudo familiar, mas rapidamente percebemos que não é esse o caminho que o narrador escolhe, depois de deslocar o foco inicial da perda do pai para a perda anterior, inicial e iniciática da mãe – “A morte da minha mãe alterara radicalmente o sentido da minha vida com um preço inimaginável”. Na verdade, é a partir dessa perda que o protagonista irá
construir-se, percebendo, por um jogo de acasos, que a ausência da mãe será a maior presença com que sempre poderá contar. Ora, é aqui que emerge o elefante, escada de transporte para a morada imaginária da mãe, por isso associado sempre a essa figura tutelar que, sem existir, é. Poderosamente.
Morta a mãe, ao menino em perda caberá a árdua tarefa do crescimento órfão e, num propósito de sobrevivência, elegerá, ao longo desse processo, sucessivas figuras femininas que, não podendo substituir a mãe, que ainda existe imaginariamente, funcionam maternalmente, cerzindo com os seus generosos seios os rasgões de que a vida é feita: a avó, a tia malabarista, a prostituta Amélia. A memória que o menino regista de todas elas é terna e poética e, somada às figuras da iniciação ao amor – a adolescente Katherine, a prostituta Mónica – fará sucumbir a dureza do relato iniciado no capítulo primeiro, para deixar emergir o tom eivado de poesia que o autor deste livro tão eficazmente maneja.
Regressemos ao protagonista, pequeno e jovem nómada que, sem sair de Lisboa, parece percorrer o mundo, numa geografia que vai do Campo Grande ao Bairro Alto, depois à Avenida de Roma, finalmente, à Avenida da Liberdade, a Liberdade de Abril. No início do romance, ele afirma: “Perdi as minhas referências familiares. Por isso deixei de ter um nome”. E, na verdade, o nome é inexistente, substituído publicamente por “O Fenómeno”, epíteto ajustado à sua excepcional prestação equilibrista, no circo a que a tradição familiar o destinara. O “Menino do Elefante”, o “Fenómeno” é um primo gémeo do “Rapaz Maravilha” a que Paul Auster dá vida no extraordinário ‘Mr. Vertigo’, levitador um e equilibrista o outro, unidos na arte de crescer no milagre da leveza que vence o peso do destino
a que uma orfandade familiar e social teimava condená-los. Não condenou, porque ambos, de modo muito diverso, trocaram as voltas ao destino.
A estratégia mais surpreendente do Menino do Elefante consiste no facto de ele se eleger como o deus de si mesmo. Ele “reza-se”, quer dizer, reza a si mesmo, sempre que precisa de força, coragem ou superação, da mesma forma que voa ao encontro da mãe que já não há (“e saí a correr, não para a tenda, mas para cima do elefante que me esperava. E rezei-me. E parti para o encontro de um outro espectáculo, onde a mãe e os amigos me receberam depois da terapia do voo. Vencera a morte como quem passa o muro da vergonha para a liberdade do gesto”.
Digamos que, ao longo do tempo em que cresce como equilibrista, o Menino do Elefante, ainda que dependente, rege a sua vida pelo princípio do prazer e, por isso, é indomável, ousado, é o “Fenómeno”. Assim é o mundo do circo, cópia colorida do mundo real – ou será o contrário? Acontece que esgotado este degrau do crescimento, ele precisa de partir para crescer mais ainda, enfrentar o seu verdadeiro rosto e recuperar o seu nome autêntico. Atraído pelo mundo da escrita que as cartas da avó haviam vaticinado, acabará por ser conduzido ao Bairro Alto, onde prosseguirá a aprendizagem do mundo nos jornais e na casa dos prazeres pouco secretos. A grande questão é que, paradoxalmente, o princípio do prazer que o circo lhe permitiu será substituído pelo princípio da realidade com que a nova vida o confronta.
Um episódio será o gatilho da exposição dessa realidade, a visita que o rapaz, paquete do mais destacado jornal da oposição, faz a um amigo de infância internado num orfanato perto do Estoril. O horror a que assiste e os relatos de maus tratos e abusos que ouve dos órfãos, como ele, mas diferentemente tiveram o azar de cair na alçada da “protecção” do estado
fascista, provoca nele o impulso da escrita e tudo, dentro e fora de si, mudará. A necessidade de assinar a reportagem publicada no jornal permite-lhe a recuperação do seu nome verdadeiro: Fernão Lucas.
Conhece, agora, melhor do que nunca, o mundo em que vive, um país dominado por um caduco e repelente regime fascista, pela miséria, pelo medo e pela ameaça da guerra colonial. Enfim, um país de onde terá de fugir, mas antes, onde se sente impelido a lutar pela liberdade, ao mesmo tempo que aprenderá, sofregamente, com os grandes mestres, a literatura, o cinema, a pintura, enfim, a arte que na infância fora equilibrismo e agora começará a ser escrita, como as cartas da avó haviam previsto. Caminho de aprendizagem fértil, na verdade, que culminará na chegada do dia em que foi possível gritar, colectivamente, “Viva a Liberdade!”.
Este é um romance de iniciação, dissemos no início deste texto, embora confesse ter algumas dificuldades com esta categorização dos “Bildungsroman”, pelo simples facto de a maioria das grandes narrativas me parecerem caber nesta categoria. Mas a questão com que gostaria de fechar esta nota de leitura é de outra natureza. Conhecendo parte do percurso biográfico do autor e reconhecendo em inúmeras passagens referências coladas a esse percurso, é legítimo colocar a questão de poder este romance ser considerado uma autonarrativa. Julgo, no entanto, tratar-se de uma questão mais de curiosidade do que de relevância literária, na medida em que a qualidade da construção narrativa e da escrita suplantam o interesse da matéria contada, pese embora a sua imensa importância.
‘O Menino do Elefante’ é um romance de rara sensibilidade, imaginação narrativa e fulgor estilístico, no qual a possibilidade do traçado de linhas de leitura é tão diversa, que o pouco que cabe num breve texto crítico será sempre insuficiente. Quanto à dimensão biográfica, hesito entre as palavras
de Lobo Antunes que, numa entrevista de 2010, disse “Toda a invenção é memória. (…) Quem nos arranja os materiais é a memória. As tais coisas de que a gente não fala e aparecem nos livros, de maneiras desviadas” e as de Harold Pinter, que afirmou: “Existem coisas de que nos lembramos mesmo que elas possam nunca ter acontecido”.
Elisa Costa Pinto