Não me pertenço
Sou das profundezas
das grandes derrelições
dos desertos inominados
das cabras desamparadas
Da vermelhidão reacesa
nos sexos das árvores
Não me pertenço
Escrevo cega
escrava
serva
dríade
Ver demais é doença?
Aterrissei em terreno minado
Desisti das superfícies
(permaneci vizinha do sol)
Sou aquela mulher do Mercador do Rio
– nunca olhei para trás
Continuo intocada pelo horror
flertando com os olhos do céu
***
Trocar as brumas do norte pela claridade do sul
era coisa de Sofia
Aquela que nasceu no Porto e de lá saiu para escrever,
pertencer, resistir
Odiar o que fosse fácil
Aquela que teve a casa amada estilhaçada e se entregou
para as coisas alicerçadas no silêncio
Caminhar na noite, guiada por estrela secreta
também era coisa de Sofia
Aquela que procurou a si mesma na luz
no mar, no vento
e sempre soube:
escrever é atravessar a substância de tudo
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Marize Castro nasceu em 1962 em Natal (RN), onde vive. Autora de oito livros de poesia, entre eles Jorro (Ed. Una, 2020) e A mesma fome (Ed. Una, 2016). Em 2024 completam-se 40 anos desde sua estreia com Marrons Crepons Marfins. Obteve o Prêmio Othoniel Menezes com o livro poço. festim. mosaico. (1996). Grande difusora da literatura potiguar, é também autora de O silencioso exercício de semear bibliotecas (2011), sobre o trabalho da poeta e bibliotecária Zila Mamede.