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AQUALTUNE - A Princesa do Kongo (Ensaio)
By Manuela Gonzaga Posted in História, História Política, História Social, Portugal on 10 de Junho, 2025 2517 words
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AQUALTUNE – A Princesa do Kongo

Há figuras ocultas no silêncio da História, que sobrevivem na memória dos povos como brasas acesas. Aqualtune, princesa do Kongo, é uma dessas presenças. Neste texto conto a génese do meu romance histórico Aqualtune – A Princesa do Kongo e partilho uma reflexão sobre as memórias apagadas pela historiografia dominante, sobretudo no que toca à presença africana no Brasil colonial. Acima de tudo, reforço a ideia sobre a urgência de se recuperarem vozes apagadas, numa narrativa que cruza a resistência africana, o feminino, a escravatura e a força da tradição oral como chama que atravessa os séculos.

Um romance histórico é uma quimera. Seu corpo é compósito – como o dos monstros que nos introduzem nos domínios do arquétipo. Mas conseguir que tal construção anímica sobreviva às suas enormes contradições e toque os pontos essenciais da narrativa humana, tão complexa e gloriosa, tão trágica e tão cómica também, é uma aventura arriscada. Foi esse o risco que assumi quando fui ao encontro de Aqualtune, a Princesa do Kongo, porque a quimera é, também, um processo dinâmico, onde ficção e realidade coexistem. E, no caso de Aqualtune, se reforçam, como se a resistência e o heroísmo se tivessem projetado para além do tempo, transcendendo a morte que semeou o seu percurso moldando-a como uma ideia-força tão sedutora que a literatura não a pode ignorar.

Foi o que me aconteceu quando tomei conhecimento da possível existência de uma “famosa” princesa do reino do Kongo, filha de um grande rei, guerreira indomável, chamada Aqualtune. Uma figura que, nos nossos tempos, é também metáfora. Da mulher ferida, da África saqueada, da liberdade negada, mas também da dignidade que renasce. O romance é uma oferenda a essa memória. E escrever sobre ela, agora neste artigo, é renovar o gesto de quem sopra nas brasas da História para que não se apaguem.

Afinal, quem foi ela? Mais: Como é que sabemos tão pouco de África, sua cultura, sua estória mítica, seus heróis e heroínas que, mesmo sem registo fixado, se mantiveram vivos na tradição oral entrando diretamente na lenda, no folclore, no costume, recusando a morte?

Numa Europa, ou melhor numa civilização de matriz eurocêntrica, que evoca a consagração política do célebre “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, a relação com os povos secularmente dominados e espoliados das suas terras, suas crenças, suas línguas, seus costumes, seus tesouros materiais e imateriais em nome da “civilização” que os tutelava, a historiografia faz-se tábua rasa. Nesse sentido, foram erradicados cultos e figuras protectoras. Memórias. Heróis e heroínas que alimentavam o imaginário nas noites escuras onde à luz incerta das fogueiras se aquecia a alma com recordações que passavam de boca em boca. Aqualtune sobreviveu aí e vem daí. Do coração da memória coletiva que apelava a todo um património glorioso, para alimentar farrapos de fé e migalhas de esperança.

Entre silêncios e recordações esbatidas pelo tempo

Sem fontes escritas que divulgassem os mais elementares traços da sua vida, acabei por, no meu primeiro romance, encontrá-la entre silêncios e proximidades com outras personagens cuja existência é confirmada, e suas geografias abundantemente descritas. Se era, como a lenda afirmava, filha do Manikongo, teria de ser a irmã do monarca que sucedeu ao pai de ambos, o grande D. Garcia Afonso II. E se fora, como se dizia, comandante de exércitos, haveria de sido iniciada nos segredos espirituais da tradição bantu. É essa que comecei por conhecer. Uma criança feliz, uma jovem aguerrida, e uma mulher inteira, temperada pelo ferro de alguma desdita, casada a contragosto por disposição real, casamento que fez dela e do marido, por imposição régia, duques de Mbamba. Seguindo-a, assisto ao seu regresso à corte, a São Salvador ou Mbanza Kongo, igualmente por imposição do rei, que lhe confia novamente o comando de forças militares, que era tudo o que Aqualtune mais desejava ser nesta vida.

O fio da narrativa desenrolou-se assim… numa captura aos poucos. Uma narrativa em mosaico que se auto reproduz e reflete a fusão de uma mulher bakongo, uma aristocrata

que com sua identidade histórica, cultural e familiar, da qual quase nada sabíamos, com o mito que transborda das fontes históricas, onde podemos encontrar familiares, inimigos, aliados. Conjugando narrativas orais, e outros acrescentos imaginários, com realidades pretéritas, até a consagrar no símbolo vivo. Nesta busca, encontrei o rosto da alegria da criança que nasceu e cresceu nas vizinhanças da floresta do Mayombe; a da jovem insubmissa, cheia de uma esfusiante vitalidade e força. Mas também a dor, a voz para a luta, a memória que quer ser transmitida, e uma ponte entre continentes. De tudo isso, nasceu o romance histórico Aqualtune, a Princesa do Kongo (1) e está a nascer o subsequente relato, Aqualtune, a Rainha dos Palmares.

