Rosa Lobato de Faria:
Romance de Cordélia – O Crime de Biofobia
“Escrituras que não têm utilidade de lição, além de nelas se perder o tempo, que é a mais preciosa cousa da vida, barbarizam o engenho e enchem o entendimento de cisco, com a enxurrada dos feitos e ditos que trazem”. Os leitores que derem o seu aval a este juízo de João de Barros, não darão certamente o seu tempo por perdido se prestarem atenção à personalidade literária de Rosa Lobato de Faria que, desde 1983, vem paulatinamente consolidando um lugar de respeito no domínio da poesia e, a partir de 1995, no da ficção narrativa. Com quatro livros de poesia publicados – Os Deuses de Pedra (1983), As Pequenas Palavras (1987), Memória do Corpo (1992) – a A. reuniu o essencial da sua produção poética no volume Poemas Escolhidos e Dispersos (1997).Tendo-se estreado como romancista com O Pranto de Lúcifer (1995), seguiram-se-lhe Os Pássaros de Seda (1996),Os Três Casamentos de Camilla S. (1997), Romance de Cordélia (1998) mantendo-se fiel à “Colecção Finisterra” das Edições Asa.
A importância da sua ficção narrativa não tardou a ser reconhecida além fronteiras como se prova pela tradução d’ O Pranto de Lúcifer na prestigiada editora alemã Ullstein de Berlim (Die Tranen Luzifers -1998- trad. de Maria Morais) encontrando-se já em preparação, na mesma editora, a tradução d’ Os Pássaros de Seda. Também recentemente Rosa Lobato de Faria se viu citada na revista Prétexte-18/19 (Été-Automne-1998 – Littératures Contemporaines- Spécial Portugal num Entretien com Pierre Léglise-Costa que aponta o seu nome como um dos “nouveaux auteurs à suivre”. Tratando-se de uma figura mediática, a sua intensa actividade nas áreas da música, da televisão e do teatro, nomeadamente como actriz, cronista, guionista, letrista e apresentadora, terá porventura distraído a atenção da crítica literária nacional. Rosa Lobato de Faria iniciou-se como diseuse de poesia no Programa Imagens da Poesia Europeia que David Mourão-Ferreira manteve na R.T.P. entre 7 de Julho de 1969 e 24 de Maio de 1974. Pela voz de David, de Rosa Lobato de Faria, de Lourdes Norberto, de Manuela de Freitas e de Hermínia Tojal, chegaram até nós múltiplas e bem timbradas vozes da poesia europeia escrita ao longo de vinte e oito séculos e que durante cento e trinta e cinco emissões nos mostraram, como disse Gabriele D’Annunzio, “toda a beleza recôndita do mundo que converge na arte da palavra”.
A convivência assídua e intensa com os grandes Mestres do cânone ocidental teria forçosamente de deixar marcas na formação de Rosa Lobato de Faria, bem como na sua escrita, fluída, elegante, mas sem pretenciosismos de erudição, que incorpora toda uma memória do sistema literário simbioticamente fundida com uma cultura de raízes populares. Esta dupla memória é particularmente reconhecível n’ O Pranto de Lúcifer, n’ Os Pássaros de Seda e no Romance de Cordélia.
Jorge Guimarães considera este último livro como “uma nova história de Job no feminino, contada com um verbo de fogo e, no tom, com um humor de vitríolo.” João Bettencourt da Câmara, entende que a A. “se compraz em caminhar no fio da navalha, inventando um género que deliberadamente invoca, pelo avesso, o romance de cordel, forçado a figurar na primeira pessoa em algumas das passagens mais tortuosamente divertidas do livro”.
