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Ficção portuguesa
Por Luís Filipe Sarmento Publicado em Ficção, Literatura, Portugal a 8 de Outubro, 2024 1680 palavras
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Fragmentos do romance experimental

Detergente

33.

Já sei que estiveram por aqui a especular sobre a minha origem. Não, não sou clone de ninguém. É esta a minha originalidade: não ser cópia de ninguém e muito menos a fotocópia de um ser perdido no erro. O que se poderá colocar aqui é a questão de se saber se na realidade eu pertenço ou não aos dois mundos, ao real e à ficção. Se assim for, aquele que aqui se assume como autor desta ficção não passa de um mero figurante, resultado da arquitectura novelesca criada por mim enquanto autora desta história. Ah, seria um segredo protocolado entre todos se a Angelis não quisesse assumir esteticamente o protagonismo desta complexa cronografia entre a vida real que me pertence e a ficção que todos recebe. Neste xadrez-mate nenhum xeque tem cobertura real. Que fique anotada esta circunstância: não escrevo por vingança, mas leio contra a ignorância, que impede uma larga maioria de ser educada, por vingança. Leio os grandes escritores em voz alta para sentir as suas grandes cadências verbais, a alta costura da sua linguagem e, depois, entregar-me à reflexão do que poderá ser novo, tecido em formulações singulares que poderá dar corpo a um nascimento original de uma ficção modulada no éter metafórico da idealização de uma voz que

não poderá ser outra que não seja a minha, no tom, no discurso, no estilo, cuja identidade é intransmissível.

A prosa, esta prosa, na sua condição poética, sustentada pelo pensamento, poderá atingir o plano transcendente da linguagem, desta linguagem, entre o enigma deste esforço e a resposta cabalística.

Sou mulher, chamo-me José, a José como todos carinhosamente me tratam. Como tal tenho uma relação única com a nudez e sua paixão. Antes da paixão pelo acto de escrever, o primeiro corpo que se exibe é o do terror sobre a nudez das palavras, o corpo do sentido, o horror sobre a inexistência de uma ideia original. Falo da respiração, o que nos mantém vivos nestes mundos híbridos. Tudo em volta tem demasiado poder, tudo, para submeter a atenção a uma panorâmica genérica da surpresa. Pouco se quer da exactidão contemporânea do acto. Mas sim o que oculta a exactidão transversal, o lado negro da aparência quotidiana do real. Aí temos ficção sem simetrias, sem o rigor das proporções, mas com a original linguagem que aparenta igualdade entre semelhanças. A mimetização não é um corpo artístico, mas sim artesanal, no sentido de quem tem jeito para a imitação, donde fazer à maneira de outro é uma falácia, um paralogismo travestido de talento conspurcado à memória do criador. O mecanismo criativo reside em oposição à espontaneidade e só nela brilhará a centelha do que se dá a conhecer pela primeira vez, ou seja, a ideia original. Entre a sinceridade e a magia, eu prefiro esta porque explora o que não é verdade na verdade. E só aí ressoa a beleza da minha ficção. No mais extenso sentido estético e não noutro. Aqui não há lucro. Falemos de

extravagância dos dias que me acontecem no território do mistério.

34.

Infelizmente, tenho de concordar com a José: a Angelis, com a indelicadeza notarial de subúrbio moderno, quis elevar-se nos saltos altos do seu investimento e apropriar-se de uma acção que não lhe pertence. A verdade com que se expôs não lhe retira a responsabilidade de se estruturar na fraude para se dar a entender, sustentada na arrogância efémera da beleza, como figura inalienável desta novela.

Quando o autor (ou será a autora?) a convidou para fazer parte deste pequeno elenco ela ficou logo a saber que seria insubstituível, donde não se entende esta aposta insensata na destruição de uma parte da história como se fosse o seu luxuoso tapete vermelho que a conduzisse à apoteose, deixando nas modestas sombras dos bastidores quem a criou, quem a convidou, com quem contracenou e quem a escreveu. Deslumbrou-se, renegou o espelho e atacou com língua de prata. Estaria tudo à sua disposição não fosse a ambição meticulosa da imprudência.

Ao perder-se inconscientemente no labirinto mineiro da ambição, Magda Angelis, superou em negação o protocolo estabelecido com os co-protagonistas desta história e seus amantes como também com quem lhe deu generosamente origem, e atravessou a ponte da celebração e regressou ao seu apartamento em silêncio e na companhia do seu violino.

Criou-se um problema de confiança entre três seres de ficção. Talvez sejam quatro os envolvidos se contarmos com a figura autoral.

Angelis deixou de ser vista no apartamento habitado pelo José e pela José. Ao passar para o outro lado da ponte estabeleceu um corte narrativo inesperado.

