JACARANDÁS DE ANGOLA
A Maria Adelina Amorim
É nas ruas de Lisboa que o tempo galga
muros, mergulha em perfume eufórico de
loucura azul-violeta, quase roxa, como a
flor do jacarandá no dia embaciando sobre
um tímido clarão de ocasos longínquos.
É nas ruas de Lisboa, nas calçadas íngremes,
que o vento afina nota de outras ruas, praças,
alamedas róseas, brancas, aniladas,
ateando esquivo entusiasmo, meio roxo,
como a flor do jacarandá rompendo a melancolia.
Maio desaguando em Junho, descaradamente
azul-lavanda-alfazema, azul-lilás, azul-Quénia, nos
pátios de Lisboa, em seus becos recônditos,
parques, jardins, indiferentes ao pranto oceânico da
memória que arde nas rugas seculares do jacarandá.
Árvore de cheiro dos índios, sagrado tronco, pau-santo-
-pau-preto de escravos do meu remorso amarrotado ao
lusco-fusco de Lisboa, em Pretória ou no Lubango.
Frondosos, emergem afoitos da névoa fina e húmida do
cacimbo, abrigando, magnânimos, gentes em alvas vestes e
bichos, da canícula escaldante e malfadada como a morte.
Jacarandás de Angola!
Os outros, semente viageira no tango das
marés, no choro dos violões, no samba, no semba das
casuarinas, no lamento dos blues nocturnos ecoando
na fenda da Tundavala, nas grutas de Tchivinguiro.
Os outros, os da minha infância de peixes raros,
da lua pelas frestas do
universo e de
aves namorando sobre as copas do mangal.
Jacarandás de Angola!
Os outros, esses daquela época irreal batucando
códigos de mudança no
latejar do futuro entre os capins das margens e a
submissão irada dos frutos nas terras de ginguba e de café.
Os outros.
Ó juventude no ouro da
tarde distante, nas
ruas da cidade marítima onde acordaram
ânsias e um cemitério cinzento só lembra as flores.
Dir-me-ás, se voltares.
Sei que voltarás.
Com os olhos vendados percorrerás a
traição da pele ancorada no
mar sempre
presente.
in Conjugação de Mapas, Editorial Novembro, 2020.
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CONTRADANÇA
Dói-me um país na
rememoração de dardos e
zagaias lá onde o gemido da
rola é pardo e brada ao
vento do sol poente
urgências adivinhadas na
contradança do tempo que
nos confunde
maltrata.
Dói-me outro país no
espaço que me circunda
desafortunada viagem à
luz quebrada das cidades
íntimas de acrobatas
ventríloquos equilibristas bufões
ilusionistas mímicos ou saltadores em
suas impias habilidades de
colarinho e gravata.
Dói-me um país
pedinte nas
bainhas da presunção
vencido e mofando em
seboso fato domingueiro
vã soberba alardeada à
porta de latrinas públicas da
inconsequência.
Dói-me outro país a
sul de mim desgarrada onde a
planta dos pés transpira ainda o
verde desaforado do capim e o
olhar sumido consente
funesta intimidade de algoz e
vítima no remorso circunflexo da
existência.
in Conjugação de Mapas, Editorial Novembro, 2020.
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REDESENHAR O VERSO
queria sim redesenhar o
verso num vagar de folha
pendendo sobre veios
desarrumados na crosta
vítrea dos lagos invernais
descarnar cada palavra
retalhada em cima do cansaço
quanto saborear-lhes
matéria divina na
ilusão estalando prodígios ao
ritmo de insónias
tresloucadas
colher a uva em seu altar de
deuses clementes
ínvia consolação no
purgatório anterior a
qualquer amanhã luciferino
aconchegar-me nua às
lembranças consentidas no
poema que é apenas
consumação do desastre sem
barreiras de contenção
in No Coração dos Desertos e Outros Oásis, Rosa de Porcelana Editora, 2023.
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À HORA EM QUE O MEDO ARDE
em tuas mãos pacientes a vida
amplifica suas curtas frágeis asas
horizonte perdido que estende
agora suas cordas de bem-querer
pela solidão desta ilha amarrada
ao tumulto do desassossego
desenho de pura febre estelar
à hora em que o medo arde
Poema inédito, 2025.
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