Henrique Levy, Os Pássaros de Dódóia (2025)- Prémio Carlos de Oliveira
A imaginação simbólica do autor, Henrique Levy, desenvolvida também a partir de uma vida de estudos literários que têm início na doutrina horaciana e na epopeia homérica, passando inevitavelmente pela épica e pela lírica camoniana, prolongando-se nos séculos XX e XXI, entre muitas outras, no conhecimento aturado da nossa literatura africana, nomeadamente a literatura cabo-verdiana, sustenta, com inequívoca excelência, a intertextualidade deste romance que , logo no início nos conduz a Rumo ao Farol (Woolf, 1927 ), onde se ergue a mesma luz, a mesma capacidade de alertar , de guiar e de anunciar o caminho para uma promessa de vida, num universo insular e arquipelágico, onde , também, a mesma solidão do faroleiro de Woolf recebe a sabedoria que o lugar ermo e alto a ambos proporciona. Essa promessa de vida está, desde o início, ancorada em símbolos ascensionais: a ilha, símbolo da Terra-Mãe – chega-se à ilha através de um vôo porque, no universo simbólico, sobe-se à ilha, através do «pássaro ou ave, uma força ascensional que desperta a natureza inteira» (Bachelard, 2001:70) ou, como afirma Durant (1989: 92), o «instrumento ascensional por excelência é a asa». Deste modo, o pássaro é um mensageiro do céu para a terra, do divino para o humano, podendo anunciar, indicar, libertar, viabilizar o realismo mágico deste romance e exercer a função romanesca lembrada por Lukács (2000:85): «o romance é a epopeia do mundo abandonado por deus». Daí que, ao longo desta ficção, abundem as referências a esse abandono do «deus dos brancos» e do «deus dos europeus», símbolo da crucificação de toda uma humanidade. O próprio título deste romance, Os pássaros de Dódóia, conduz-nos à imaginação simbólico-estilística do autor nessa função libertadora que entrega ao narrador e ao plano mitológico da obra.
A dupla nacionalidade do autor –cabo-verdiana e portuguesa -, o compromisso com a condição feminina e com a humanidade , enquanto universo subtextual dos seus romances anteriores, como é o caso de 27 cartas de Artemísia (2022), galardoado com o Prémio Internacional Natália Correia-Ficção, o domínio de uma estilística que se prolonga em belíssimas páginas pautadas com riquíssimas figuras de estilo , conferindo uma escrita poética que enaltece a eloquência do corpus literário de um autor com o alcance do que agora analisamos, conduzem Henrique Levy ao uma escrita do fantástico que viabiliza a concretização da promessa de vida acima referida. Conforme podemos verificar, estamos perante um nome comum no plural – «pássaros» – e um nome próprio, também no plural –Dodóia -, ligados pela proposição «de» que, neste caso, indica posse. Podemos então concluir que os pássaros, a que este título se refere, pertencem a Dódóia. Além disso, logo no início, percebemos que pássaro é um símbolo, conforme referimos acima e que, no título, estamos perante uma sinédoque, uma vez que Dódóia simboliza o sofrimento de todas as mulheres cabo-verdianas e de todo o povo de Cabo Verde. «Pássaros» é uma metáfora que deverá ser interpretada como mulheres e povo, tal como Baltazar (1907-1989) escreveu em Chiquinho (1947:29)» Nós somos pássaros engaiolados», referindo-se à opressão e à repressão sobre o povo cabo-verdiano durante a época colonial, caracterizada também por uma severa seca que mataria à fome e entregaria a valas comuns crianças, mulheres e homens de pleno direito. Dódóia é uma derivação feminina da onomatopeia «dodói», que, como sabemos, significa dor. Esta poderosíssima imagem, que transporta uma sinédoque, uma metáfora e uma onomatopeia, pode muito bem ser interpretada como «o vôo de Dódóia», a libertação e a liberdade de Dódóia, isto é, das mulheres cabo-verdianas, das mulheres, do povo cabo-verdiano, da humanidade.