Angelis dá-se a entender que saiu de cena, deixando esta cidade sem se despedir, olvidando a totalidade da qual fez parte, justificando-se, enquanto se distanciava sem olhar para trás, com a recuperação da sua individualidade impartilhável fosse com quem fosse. E, sorrindo com a confiança de quem reconquista o anonimato da liberdade, expôs o seu enorme decote à luz regeneradora do sol e do planeta, reapropriando-se do itinerário do seu destino.

A José, atenta, observou o primeiro momento da tristeza do José.

Magda Angelis estava, nitidamente, a ser manipulada pelo seu original que se cansara de se emprestar à experiência da ficção e a sua clone também se encontrava num momento de grande fadiga. A ambas lhes fazia falta o violino em público, a orquestra, os aplausos reais que ecoam nas mais prestigiadas salas de espectáculo por esse mundo fora. Angelis queria regressar ao convívio dos que um dia irão morrer e não ficar perdida entre aqueles que vivem na dúvida da sua existência.

Ainda que o corpo de Angelis neste mundo ficcional fosse igual ao corpo da verdadeira Magda, eu, conscientemente, absorvi-o com a inevitável pulsão da minha visão estética. E nesse deslumbramento pela sua globalidade, cujas partes desconhecia, deixei-me enlevar pelo desejo cuja reciprocidade ficcional não estaria garantida nem por ela enquanto clone de um original por vezes problemático nem pela personalidade

que assume a autoria desta narrativa. Ninguém pensaria que a sua totalidade perfeita revelaria a qualidade imperfeita que a devolvera ao mundo original do crime e das demandas de paz.

Na vida real de quem me escreve já lhe terá surgido a vontade de criar uma ficção que contasse a história de alguém que teria entregue toda a sua vida à criação de generalidades, um criador de generalidades seria ou poderia ser o apogeu do lugar-comum; depois, noutras circunstâncias, idealizou uma narrativa nómada e que vagueasse, sem qualquer propósito definido, entre as carroças de uma companhia de teatro ambulante em meados do século XX, como se descobrisse que nelas reside o segredo da beleza daquela vida, o espectáculo das carroças; nesta narrativa propôs-se dar-me a tarefa estratosférica de ser um especialista de desejos. Desejei-a tão intensamente que me esqueci de outros desejos vitais, perdendo essa competência de me tornar num perito de vontades exponenciais. Um especialista de desejos, penso eu, será seguramente um ser fascinante, tão fascinante que deixar-se-á diluir no fascínio que ele próprio tem por si.

Ser o que sou desenhado por quem é na realidade aquele que vive na apoteose do sangue e da respiração dá-me aquele traço adorável de ser um programa útil nesta linguagem de diversidades, de impropriedades e de vertigens.

35.

Todos esperamos pela voz do narrador. Aparece pouco por aqui. Parece que deixou personagens e leitores em autogestão.
Eu sei que estamos num momento pouco confortável, há obstáculos criados que me parecem inultrapassáveis ainda que tudo isto seja ficção, tenho dificuldade em discernir caminhos compatíveis com a expectativa de surpresa dos leitores, são muitas as dúvidas e as hesitações, mas não posso voltar atrás, resta-me convocar a José. Não sei o que fazer com o abandono de Magda Angelis. Faltam-me argumentos para a desconstrução deste novelo enigmático. Para onde vou? Para onde os levo? Haverá seguramente um sistema que me ajudará a aclarar o que resiste sair desta zona obscura. Diria que a resolução está no título, Detergente, mas em que parte? Como? O que difere do real é que aqui não há confronto entre êxito e fracasso. Este detergente serve para lavar, mas não serve para transparentar. Esta é a questão. Com ele lavo paranóias, medos, interrogações, até injustiças, mas quase tudo é obscuro, enigmático, sombrio, misterioso, nesta claríssima ambiguidade da literatura, do sentido da literatura, do objecto da literatura, da condição da literatura, do alvo da literatura. Consegui lavar alguns lugares-comuns embora outros permaneçam pelo seu atrevimento estético, detergi manchas de feridas, rapsódias de mau gosto, imagens baratas de utensílios desnecessários, figuras industrializadas de feira e com este detergente consegui lavar medos de poder dizer o que os dogmas estéticos prevalecentes proíbem. O que falta? Falta saber sair inusitadamente. Nem que seja por uma banalidade incomum, uma porta franca para obviedades ocultas. Eu sei que o José está preparado para regressar a este átrio. A José entrará quando lhe aprouver. Talvez eles tenham os guias que me faltam neste momento. Enquanto escrevo por opção obrigatória espero que a José e o José me acudam e me salvem deste paradoxo em que me encontro, entre a felicidade de estar aqui a escrever e a infelicidade de não conseguir sair daqui.


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