Distâncias
O cabelo longo caía nas ondas
E no sol
Olhar doirado.
Esplendia.
Os rapazes ferviam na areia preta.
Tornavam-se cavalos na água atlântica.
O pente repunha a lisura do cabelo
Hirto pelo sal.
As mãos entrançavam os fios
Ou deixavam-nos flutuar
Ao ventinho marítimo
Que
Não arrefecia a chama do verão.
A saia curta de algodão (tão longe ainda as de seda)
Ornava ínfima e íntima parte das pernas.
As unhas vermelhas nos dedos esguios
Olhares reprovadores da beleza.
Novíssima.
A rapariga atravessava o adro da igreja basáltica.
Deus dava-lhe a bênção
Eva sem pecado.
(a rapariga já não fazia o sinal da cruz)
Levava da maresia o cheiro
Salgado dos grandes amores.
Caminhava para o sol dos dias.
Partia, estava sempre a partir, a rapariga.
Para lugares onde o belo seria de ouro.
Dos aloés junto às pedras negras
Tirava o óleo para a pele em brasa.
A mangueira do quintal acalmava a brasa
água pura em torrente fresca.
A melancia tão rubra de pevides pretas
Matava a sede do sal bebido no mar.
A saudade do futuro que ainda não era passado,
Trouxe para o presente vaidades e joias do coração.
Sobre a renda antiga da mãe e o toilete da avó.
Espelhos olham distâncias.
Ali. Pertíssimas.
Pacificadas.
(mas ainda o som do órgão de tubos da Matriz
e dos gongos dos Templos orientais.)
12-7-2025
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Sedas noturnas
Que farei com as minhas sedas?
Sedas com mais de quarenta anos.
Resistem ao tempo e hão de ultrapassar o meu tempo.
Em algumas escreverei poesia ou ainda cartas de amor
como era costume na China antiga.
Vergada por angústias, num dia, tiro do armário
o casaquinho preto com flores e Fénix incrustadas.
Noutro dia e noutro serão os casaquinhos
com outros ornamentos para ocasiões especiais rareando.
E os meus olhos brilham como se também fossem de seda
na efemeridade da alegria.
Apreciadas vestes. Ponho-as pela poesia.
Numa écharpe criada por uma amiga designer
que busca panos, tecidos, texturas, padrões
como os poetas procuram palavras por todo o lado,
leio as de um poeta impressas na seda pura
A sabedoria é de água, o desejo é de fogo, a vida é de areia,
mas a vontade é de betão.
Ninguém tirará do meu pescoço esta seda
a transportar palavras como um segredo.
Extenuada por longos jejuns todas as sedas
se moldam macias ao meu corpo magro.
Nelas exalando uma esperança rejuvenescida.
Os afagos sedosos resgatam as maleitas
que têm vindo, que se vão e voltarão a vir
neste fim de tempo que se vai gastando com
o pendor desavindo das colheitas cada vez mais minguadas.
E a experiência de sonhos em anestesias
oferecem por momentos a separação da vida.
Naquele intervalo de morte doce
e o acordar branco para as sedas à espera da pele.
Distantes dos males que nos rodeiam
como se ilhas fôssemos, onde os males se anicham
para não mais saírem destas fronteiras fechadas.
Nos invernos as sedas acolchoadas de penas quentes
cumprirão também o sedoso resguardar do frio.
Cada vez mais frio. Tormentoso.
Os ritos gastos. A exaustão percorrendo os cotovelos dos dias.
A cabeça oca na madrugada da secura da anestesia.
Sede de água. Sede sedosa na caneta à procura
de contrastes que fariam poemas ao sol declinando.
Deixo-me balançar entre o calor e o frio do suor.
A cana de pesca que nunca tive traz-me por vezes
peixes miúdos de um mar a que já não me atrevo,
como se fossem palavras pequenas para o estômago ferido.
Porque mesmo assim algum apetite regressa.
Apetite de vida contra a morte diária.
Tempo veloz deixando-se perder na confusão mental dos dias.
Que dia é hoje? Em que mês estamos?
Os anos escorregam como torrente de rio que sabe
que desaguará em estuário desconhecido.
Ontem disseram-me: a partir de certa altura
falamos e escrevemos mais sobre a morte.
Os delírios das madrugadas só fazem sentido
se persistimos no encontro.
De resto para nada serve a tinta derramada na folha gasta.
Porque o poema que está dentro, ficará dentro.
Preso em gaiola sem janela nem ponto de fuga.
Reduzido pó de arroz em almofariz antigo. De pedra vulcânica.
Tangendo instrumentos que não sei tocar.
Deixo que me soltem as redes sem peixe.
Um salgueiro-chorão apressa-se a secar as lágrimas
com o vento que afaga os ramos pendentes sobre um lago de nenúfares.
Os alaúdes em mãos de seda que como as minhas sedas
com mais de quarenta anos mantêm os dedos ágeis nas cordas da vida.
Quisesse eu que a alma da tinta fosse assim derramada
sem borrões no que querendo dizer não sei como dizer.
Penas brancas a escurecer, escurecer…
Encerrando-se em nuvens que não se levantarão no dia.
Pois não sei em que noite adormeci.
Em que refeição me deitei.
Em que sonhos vagueei.
Sonâmbulos serão os dias que nas quatro estações
vão esmorecendo num cansaço crónico em dores duradouras.
As minhas e as do mundo.
A agulha que me picou a veia deixou um lastro de sangue vivo.
Limpo pela compressa de álcool na manhã fresca.
E com a vassoura varrerei o manto inútil das nuvens espessas das noites.
Na espessura diagonal e deslizante das sedas noturnas.
…
O poeta referido Carlos Morais José
20-7-2025
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