Reconstituir esse tempo e esse espaço – o Reino do Kongo, Elmina, Luanda, o tráfico negreiro, Pernambuco, os Palmares, foi também reviver a omnipotente presença europeia nos mares, neste caso na triangulação Atlântica, sobretudo Portuguesa, Holandesa, mas também inglesa e francesa; auscultar a geografia e politica contemporâneas de uma Europa sequiosa de ouro e rasgar caminhos para a sua triunfante expansão. E isto obrigou-me a um trabalho de pesquisa intenso, que cruzou fontes históricas, documentos de época, estudos etnográficos e espirituais. Acima de tudo, fez-me escutar. Com o corpo, com a consciência e o intelecto, mas também e muito, com o sonho e a intuição que me permitiram escutar tanto do tudo que ficou por dizer.

Foram três anos de encantamento e deceção, de desaires e desalentos, e muita plenitude. Sobretudo quando dei por mim, como dizê-lo?, sem que pareça tão absurdo como realmente é? A correr para acompanhar a sua trepidante caminhada em direção a um destino que é muito maior do que ela própria, Aqualtune, poderia vir a sonhar.

Mas como é que tudo começou?

As lendas brasileiras a seu respeito afirmam que a Princesa teria liderado um exército de dez mil homens e mulheres na Batalha de Ambuíla, ao lado do seu irmão D. António, rei do Kongo cujos exércitos somavam cem mil soldados (1665). O combate desencadeou-se no território dos Dembos, Angola, com as tropas portuguesas apoiadas pelo poder largamente superior da artilharia e pelos exércitos do rei do Ndongo e

outros, opondo-se às forças bakongo. Estes factos bélicos estão registados com grande abundância de pormenores por cronistas coevos, incluindo as listas de nomes dos principais intervenientes, e dos mortos mais notáveis. Só que em lado algum surge o nome, ou a referência mesmo vaga, a uma princesa Aqualtune que acaba por ser levada para o Brasil, como muitas centenas de outros prisioneiros de guerra. E que, chegada a Pernambuco, foi vendida a um grande fazendeiro de Porto Calvo, criador de gado e de gente, que a destinou à reprodução.

Denominadores comuns estabelecem uma rota comum: de África, e na companhia de centenas de outros aprisionados que estiveram presentes em Ambuíla (2)., Aqualtune terá sido levada para o forte da Mina, no Gana, onde foi embarcada num tumbeiro (3) para Pernambuco. A partir desse momento, a princesa caiu em profunda apatia. Finda a viagem – 30, 40 a 50 dias, consoante os ventos – desembarcou no Recife/Pernambuco, eventualmente grávida. A lenda regista o desespero com que ela, mal desembarcou, correu para a praia e adentrando-se pelo oceano, no que seria uma tentativa de regressar à sua terra de origem. Recolhida, entre gargalhadas, veio a ser adquirida por um fazendeiro de Porto Calvo, criador de gado e de gente, que a destinou a ser reprodutora. E que, ao saber da sua origem aristocrata, evidenciada pela forma como era venerada (4) por outros escravos, decidiu entregá-la aos «piores homens das suas fazendas».

Sempre prostrada numa apatia profunda – continuo a reproduzir narrativas fixadas através da estória oral que nos chegou até hoje – Aqualtune sentiu a criança mover-se no seu ventre, e «o seu sangue mexeu junto». Mas quando nasceu, era uma menina, Aqualtune perfurou-lhe a frágil membrana do cérebro. Nessa noite, a grande guerreira do Kongo juntando em seu redor um grupo de duzentos escravos, destruiu pelo fogo a Casa Grande e a senzala, e, aproveitando a confusão e o frenesim do combate aos fogos, fugiu com eles para o reino dos Palmares (5).

O reino dos Palmares

Relativamente perto de Porto Calvo, na Serra da Barriga, o Reino dos Palmares era um baluarte de resistência criado por volta de 1606 por um grupo de escravos que fugiu

para as montanhas de Pernambuco onde foi fundado um espaço de liberdade. Um futuro reino. Ali, onde Aqualtune se acolheu, sendo-lhe destinado o Mocambo de Subupira, a noroeste de Macoco, cidade real e capital do Reino de Palmares, onde recriou um espaço que evocava a sua pretérita vida em África, e organizou um pequeno exército de homens e mulheres, que ela própria treinava. As várias versões mantém o denominador comum de ela se ter tornado a Rainha dos Palmares, ao ser reconhecida a sua origem real: ela era a «mãe do rei».

