Aproximações ao pensamento de Joseph Ratzinger – Artigo 1:
a Teologia da Fraternidade.
A primeira obra de Joseph Ratzinger a granjear grande audiência foi o Diechristliche Bruderlichkeit (Irmãos em Cristo), não se tratava propriamente de uma obra consagrada ao Pai e à Patrística, mas antes de um tratado doutrinal. Ratzinger havia já abordado a problemática da fraternidade aquando do seu trabalho em torno de Santo Agostinho e de Santo Optat, acresce agora o facto desta problemática se impor, no momento, nas democracias europeias, em vésperas do Concílio Ecuménico, que viria depois a sublinhar a igualdade fundamental dos batizados, que seriam chamados – todos! – a uma santidade comum.
Ora, o modo como Ratzinger aborda o tema da fraternidade é, não só original, como muito mais perspicaz do que aquilo que aparenta ser: este problema diz-nos, por conseguinte, que toda a união conduz a uma separação entre aqueles que são incluídos no grupo e os que são deixados de fora. Na esperança de tentar resolver este paradoxo, confirmado no quotidiano, Ratzinger apoia-se na revelação bíblica: irmão, no Antigo Testamento, é aquele que, como eu, pertence à comunidade do povo de Deus. Logo, é a paternidade divina que surge como fundamento da fraternidade israelita, mas eis que assoma algo de estranho no profetismo yahvéista: o Deus nacional de Israel é o Deus universal. Trata-se então de saber qual a conexão estabelecida entre a realidade de um Deus universal, supranacional, e o facto de haver apenas um único povo que o adora como sendo o seu Deus. Mas há ainda aqui outro aspeto importante: esse elo não é estabelecido por Israel, mas por Deus, pela livre decisão da sua Graça, a ser assim, Deus mantém-se livre de rejeitar Israel caso as suas transgressões lhe deem motivo para tal. A conclusão que podemos tirar daqui é que se a relação de Deus com a nação hebraica é especial, ela não é, no entanto, exclusiva, e isso introduz um elemento de incerteza na questão da fraternidade de Israel para consigo própria. Contudo, outro modo de entender o judaísmo irrompe, um que, em certos aspetos, difere da religião do Antigo Testamento, e que é produto de um processo de racionalização que dá ao povo a ideia de uma eleição gratuita, ou seja, privada de causa; dando então a ideia de que Deus havia proposto a Torá a todos os povos da Terra, mas que apenas Israel a aceitara, tornando-se, por essa razão, o único povo de Deus, isto significaria, em última análise, que não havia sido Deus que escolhera Israel, mas antes este que escolhera Deus, é, então, por aqui que passa a linha que separa o Antigo Testamento visto como praeparatio evangelica e o judaísmo da sinagoga.
Joseph Ratzinger encontra na antropologia teológica do Antigo Testamento a confirmação deste traço fundamental que ele captou na doutrina da eleição desse mesmo Testamento: todos os homens estão unidos em Adão, e em Noé, por conseguinte, uma aliança particular liga o Deus de todos os homens a Abraão e à sua descendência. Os judeus são, então, irmãos num sentido elevado, mas também pela unidade que carateriza a relação do género humano com o seu Criador; os outros são igualmente irmãos, embora num sentido mais abrangente. A lei de Moisés confirma, aliás, esta asserção pelas suas disposições para com o “estrangeiro que está à porta”. Será, pois, a partir desta perspetiva que Ratzinger irá depois examinar a ideia de fraternidade no mundo profano desde o helenismo até Karl Marx, com especial incidência em Schiller, na Revolução francesa, no Liberalismo com as suas relações com a franco-maçonaria e em Marx.
Joseph Ratzinger interpreta assim o Novo Testamento como esse cume que testemunha o plano de Deus para a humanidade, e de onde brota a resolução do paradoxo da fraternidade.
Se à primeira vista as palavras de Jesus se podem prestar a uma interpretação que perpetua o problema, já que elas poderão parecer prolongar uma certa ambivalência, isto é, a ideia de uma fraternidade universal que bordeja uma fraternidade particular, já em São Paulo, onde a tese da paternidade se apresenta de modo aprofundado, num modelo trinitário que começava a ganhar raízes, veicula-se não só a doutrina do Cristo segundo Adão, mas defende-se sobretudo que se os homens, no seu todo, não forem ainda irmãos em Cristo, eles poderão e deverão sê-lo. Dito de outro modo: o amor entre os cristãos, não exclui, antes implica a agapè (o amor da Caridade).