É um facto que toda a acção se desenvolve em Cabo Verde: o nome do país nunca é nomeado (em literatura, não se diz tudo), porque a literatura, enquanto casa da representação, e nunca da apresentação, não diz tudo. Todavia, está bem presente o Portugal colonial do Estado Novo, a seca, a mestiçagem resultante do domínio dos portugueses sobre a população do arquipélago: Dódóia diz a Andile que quando o filho nascer e «tomar a côr definitiva», «não haverá dúvidas em lhe conferir a parentalidade. Se for fulo, há forte possibilidade de o pai ser o meu defunto esposo. Caso nasça com pele escura, como nós, então é tua a semente que o meu ventre concebe vida». (P.125)
Também a paisagem , o crioulo ( Nha Funa, Nho Semedo), as crenças, os usos e os costumes fluem nesta ficção que nos transporta ao primeiro romance cabo-verdiano, O escravo (lisboa, 1856), de José Evaristo D´Almeida, e ao amor impossível entre ele, escravo, de pele preta, e a « sua senhora», uma vez que no livro de Levy estamos perante um amor cheio de entraves entre Andile, o faroleiro, e Dódóia, primeiro lenhadora, que , num bosque de acácias – símbolo de imortalidade e de (re)nascimento – , carrega a lenha e a entrega ao faroleiro, Andile , que , num burro, a transporta e entrega no Sobrado Grande, onde vive Nho Semedo, administrador de propriedades e abusador de mulheres, todavia, agora, velho. Grávida de Andile, Dódóia casa com Nho Semedo que tem uma biblioteca onde a libertadora de pássaros, agora «senhora do Sobrado Grande», aprenderá a ler e a escrever, ferramentais essenciais ao vôo. Após a morte do marido, Dódóia casa com Andile. No âmbito desta memória intertextual cabo-verdiana, existe ainda o pioneirismo de Levy ao trazer, para a literatura daquele país, uma personagem feminina protagonista. Neste aspecto, lembramos a contista Orlanda Amarilis (1924-2014), que em Ihéu dos Pássaros (1983) também utiliza o crioulo e o português, embora a sua ficção assente num chão diaspório, enquanto o narrador de Levy apresenta-nos, por via do realismo mágico – um destino libertador , ao encontro da liberdade e da justiça social dentro do próprio país- Cabo Verde: não esqueçamos, a propósito, o lema «fincar os pés na terra» ,da revista Claridade, fundada em 1936, por Baltazar Lopes, Jorge Barbosa e Manuel Lopes. E não esqueçamos toda a resistência feita de uma imenso amor ao país, ancorado numa imensa sabedoria, pacifismo, alegria, firmeza, oferecendo assim uma imensa lição à militarização, à invasão territorial, o armamento, o genocídio. Não esqueçamos! Morabeza, Morabeza! Ouvir, dialogar. Empatia.
Este romance, que à primeira vista se poderá designar um romance de personagem, mas a trama sinedoquiana conduz-nos ao todo arquipelágico, é quanto a nós um romance de espaço e está simbolicamente divido em duas partes, prólogo e epílogo. Cada uma das partes está divida em capítulos com o discurso corrido de um narrador heterodiegético é intercalado por outros onde, na segunda pessoa e com uma pontuação completamente diferente, a voz do Tempo, na primeira parte, e a voz da Morte, na segunda, viabilizam ou condicionam e alteram a realidade. Ora, o que isto significa é que, naturalmente, o Tempo e a Morte, aqui introduzidos, são ferramentas simbólicas, das quais se serve o autor, na senda de Homero e de Camões que tão bem fizeram depender do Olimpo o rumo das suas epopeias. Ora, Levy, admirador e estudioso confesso da épica e da lírica camoniana – não apenas como romancista de grande fulgor, mas também enquanto poeta entre os melhores da nossa geração -, transporta para o texto esse universo subtextual camoniano. Quem não se recorda de Tétis no Canto X, quando explica a Gama a máquina do mundo? Também, em Os Pássaros de Dódóia, o Tempo mostra a Dódóia «as quatro arestas da vida», reveladoras do percurso espiralado que aquela fará até à libertação que viabiliza o pleno vôo da mulher. Mais, Levy segue os quatro planos da épica camoniana: o plano mitológico, já aqui falado, o plano da História, que nos mostra o período colonial em Cabo Verde, o plano da viagem-neste caso, a viagem interior, uma vez que se trata do percurso iniciático de Dódóia-, o plano das considerações do poeta, tão ao gosto de Camões que, no final de cada Canto nos presenteia com a sua visão crítica da arte, das letras e da poesia de então. Aqui, também é recorrentemente evocada a poesia.
