Laudes
Obrigo um outro comboio desobediente
a obedecer à luz.
Respiro na espuma do in-movimento
como Adão antes do primeiro passo.
Só, silencioso, seria essa a imobilidade do Paraíso,
gaiva de maçãs tombadas e ostentação
Bastaria soltar a ideia, enrolá-la num lençol vazio
e, rejeitando a rotina lacónica,
esquecer o lodo e a grade, o verbo hipócrita
a perseguição rebelde, matriz de Y
o desamor dos autocentrados,
desaparecer na luz
Para isso teria antes de me desfazer do corpo,
órgão a órgão,
osso a osso, consentir
no avanço
de um estado selvagem na cidade mentirosa
onde não se mereceria nem a delicadeza,
nem o autocontentamento,
só a mercadoria de metal e piercing
a boca que já não é tua
Entristecerias primeiro
porque os dicionários morreram
e a poesia de Beatrice dita em espiral de romã
não teria lugar senão na erosão mediática,
já não penitente, maldita ou incendiária
Pudesse a nossa vontade pós-Adão ser imóvel,
e a dança agitaria a loucura mansa, corpos cinzentos, sólidos,
inaquáticos, adstringentes,
a tinta desenhada a dedo na areia
a madeira do pensamento-farpa, acção-acto
Atravesso, pois, como um elfo, a lâmpada fosca, sinto
um curto-circuito, um flash, um relâmpago,
a palavra não quebrada de um monge alegre,
restaurando
a ordem impossível, aqui encarnada
num «creio»
de vozes desistentes, re (construo-a) com as teclas
desenho uma estrela racional
Digo: louvo a criança, o deficiente, a quem chamam
estúpido, o insecto demasiado intranquilo,
demasiadamente nada, o amor não cumprido mas
vidente, inabilmente taciturno
e, quase de súbito, já sem olhos, sem mãos, sem narinas
arrancado o tacto, a eufonia,
o osso do meu osso-pó afundado em laudes
repetitivas, bendigo o tempo do outro lado do portão afunilado,
e, sem mais, vou
L de Lisboa, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013
O círculo
O ouvido é de círculo, o círculo de disco, voraz,
incontido, fugaz. o ouvido é de círculo em corpo
de homem com treva de mulher. o ouvido é de
círculo, raio de onde se ausentou a luz
nas suas dez mil espécies de fogo sem água;
é angular, o rosto, fantasia, abajur de pagode,
banzé e violência, de tudo tem fartura, é fractura
de devoração. a imagem conspícua traz declínio
e queda, erguida em rocha funda. de tanto não se
ver, torna-se inferno e mentira, deita-se em ilusão;
a chinesa é impaciente, fera sem lamento ou
piedade, não dorme, não sossega. as sobrancelhas
desenham o v de vagido, as mãos são de animal
antigo. a chinesa cobre-se mas a provação é a nudez.
O Olho e a Mão em co-autoria com Sérgio Nazar David, Rio de Janeiro, 7Letras, 2018.
A partir do quadro A Chinesa, de Anita Malfatti.
A saia a lua
A saia a lua, a mulher afasta o mal
no sono quando sonha e observa um
corpo celeste girando em mecânica
virtuosa – ao longe uma porta, a rua
desabitada, na maçaneta a mão de um
homem desavindo que, num golpe de
noite, desaparece sem mais. O sonho
é essa solidão anterior ao mundo,
o pavor ou a dor, o salto involuntário,
um tempo sem tempo, a alegria antes
do dia, a mente a galope quando a maré
se esvazia e acalma as falhas do amor.
Até a águia e a sua cauda desaparecem
engolidas pelo sol. Tudo se vai menos
a saia a lua, demasiado livre eu para alguém.
Oníricas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2023
*-*-*
A foto desta publicação é da autoria de Rodrigo Cabrita