Perder o rumo
Perdi o rumo, ou a identidade de nada saber de mim,
do que procuro dentro de mim, o mito fosco da realidade,
a mentira fechada na ferida aberta. Corro atrás do meteorito,
sonho ser a estrela que explode num universo paralelo,
desfragmentado resisto à ebulição da matéria no vulcão
que lança as flechas de deus sobre a aldeia dos indigentes.
Os animais sonham nas madrugadas tristes, de pálpebras
acesas acordam os donos que abandonam o primeiro sono
para escapar às maldições. Somam assombrações no plano
indigesto de feras, monstros comandados à distância
pelas hostes difusas de gregos guerreiros nos labirintos
do medo, no azar de enfrentar Minotauros bélicos,
que não são de carne e osso, são máquinas feitas de metal.
Perdem-se os homens na dúbia figura do poder, os gananciosos
caem na justa medida do merecimento, são crateras profundas
no peito, lava que escorre pelas veias, o coração sobreaquece,
como motores da nau Argo, já sem remos, nem Atena, apenas
o horror do mar revolto, que os engole na simples mordida – o fim
anunciado não se denuncia, vem, simplesmente vem,
um justiceiro que castiga o pecador. Perdi o rumo,
se houver futuro, o que houver de mim
será o fruto da metade que ainda está por semear.
*-*-*
Ao lado da minha mãe
Tenho aqui a minha mãe do meu lado
e ela diz que se esqueceu da minha idade, lembro-a bem,
mas ela recorda o meu nascimento, que eu próprio
olvidei, sonhamos os dois acordados neste sofá
onde tantas vezes adormeci. Reparo nas suas rugas
e ainda ontem não as tinha, enquanto ela fala
e dá um ar da sua graça – é graciosa a minha mãe –
respira fatigada porque de cansaço é o seu passado,
lembro-o bem. Comecei a escrever poemas
porque ela brincava com as palavras,
agora brinco eu também, com a idade que ela tinha,
que hoje já não tem.
Tenho aqui a minha mãe do meu lado
e recordo o passado, que é feito do vazio mais puro,
esfera reluzente, espiral tangível, estrada finita e ilusória,
vida restrita e acessória. Sigo na berma do tempo,
do que ele pretender dizer, que o significado esmoreço,
cabelos grisalhos, relento, desânimo para desistir –
a voz do além faz-se eco, no dorso do vento a fluir,
para longe, bem longe, prisioneiro de Calipso,
escravo de Atlas, o medo não me arruina,
o amor não me fulmina, se é fingimento de quem
no passado disse que vinha mas afinal nunca vem.
Tenho aqui a minha mãe do meu lado,
com o seu ar jovial, a parte inteira de todo
o amor incondicional – ela mesma o poema,
o que sobra no poente mais distante,
a sombra do oriente, o tridente ousado,
tributo à minha deusa que esqueceu a minha idade. Aqui nesta sala de memórias,
vamos recolhendo os anseios das clausuras
que se puseram no meio – com sorrisos
a velhice é da cor do futuro, dos dias que lentos atravessam o deserto da claridade.
Tenho aqui a minha mãe do meu lado, ouço-a
falar e calo-me, dou-lhe a maior atenção,
ela sabe, no alto da sua idade, a forma
como se pisa o chão.