Rosa Lobato de Faria demonstra conhecer a técnica perfeita da pluridiscursividade ao incorporar nas suas narrativas diversificados registos linguísticos, que reforçam a componente irónica do discurso, possibilitando múltiplas leituras em contraluz. A justaposição de registos populares e de registos cultos, sendo feita sem qualquer transicção, transmite leveza e vivacidade à prosa aproximando-a da oralidade. O pendor subtilmente crítico da ficção da A. resulta em grande medida deste sábio domínio das técnicas narrativas, sem recurso a procedimentos vanguardistas, mas inequivocamente modernos. Os processos memoralísticos constituem-se frequentemente como fios orientadores da narração, a qual por vezes é da responsabilidade de narradores caracterizados no plano da história como personagens muito tímidas, conquanto dotadas de grande riqueza interior, e que, por via da sua capacidade de observação, adquirem força impondo-se aos olhos do leitor. Constituem exemplo paradigmático deste tipo de narrador a tímida Dette n’ O Pranto de Lúcifer ou o enigmático Mário n’ Os Pássaros de Seda. Por sua vez, a narração autodiegética encena nos romances da A. uma força frágil, como se poderá verificar n’ Os Três Casamentos de Camilla S. e também no Romance de Cordélia que constituem o anverso e o verso da figura feminina. Camilla é a força da natureza que brilha no fogo da paixão. Cordélia é a fraca mulher desistente, cuja vida se assemelha a uma combustão lenta, aquecida apenas pelo acto de pensar. É ainda denominador comum da ficção da A. a presença do elemento mágico muitas vezes associado à vivência de personagens populares dotadas de grande força interior e frequentemente femininas: Maria Antónia / Marinela d’ O Pranto de Lúcifer, Diamantina d’ Os Pássaros de Seda, Paca d’ Os Três Casamentos de Camilla S. e a avó Adelaide do Romance de Cordélia.
A leitura que este livro nos oferece, não sendo de puro divertimento nem conceptualmente difícil, também nada tem de fácil, porquanto nos vai questionar directamente ao nível das emoções. É uma leitura que, não nos falando directamente da nossa própria experiência, incomodamente nos faz suspeitar que Cordélia poderia ser qualquer um de nós num qualquer ponto do nosso percurso existencial em que distraídamente deixamos a porta aberta à depressão.
O Romance de Cordélia dirigindo-se a todos os leitores pode, todavia, encontrar algumas dificuldades junto daqueles que, à semelhança da protagonista, são culpados do crime de biofobia. André Gide dizia que nada lhe interessava tanto num livro como a revelação de um nova atitude perante a vida. Admitindo que os livros que nos marcam são exactamente os que questionam, os que desarrumam a comodidade, dizia o autor de Madame Bovary que a beleza de um livro se avalia pelo vigor dos safanões que nos deu e pelo tempo que levamos depois a recompôr-nos. No primeiro livro de poesia de Rosa Lobato de Faria – Os Deuses de Pedra – figura um poema que poderá servir de guia de leitura do Romance de Cordélia:
“Com o mais secreto das palavras/ a água clara dos ditongos/ a cascata de esdrúxulas/ se vai compondo a ténue/ porém teimosa tentativa// Ausculto/ a veia que me bate no joelho/ o veio que me corre na alma// Não sei qual o caminho/ das palavras// Inesperadas fluem/ na dor de quem nasce/ na alegria de quem recebe/ no pudor de quem dá// Recolho como pétalas/ seus transparentes/ coloridos sopros// e contra o vento/ canto.”
O poema poderá funcionar como presságio do romance, onde o lado mais secreto das palavras é revolvido em teimosa tentativa de descida ao mais fundo e mais lúgubre da memória de Cordélia. Os seus sonhos de infância lembram a água clara dos ditongos. Os entraves à sua realização tornaram-se mais do que cascata, enxurrada de esdrúxulas. Pela rememoração tentará descobrir o caminho das palavras, auscultando as veias onde lhe corre o sangue do tempo mais do que perdido, desperdiçado. O seu dizer é um fio de água que lhe invade a alma, fluxo e refluxo que traz à praia da memória estilhaços de dor de uma vida amarrotada. As palavras são leves sopros transparentes, fiapos de um tecido puído, gasto pelo uso, ajuste de contas, canto contra o vento. São palavras graves como riso ou gume. São palavras agudas como amor e dor. Entre o gume, a dor, o riso e o amor procuraremos nós o caminho das palavras deste Romance de Cordélia como quem tenta descobrir um enigma, um segredo.
O título é o primeiro segredo que se desvenda ao ocultar-se: Romance de Cordélia, para além de designar de forma inequívoca o género – romance – bem como o nome da personagem principal, alude, por aproximação fónica, ao sub-género romance de cordel, o qual será alvo de caricatura ao longo da obra. Para além da conotação popular que encerra, o título aponta para a memória literária de Shakespeare- o Rei Lear– evocando a mais nova das suas três filhas – Cordélia. A simultaneidade da alusão popular e da alusão culta confere a este título uma extraordinária importância interpretativa que o texto se encarregará de confirmar:
“O meu pai foi encarregado de me registar quando eu tinha dois dias de vida, levava a incumbência de me pôr Lina Maria mas no momento da verdade saiu-lhe da boca o nome que trazia no coração e que tinha a ver com o único momento de glória da sua vida, em que representara o papel de rei Lear no teatro de amadores da sua terra.
