menu Menu
Poesia portuguesa
By Rui Almeida Posted in Literatura, Poesia, Portugal on 12 de Abril, 2024 359 words
Poesia espanhola atual Previous Poesia italiana atual Next

Que não se perca a memória do Inverno
Nem da marca funda nos animais prostrados
Depois do abate. O frio evoca
A angústia, mas não o medo – aclara
Os contornos da fenda por onde

Se avistam os vestígios de outras
Vidas e de outra luz; o frio
Cumpre a desilusão, inverte o impulso
Diante das trevas – é doloroso
Mas não corrompe. Que não se perca

A pulsão do vento, o golpe
Brusco – que a rua seja corpo
Colhido de surpresa. Ao esquecimento
Retorne a alegria, a vigília, o braço
Esticado de puro prazer. Não

Se perca o pó da mentira acumulado
Nas reentrâncias da pele, o sarro
Indispensável à desabituação
Da vaidade. Cada dia nasce
Do seu próprio movimento, não da vontade.

-*-

Enquanto for possível respirar,
A dureza da agressão não deitará
Abaixo o corpo. É com a memória,
Alimentada dentro das entranhas,

Que os pulmões se sustentam; com os dedos
E com a lentidão tocada no tampo
Da mesa que a persistência apoia
O bafo, o sopro mais prolongado. Outro

Limite é o dos olhos, o alcance
Do futuro – tempo
Contado até ao próximo passo.

Enquanto for possível dizer, dar
Às palavras o ciclo da respiração,
Será a voz o abrigo da vida.

-*-

«LYING BY THE RAGS» (1990), de LUCIAN FREUD

Sussurras «a medida de todas as coisas
É o cansaço» e tentas fechar a mão enquanto
Sentes os ossos debaixo da pele e o brilho
Do chão; procuras lembrar-te de qual seria

A língua em que te disseram que irias
Morrer um dia; procuras o limite
Da tristeza na esperança de encontrares
A ternura, o lençol imenso esticado

Para te cobrir, um dia. E ignoras quando
Irás fechar a mão, acalmar os músculos
Das pernas e retomar o decoro.
(…)

Não mintas, não permitas que o mundo
Feito de gesso, cenário grosseiro, te
Revele a ausência de que és feita – sussurra
Outra coisa, procura a calma na mão onde

Apoias o rosto, procura a matéria
Que te ensine a confiança, o tempo
Da espera. A medida de todas as coisas
É este olhar de fora que te torna única.

-*-


Previous Next

keyboard_arrow_up