Cadência imperfeita.
Mandarei construir um jardim de inverno onde te esqueças de mim, ouvir-se-á o piar dos pavões e prometo não tornar a falar da rainha enlouquecida pela dor de perder o filho.
Lugar habitado por tempo imóvel.
Virgens tristes tocam pianos.
Chás de Ceilão em chávenas de porcelana.
Longas tardes de inverno assoladas pela demência febril do gelo derretido num copo de gin. Termómetro quebrado, mercúrio retrógrado, tarot para principiantes e papagaios loiros de bicos encarnados.
Escrevo -te três, ou sete, longas páginas em branco.
O poeta, em podendo, foge das palavras, não vá alguma acertar-lhe nos olhos.
A janela aberta sobre o cio, o grito da gaivota anunciando contentores repletos de restos dos jantares estivais de mulheres toscas, cheiro intenso a verniz e a carne faisandé.
A cicatriz denuncia uma dor velha.
O cabelo faz-se todo branco e ouvem-se pardas Marias em pranto.
O dia não traz a urgência do pão.
Um carro híbrido trava, saem quatro bêbados cantantes.
Atravessada a ponte sobre o rio de eucaliptos, um gato que podia ser um rinoceronte, dorme em cima do capô de um carro.
Seguimos para um dó maior, assim sem mais nada .
Um aperto no estômago encerra o combate entre a mulher e o poema.
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O último teorema de Fermat
Amortalhou a realidade numas palavras esdrúxulas
Subiam os mares e galgavam avenidas e casas.
Amar é o último teorema de Fermat.
Retalhou os dias numas contas impossíveis.
Tinha ainda duas viagens no cartão navegante.
Subiu para a carruagem do comboio
Uma Ida e uma volta.
Fugia regularmente.
A regularidade com que o fazia poderia fazer-nos a
questionar se seria fuga ou divertimento.
A composição dos seus dias era executar estes
contrapontos sem ser descoberta.
No regresso parava kantianamente na mesma
esquina, desapertava e tornava a apertar os
botins com força redobrada, constatava num
suspiro precisarem de gáspeas novas.
Em casa esperava-a a Fera.
A Fera exigia ser alimentada e acariciada com uma
pequena escova de suaves cerdas e cabo de
prata trabalhada, após o ritual readormecia
sobre o feltro do piano.
A noite era toda para os cálculos
A noite pertencia aos numerosos amantes.
Durante muitos anos procurou soluções e um dia
compreendeu que gostava mesmo de
problemas.
Equações impossíveis e indeterminadas
Amar é o último Teorema de Fermat.
A demonstração pode apenas ser compreendida por
algumas dezenas de matemáticos no Mundo
inteiro.
Para outros ficava a beleza dos falhanços.
In Jugular Exposta. Lisboa: The Poets anda Dragons Society, 2025
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