Cordélia, disse ele. Cordélia Sant’ana Gaspar. Por sorte não se esqueceu do apóstrofo em Sant’ana, porque então teria sido o divórcio.”
Os romances de cordel são as leituras a que Cordélia tem acesso na prisão onde se encontra a cumprir uma pesada pena, servindo-lhe de fraca companhia nas noites de insónia, distanciando-se criticamente do que lê, mas que para as outras presidiárias funcionam como um prozac amenizando e camuflando o mundo, fazendo-as acreditar, como Pangloss, que tudo vai pelo melhor num outro mundo, que imaginam ser o melhor dos mundos, sem que, todavia, percebam que o melhor dos mundos não é seguramente aquele que imaginam. Naturalmente o melhor dos mundos não conhece a palavra alienação, pois, se a conhecesse, ele já não seria o melhor dos mundos, mas seria certamente um mundo melhor.
As histórias de cordel, mais do que intercaladas, encontram-se entrelaçadas no Romance de Cordélia atingindo picos de saborosa ironia, cabendo ao leitor distinguir o que é de cordel e o que é de Cordélia. A partir de certo momento emergem no texto apenas em fragmentos estilhaçados, formando brancos de leitura como brancos de memória, simples lapsos de cordel, simbolizando a vida de Cordélia. E ao contrário de Alice que do outro lado do espelho questiona inteligentemente o sentido das coisas, Cordélia dialoga com uma outra imaginária Alice pedindo-lhe um manual de instruções para a vida, que esta naturalmente lhe negará, enquanto vai treinando a arte da fuga, em vez da arte da dança, seu velho sonho amarrotado.
Se lermos este livro como manifestação de uma acutilante ironia às folhinhas a cavalo num barbante, conforme as designou Nicolau Tolentino, não esperaremos certamente que Rosa Lobato de Faria se preste à fácil tarefa de puxar os cordelinhos à lágrima fazendo acabar tudo em bem. A A., tal como a filha do Rei Lear, tem a coragem de dizer a verdade assumindo-a logo no limiar da obra sob a forma de dedicatória:
“Às reclusas do Estabelecimento Prisional de Tires, cuja verdade tornou possível esta ficção”.
O romance indicia-se, por esta forma, como um compromisso entre a ética e a estética, entre o verdadeiro e o ficcional, daí resultando uma estética da verdade que se situa nos antípodas da Verdade escolasticamente estabelecida. E o que se me afigura muito original no conceito de verdade para que este livro aponta, será precisamente o tratar-se de uma verdade não afiançada por qualquer caução, uma verdade que o leitor terá de julgar à revelia, já que pertence ao foro íntimo dos pensamentos, não sendo atributo imediatamente reconhecido às próprias coisas. Não havendo jurisprudência para julgar o foro íntimo das coisas, a verdade torna-se uma interpretação, um olhar condicional, com imensos graus de liberdade, chegando à conclusão de que homicidas confessas podem ser moralmente, mas não legalmente, inocentes.
É a Arminda Canivete que deve a alcunha ao objecto com que mata um dos homens que a conspurcam precisamente para festejarem os dezoito anos da rapariga. É a Ilda Grandalhona que mata o marido sádico, porque este lhe assassina selvaticamente o filho de ambos. É a Dona Zulmira que, para salvar as filhas do pai violador, prefere envenená-lo escolhendo para si mesma a prisão.
Qual é a Verdade para essas mulheres? A da sua moral privada ou a do Código Penal? Deparamo-nos com uma verdade possível e todavia marginal. Estamos claramente no reino da emoção, aquele reino onde o coração tem razões que a razão desconhece. E isto não é fácil. E isto não é pacífico. Estamos nos domínios de uma verdade exclusivamente referenciável a seres heterodoxos, uma verdade-processo-de-conhecimento que abala a segurança do mundo conhecido, na exacta medida em que alguém pratica o mal por amor ao bem.
Para adensar o problema, o (não)conhecimento torna-se o processo verdadeiramente dinamizador do livro, dado que o mundo narrado é sobretudo o mundo a (des)conhecer por parte da anti-heroína Cordélia, um ser renitentemente desistente. E não é por acaso que lemos no incipit do romance :
“Não, não adiantava nada. Podia escrever a protestar a minha inocência, mas isso não ia restituir-me os dezasseis anos de vida que perdi aqui, nem ia restaurar a minha pobre dignidade feita em cacos”.
