Que não se perca a memória do Inverno
Nem da marca funda nos animais prostrados
Depois do abate. O frio evoca
A angústia, mas não o medo – aclara
Os contornos da fenda por onde
Se avistam os vestígios de outras
Vidas e de outra luz; o frio
Cumpre a desilusão, inverte o impulso
Diante das trevas – é doloroso
Mas não corrompe. Que não se perca
A pulsão do vento, o golpe
Brusco – que a rua seja corpo
Colhido de surpresa. Ao esquecimento
Retorne a alegria, a vigília, o braço
Esticado de puro prazer. Não
Se perca o pó da mentira acumulado
Nas reentrâncias da pele, o sarro
Indispensável à desabituação
Da vaidade. Cada dia nasce
Do seu próprio movimento, não da vontade.
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Enquanto for possível respirar,
A dureza da agressão não deitará
Abaixo o corpo. É com a memória,
Alimentada dentro das entranhas,
Que os pulmões se sustentam; com os dedos
E com a lentidão tocada no tampo
Da mesa que a persistência apoia
O bafo, o sopro mais prolongado. Outro
Limite é o dos olhos, o alcance
Do futuro – tempo
Contado até ao próximo passo.
Enquanto for possível dizer, dar
Às palavras o ciclo da respiração,
Será a voz o abrigo da vida.
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«LYING BY THE RAGS» (1990), de LUCIAN FREUD
Sussurras «a medida de todas as coisas
É o cansaço» e tentas fechar a mão enquanto
Sentes os ossos debaixo da pele e o brilho
Do chão; procuras lembrar-te de qual seria
A língua em que te disseram que irias
Morrer um dia; procuras o limite
Da tristeza na esperança de encontrares
A ternura, o lençol imenso esticado
Para te cobrir, um dia. E ignoras quando
Irás fechar a mão, acalmar os músculos
Das pernas e retomar o decoro.
(…)
Não mintas, não permitas que o mundo
Feito de gesso, cenário grosseiro, te
Revele a ausência de que és feita – sussurra
Outra coisa, procura a calma na mão onde
Apoias o rosto, procura a matéria
Que te ensine a confiança, o tempo
Da espera. A medida de todas as coisas
É este olhar de fora que te torna única.
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