Portanto, se as fontes são totalmente omissas no que concerne a infância e juventude de Aqualtune no Reino do Kongo, África, no Brasil ela tem «bilhete de identidade», aparecendo mencionada pela primeira vez num documento de credibilidade incontestável intitulado A Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do governador Dom Pedro de Almeida de 1675 a 1678. Recordando: a 4 de Outubro de 1677 as tropas do capitão Fernão Carrilho chegaram até um Mocambo fortificado, a trinta léguas a noroeste de Porto Calvo, chamado a «Cerca de Aqualtune». O cronista sublinha: «Este é o nome da mãe do rei.» Depois, descreve como os soldados de Fernão Carrilho romperam as suas defesas e «mataram muitos e surpreenderam nove ou dez», tendo os restantes conseguido fugir. E ela? «A mãe do rei nem viva nem morta apareceu, e passados alguns dias se achou a dona que a acompanhava morta».

No mesmo documento, o cronista refere textualmente uma «grande casa onde se reunia o Conselho de Chefes», que incluía Aqualtune e Ganazona, ou Gana Zona, que reinava no Mocambo Subupira, os quais são apresentados respetivamente como «mãe e irmão do rei Ganga Zumba». O célebre Zumbi que assumiu a liderança de Palmares até 1695, surge ora como sobrinho ora como filho (um dos muitos) do rei. Aqualtune seria pois avó do último e mais famoso líder da comunidade palmarina, o maior e mais longevo foco de resistência, criado por volta de 1606 por um grupo de negros que se rebelaram e fugiram para a Serra da Barriga, montanhas de Pernambuco acobertando-se naquele espaço quase inexpugnável, que cresceu até se tornar um reino, um Mocambo, na fertilíssima região de Palmares. A pátria possível onde antigos escravos auto libertados encontravam a sua liberdade nos territórios da antiga colónia brasileira.

O final da vida de Aqualtune, em 1675, é misterioso. Alguns dizem que uma das várias expedições enviadas pelo governo português e por donos de fazenda, nomeadamente as tropas de Manuel Lopes Galvão, teriam queimado o Mocambo onde vivia com outros idosos da comunidade. Mataram quase todos, e trouxeram duzentos pares de orelhas para a Baía como testemunho da proeza militar. Outros alegam que ela teria conseguido escapar. Outros ainda afirmam que Aqualtune morreu de «doenças da velhice». E que os deuses de África, os Orixás (6) tê-la-iam tornado num espírito ancestral que aparecia aos guerreiros sob a forma de uma águia real.

Portanto, e uma vez mais, é de quimeras que falamos, porque, e para construir o seu personagem, fui urdindo lenda com todos os pedaços de realidade que consegui reunir. Assumindo-a como símbolo de identidade híbrida e memória fragmentada, como a junção das várias dimensões da história, tanto de Aqualtune quanto da escravização e resistência que ela representa. Porque Aqualtune não desapareceu da História. Foi silenciada, como tantas outras figuras de origem africana. Mas o seu nome ressurgiu vezes sem conta em fontes orais, textos do século XX e nas genealogias simbólicas de Zumbi dos Palmares.

Nesse sentido, ela não é apenas uma princesa do Kongo e uma guerreira do seu povo: é uma mulher capturada e vendida, escravizada, enviada para as Américas, e que ali, no outro lado do mundo, reaprende o seu corpo, escuta o seu sangue, ouve os tambores dentro de si e volta a fazer História. Com ela, honram-se as mulheres sem nome, os filhos arrancados do colo, pessoas marcadas a ferro em brasa, os corpos vendidos como “peças”, — e no entanto portadores de tudo: cultura, identidade, força, canto, fé. Ao contá-la, pretendo deixar o sinal de que nada foi em vão. Nem a dor. Nem a travessia. Nem a luta. Porque, mesmo quando a História não regista os nomes, há sempre uma memória que pulsa no sangue. E uma palavra que resgata o sentido.

Este livro nasceu dessa escuta. E dessa fidelidade.

Nota final: A narrativa do primeiro romance termina onde vai começar outra: a travessia, já dentro de um navio tumbeiro, do Atlântico Sul em direcção ao Brasil. Essa continuação está a ser feita no segundo volume do romance, intitulado Aqualtune – A Rainha dos Palmares.

P.S. Esta história é ficção, mas é também verdadeira. Porque a verdade não mora só nos arquivos. Mora na imaginação que resgata. No gesto que honra. E no sonho que se escreve como quem devolve o rosto à sombra.

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(1) GONZAGA, M. (2023), Lisboa, Bertrand Editora; (2) A lenda é omissa nesta questão; (3) Nome dado aos navios que transportavam escravizados em condições tão inumanas que um terço morria durante a travessia. Dai o nome – tumba; (4) As rituais escaras no seu corpo e rosto testemunhavam a sua linhagem real, entre outros dados sobre a sua vida.

(5) Apoio-me sobretudo na versão de SCHWARZ-Bart, Simone with SCHWARZ-Bart, André (2002), “Aqualtune, An Enslaved Congo Princess”, In Praise of Black Women, Volume 2: Heroines of the Slavery Era, University of Wisconsin Press, Modus Vivendi Publications, Wisconsin, pp. 3-10. (6) Entre os bantu, que incluem os bakongo, os espíritos são os ilundu e os zumbi, divindades bem diferentes dos orixás que remetem para as línguas sudanesas (onde se inclui o iorubá da Nigéria).

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