Joseph Ratzinger nota ainda na Patrística, à volta deste tema, comentários algo equívocos: conhecedor profundo da tradição norte africana, já que estudioso exímio de Santo Agostinho, debruçar-se-á sobre Tertuliano onde vê uma doutrina conciliatória baseada numa dupla fraternidade, uma que não exclui nenhum homem dada a sua ascendência comum, e a outra será uma fraternidade baseada no conhecimento de Deus e desse Espírito de santidade concedido aos cristãos. Por outro lado, em São Cipriano a linguagem da fraternidade confina-se exclusivamente à colegialidade dos bispos. Urge, então, uma nova síntese, e Joseph Ratzinger irá defender a sua leitura deste tema, que será apresentada em quatro momentos:
No primeiro momento dessa sua síntese, Joseph Ratzinger insiste no facto da fraternidade cristã não se poder basear em qualquer outro princípio que não seja a Fé, ou seja, para que essa fraternidade se possa concretizar urge a aceitação consciente e espiritual da paternidade de Deus, bem como uma unidade de vida em concordância com a Graça de Cristo. E esta dimensão social deve ser sempre renovada na consciência dos crentes! Joseph Ratzinger vai aqui pedir a sua inspiração a um filósofo alemão da Idade Média: Mestre Eckhart. Para Eckhart tornar-se um em Cristo significava a anulação do nosso “eu”, deixar de considerar o seu ego como um absoluto. Contudo, a este pressuposto convinha adicionar também – clarificando – o conceito de Fé tal como fora definido pelo Concílio de Calcedónia (451/10/08 – 451/11/01), isto é, que Jesus era simultaneamente Deus e homem.
Em segundo lugar, Ratzinger demonstra que o dom divino de uma nova fraternidade traz com ele um imperativo humano: a supressão de todas as fronteiras que possam existir no interior da família cristã, incluindo nesta perspetiva as nações, os diversos tipos de nacionalismos, bem como tudo o que no interior das diversas classes se possa apresentar como fator destruidor da fraternidade cristã.
O terceiro elemento da síntese de Joseph Ratzinger consiste na advertência relativamente a um impetuoso otimismo no que diz respeito à concretização da comunidade fraternal, pois existe uma miríade de armadilhas no caminho para a philadelphia (literalmente: “amor pelos irmãos”). Este tópico prende-se com o estatuto que a Eucaristia tem no pensamento de Ratzinger, já que é colocando no centro essa Comunhão que é simultaneamente fonte e centro, que se reforça o caráter unitivo da vida comunitária, mas convém, no entanto, tornar claro que a fraternidade cristã não tem por objetivo a criação de um qualquer circulo esotérico, ela tem por objetivo o serviço do Todo: a comunidade fraternal cristã não é contra, mas antes pelo Todo, no entanto, se este universalismo, esta salvação de Todos, não fizer parte da fé cristã, ela terá seguramente de fazer parte da esperança dos cristãos.
Finalmente, num quarto momento da sua síntese, encontramos um caráter ecuménico, onde Ratzinger sugere: mesmo que a fraternidade cristã não possa significar tudo isto, então o termo “irmãos separados” com o qual os católicos costumam nomear os não-católicos, poderá adquirir um sentido preciso e fecundo, e numa achega que antecipa as suas futuras reflexões sobre Martinho Lutero, sublinhará mesmo que se aquilo que foi condenado no passado, a justo título, como heresia, não pode ser transformado agora em verdade, poderá no entanto desenvolver-se aí uma via eclesial particular de modo a que aquele que pertence a uma tradição cismática viva como um crente, e não como um herético. Esta última tese viria a ser bem acolhida por outros pensadores, como por exemplo o inglês Fergus Kerr, que a considerará mesmo um marco central na vida do Catolicismo.
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Temas do próximo artigo (o 2º) sobre este autor: Evolucionismo e Criacionismo.
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Bibliografia (para todos os artigos sobre este teólogo e filósofo, incluindo os ainda a publicar):