Mergulhamos desde logo no universo da desistência, da desesperança, da desdita, do prefixo des, sinónimo de negação. Dizia Malraux que “uma obra não penetra senão nas salas do cérebro preparadas para a acolher”. Resta-nos preparar as salas se quisermos deixar entrar o Romance de Cordélia e com ele uma profunda denúncia da banalização da vida, do complexo de indiferentismo, de demissionismo pela repetição, pelo alheamento, pela diluição do Eu no mare magnum de um bem pouco admirável mundo novo que o banaliza, que o “cordeliza”.
Sendo o romance um libelo contra a vida vivida ou pensada como romance de cordel, naturalmente os bons e os maus da história têm os papéis trocados. A heroína é vítima fundamentalmente de si própria, vítima e autora do crime de biofobia, que se traduz no medo de existir, no medo de ser luz escondendo-se por detrás das censuras fáceis aos facilmente censuráveis – os maus, tipicamente maus da história – mas nada fazendo para os combater. A prisão onde Cordélia desperdiçou dezasseis anos de pseudo-vida a cumprir uma real pena, por um crime do qual realmente é inocente, revela-se talvez merecida pelo crime de lesa-vida, uma outra forma de atentado contra a esperança. Esperará o leitor que após dezasseis anos ela tenha aprendido a lição. Esperará em vão. Cordélia é coxa e, porque o seu nome faz lembrar cordel, foi transformado pelas outras presidiárias em “Guita Coxa” e mais tarde em “Concha dos Pobres” ao criar um grupo de apoio aos sem-abrigo, sendo ela mesma uma deles, dando de comer a quem como ela necessita de tudo: de alimento, de amor, e de esperança. Essa missão não a salvará da morte conseguindo, todavia, salvar-lhe um resto de vida. O Romance de Cordélia não sendo um livro moralista, será talvez um livro profundamente moral, pois Cordélia e os seus companheiros transformam-se no “sal da terra” de que falam os Evangelhos. Existe um conto popular de assinaláveis semelhanças com a história do Rei Lear: um rei pergunta às suas três filhas como e quanto o amam. A mais nova dirá que gosta tanto do pai como do sal na comida, pois só ele dá o paladar ao amor e à verdade numa justa medida. Rosa Lobato de Faria condimentou este livro com o sal da beleza e da verdade e faz-nos mergulhar nos seus abismos, como nos versos de Elizabeth Barrett Browning:
“É só quando de nós nos esquecemos / e com a alma toda mergulhamos / no abismo de um livro / seduzidos pelo sal da beleza e da verdade / que dele todo o bem nós retiramos”.
Boileau dizia, e Garrett repetiu-o ironicamente, que “rien n’est beau que le vrai”. É claro que nem sempre é verdade que a verdade seja bela e há coisas belas que não são verdade; contudo, a verdade deste livro torna-se realmente bela, porque sendo texto transcende-o, porque sendo obra literária estabelece uma ponte entre o mundo possível e o mundo real. O Romance de Cordélia filia-se, segundo creio, numa tradição literária respeitabilíssima – a de Anton Tchekov- na pungente narrativa intitulada na tradução francesa de Elsa Triolet – La Salle Nº Six– e na versão portuguesa O Louco:
Num hospital de uma pequena cidade russa existe um pavilhão para internamento dos loucos. Chega um novo médico -André Efimovich- o qual dando-se conta da corrupção que grassa no hospital e na degradação do tratamento dos doentes, a qual vai ao ponto de incluir espancamentos, imediatamente pensa pôr-lhes cobro, mas rapidamente conclui que não tem vocação para agir. Sentindo-se um ser acima do mundo (uma variante do idealista no mundo real, como disseram noutro contexto Raul Proença ou José Rodrigues Miguéis), o nosso médico pensa que nasceu para pensar, enquanto vai degoustando os seus copinhos de vodka. Não sendo capaz de decidir, nem de procurar ajuda, acabará por se deixar internar naquela mesma sala dos loucos, manipulado por aqueles que decidem por todos, para que ninguém decida por eles. Acabará por morrer tão ingloriamente como viveu e o único caminho que aprendeu a trilhar foi o do medo e da angústia.
