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Poesia brasileira atual
By Ronaldo Cagiano Posted in Brasil, Literatura, Poesia on 17 de Setembro, 2023 510 words
Poesia brasileira atual Previous Revista Oresteia, Nº 10, março de 2023. Next

CONFIGURAÇÕES DO ESPANTO

Ainda há ruas para a revolta do mundo.
Jorge de Sena

Como atravessar o tumulto macabro
nesse anfiteatro de horrores
sem o escrutínio da indignação?

Os homens soam
ferozes
e a política se dilui
entre o cortejo dos guichês
e a lambança na pocilga

Percorremos
a sacralidade do caos
em meio
à totalitária argumentação
da morte
às pleonásticas núpcias
dos pusilânimes
com sua prole de fantasmas

Enquanto escorpiões em romaria
concebem traições onde querem,
a religião dos genocidas
ergue seus fatídicos temp(l)os

Em seu ímpeto escatológico, viúvas negras
ovulam nas consciências inermes
e os corações domesticados
são planícies rachadas
imoladas pelo fogo

E nos perímetros da tragédia
resistem a póstuma certeza do nada
e a vertigem de uma geografia (de desdéns)
já tão fraudada por contágios
pela mecânica dos desertos
e os comícios da impostura.

Em sua atômica potência,
o silêncio implode
o que resta do que não f(l)ui:
sintaxe da ruína, caligrafia do desastre

-matéria-prima com a qual
reivindico o espanto
diante da fúnebre convulsão dos dias
quando deparo com o cadáver insepulto
da nossa miséria
e já não conseguimos
desarmar as nuvens

Estrangeiros nesse nada que nos derrota,
entre mísseis, serpentes e diplomacia necrosada
construímos uma solidão inflamada de vertigens,
sucumbimos
na apoteose das nulidades
entre
a sofisticação das intrigas
e a versatilidade dos engodos

Razão maior tem Cioran a nos dizer,
entre a corrosão e o desencanto:
“Seria a existência o nosso exílio e o vazio a nossa pátria?” .

***


PRESSUPOSTO

Borges não toleraria enxergar
nesse tempo de absoluta claridade
do caos.

***

A VIDA NÃO TEM MÉTRICA

Matéria inabitada,
o futuro não sabe nada de nós,
assim como reclamamos do passado
aquilo que a memória sabotou
em nossos corações esquivos

Pisamos o presente
como se fosse nossa dízima periódica,

esticamos as cordas para medir os desenganos;

e o resultado é nunca absorver o mínimo
de nossa máxima fugacidade.

Na autópsia do instante,
fósseis de um tempo natimorto
povoam as vísceras do pranto.


Nascido em Cataguases (MG), formou-se em Direito, viveu em Brasília e São Paulo e está radicado em Portugal. Colabora, escrevendo resenhas e artigos em diversos jornais e revistas do Brasil e exterior. Estreou com “Palavra engajada” (poesia, 1989) e dentre as obras publicadas, destacam-se: “Dezembro indigesto” (contos – Prêmio Brasília de Produção Literária 2001), “Dicionário de pequenas solidões” (contos, Ed. Língua Geral, Rio, 2006), “O sol nas feridas” (poesia, Ed. Dobra, SP, 2013 – finalista do Prêmio Portugal Telecom 2013), “Eles não moram mais aqui” (contos, Ed. Patuá, SP, 2015 – Prêmio Jabuti 2016; Ed. Gato Bravo, Lisboa, 2018); “O mundo sem explicação” (poesia, Ed. Coisas de Ler, Lisboa, 2019) e “Arsenal de vertigens” (poesia, Húmus Efitorial, Portugal, 2022). Organizou as coletâneas “Antologia do conto brasiliense” (Projecto Editorial, DF, 2001), “Poetas mineiros em Brasília” (Varanda Edições, DF, 2002) e “Todas as gerações – O conto brasiliense contemporâneo” (LGE, Editora, DF, 2006).


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