Há, deste modo, um discurso proléptico, libertador que apenas o Tempo anterior pode efectivamente anunciar, tornando-se o agente da mudança. «Só eu conheço o que dorme dentro de ti»; «Ressurgirás, Dódóia, na medida em que a literatura junta claridade e alaga a agitação de leitores cortejados pela libertação de pássaros soprados à passagem da ventania». (p.18)
Mas, afinal, que razão move o autor a criar um prólogo, onde a voz do Tempo intercala, em cada capítulo, a voz do narrador, e um epílogo, onde a voz da Morte intercala cada capítulo da diegese? Regressemos a Lukács (2000: 76): «o romance é o «entrelaçamento entre a independência relativa das partes e a sua vinculação ao todo. Ora, o Tempo, elemento da mitologia grega aqui introduzido – Chronos – é uma divindade. Por ser imutável, é a única entidade que pode alterar o plano da existência e motivar a fusão do passado com o presente e com o futuro. Para isso, precisa de um adjuvante: a morte, outra divindade – Thanatos -, pode destruir a existência. Efectivamente, a solução genial do autor é entregar à morte a tarefa de pôr fim a um tempo de escravatura, de opressão, de repressão, de servidão humana. Terminado esse ciclo cronológico, pode então o Tempo fundir, criando uma nova época, plena em libertação, liberdade, harmonia, vôo. E, naturalmente , o autor cria uma trama imbuída do fantástico que viabiliza uma solução mágica para a libertação das mulheres e do povo. Enquanto em O Memorial do Convento (Saramago, 1982), Blimunda , após comer uma hóstia em jejum, está apta a ler as «vontades» das pessoas, no romance de Levy, Dódóia , ao comer um pássaro morto , livra-se da morte que lhe arrancou a mãe os irmãos e recebe as «asas» com as quais se libertará , bem como o seu povo. Diz o Tempo a Dódóia: «Ao ser engolido nas asas de uma ave impedida de voar e adormecida para te salvar, desato o fim da sede nos olhos ardentes dos sobreviventes da fome». Este agente da mudança, o Tempo, viabiliza assim a passagem do instante à eternidade, da injustiça, à justiça, do caos à ordem natural, da morte à vida, da colonização à autodeterminação, da opressão à ousadia, da repressão á libertação, da libertação mà liberdade, da liberdade ao vôo, da iliteracia ao , da seca à chuva, da miséria à abundância, da escuridão à luz, do conhecimento e à sabedoria, Ao comer um pássaro morto, DóDóia recebe a coragem para libertar-se de toas as formas de violência, tornando-se a «mulher-pássaro» -expressão da poetisa Madalena Férin . Diz o Tempo para DóDóia: « Não te deixarei morrer sem te oferecer o veludo do vôo de pássaros a planar livres no céu, depois de libertados de exíguas gaiolas. Na alameda desse vôo, correrá o grito de um povo em busca da libertação e da liberdade no dia em que homens brancos fizeram desembarcar nestas ilhas outros homens carregados em porões. O lamento dos escravizados trouxe, para além do ouro dos senhores a bailar na espessura de chicotes, um grito mudo atingido pelo calor e pelos braços de amantes arrancados do sono escondido nos olhos e nos lábios dos que de mãos vazias navegavam o oceano.»
E é esse adjuvante do Tempo, a Morte que acabará com um processo histórico colonial, opressivo, repressivo, da mais completa morte das crianças, das mulheres e de um povo roubado no livre direito à auto-determinação:
« No dia em que Dódóia me reconhecer como a razão de todas as alterações dominadas pela Natureza e insubmissas e pretensões humanas ou a entidades divinas, já o seu povo será independente. Livre de amarras traçará, como pássaros em vôo, um rumo sem repressão nem leis a subordinar os habitantes de cubatas ao chicote de senhores de sobrados”.
Sem dúvida que o vôo de Dódóia é uma resposta a Penélope e, sem dúvida que para responder a Penélope, foi necessário aprender a caligrafia dos pássaros. Apenas os bons livros oferecem este princípio fundador e libertador do olhar atento e interventivo que um farol dirige a um quarto que seja seu (Woolf, 1929).
Sem dúvida que apenas um poeta como Henrique Levy, porque estuda a literatura e ama indistintamente a humanidade , pode receber, no chão da escrita, a também indistinta luz de um farol que alimenta o fulgor de uma obra-prima como Os Pássaros de Dódóia.
Ângela de Almeida
investigadora, crítica, poeta
Referências bibliográficas
Amarilis, Orlanda (1982) . Ilhéu dos pássaros. Lisboa: Plátano.
Bachelard, Gaston (1943, 1ª ed.). O ar e os sonhos. Ensaio sobre a Imaginação do Movimento. trad. Antonio de Pádua Danesi .de Rio de Janeiro: Martins Fontes (2001, edição brasileira).
D´Almeida, José Evaristo (1856, 1ª ed.). O escravo. Praia: livraria Pedro Cardoso.
Durand, Gilbert (1960, 1ª ed.). As estruturas simbólicas do imaginário. Trad. de Carlos Aboim e Brito. Lisboa: Presença (1989, 1ª ed. portuguesa).
Eliade, Mircea (1952) Imagens e Símbolos. Ensaio sobre o símbolismo mágico-religioso. Trad. de Sónia Cristina Tamer. Rio de Janeiro: Martins Fontes (1991, ed. brasileira).
Levy, Henrique (2021). 27 cartas de Artemísia. Prémio Internacional Natália Correia-Ficção. Ponta Delgada: Câmara Municipal e Letras Lavadas.
Levy, Henrique (2025). Os pássaros de Dódóia. Prémio Carlos de Oliveira, 7ª edição. Ponta Delgada: Letras lavadas.
Lopes, Baltazar (1947). Chiquinho. S. Vicente: Claridade.
Lukács,Georg(2000 ) A teoria do romance. Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica.S. Paulo: livraria Duas Cidades.
Saramago, José (1982). Memorial do convento. Lisboa: Caminho.
Wool, Virginia (1929, 1ª ed.). Um quarto que seja seu. Lisboa: Vega( ed. portuguesa,1996)