A biofobia de Cordélia é a mesma do anti-herói tchekoviano: ambos desistem de viver, ambos entregam nas mãos dos inimigos os trunfos que lhes fariam ganhar o jogo da vida; ambos se pensam inteligentes, mas na verdade são dóceis marionettes ao serviço da vontade alheia. E, porque ambos se demitem, ambos pagarão o justo preço da demissão. Há contudo uma diferença que não é de somenos importância: a morte de André Efimovich será ainda mais inglória do que a de Cordélia, a qual acabará por alcançar o fio conseguindo in extremis sair do labirinto.
Ambas as narrativas mostrando o sentido trágico da vida apontam para uma luz ao longe, assumindo a coragem da verdade. A via crucis de Cordélia acabará por funcionar como uma preparação para o fim da vida já que não constituiu um fim da sua existência. Ocorre-me à lembrança aquela trágica personagem de Montherlant – Celestino Marcilla – do romance O Caos e a Noite “cuja preparação para a morte durará vinte anos de solidão de abandono, de humilhações, de recusas e de «lucidez» procurada e tenazmente alimentada,” conforme nos diz o poeta e ensaísta Eugénio Lisboa no seu belo e trágico ensaio “Morrer de Velho” (publicado pela primeira vez em 1963, sob pseudónimo, posteriormente inserto na sua Crónica dos Anos da Peste) cuja atmosfera densa, dolorosa, mas verdadeira me parece corresponder no plano ensaístico à deste romance no plano ficcional.
Como disse Rémy de Gourmont, talvez a verdade seja uma ilusão, todavia a ilusão é uma verdade. Dizendo a verdade e nada mais do que a verdade, Rosa Lobato de Faria construiu uma bela ficção e triunfou segundo as palavras de Eugène Delacroix: “o maior triunfo do escritor é fazer pensar os que podem pensar”. O Romance de Cordélia afigura-se-me uma arte de pensar e de fazer pensar: contra o conformismo, contra o demissionismo, contra o abstencionismo, contra tudo o que passa e não deixa memória,
Rosa Lobato de Faria, pela verdade de uma bela ficção, continua a “cantar contra o vento”.
Lisboa, Outubro de 1998
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.Uma (A)ventura de Leitura
Caro(a) Leitor(a),
Permita-me supor que V. é uma daquelas pessoas que acham que um bom livro não é sinónimo de um livro maçador. Antes de si pensou-o e escreveu-o Ezra Pound e disse-o por outras palavras Jorge Luís Borges assumindo-se como um leitor hedonista e declarando que jamais fez segunda experiência com autores intratáveis. Huxley foi ainda mais veemente ao dizer que se todos os escritores são leitores, deviam ser os primeiros a saber como são maçadores certos nacos de prosa e que, por isso, deveriam abster-se de impor aos outros as torturas sofridas. Determinada pessoa do nosso meio literário, perfeitamente identificada com o ideário de Borges e Huxley, neste particular, teve a amabilidade de me emprestar o dactiloscrito do seu último romance. No dia aprazado para a devolução entro num táxi e mando-o seguir para a Av. da República, junto à esquina com a Júlio Dinis. No local do encontro – a livraria “Arco-Iris” – abro o saco em que posso jurar ter metido o texto, por sinal a fazer companhia a quatro belos espécimes cuja leitura me tem deliciado: o volume «Letras, Sinais» (homenagem a David Mourão-Ferreira, Margarida Vieira Mendes e Osório Mateus); a «Românica» -“Itinerários de Poesia” sobre Nemésio, Sena e Ruy Belo; a revista «Leituras» dedicada a Garrett; o volume de poesia «As Casas Pressentidas» de Luís Serrano. Procuro dentro do saco, tiro todo o recheio para fora e nada. Do dactiloscrito nem rasto. Lembro-me então de uma travagem brusca que nos projectou – a mim e ao saco – contra o banco da frente e fez-se luz no mistério.
É aqui que V. entra em cena, ou melhor, no mesmo táxi. Observador como V. é, logo repara numa encadernação em argolinhas plásticas, caída a seus pés, a qual cuidadosamente apanha e coloca em cima do banco. No seu olhar inquiridor desenha-se um imenso ponto de interrogação, mas trava-o a lembrança da sua mãezinha que o ensinou a não meter o nariz no alheio. Porém, de pouco terá adiantado, porque Anatole Franco veio mais tarde dizer-lhe que «há sempre um momento em que a curiosidade se torna um pecado, mas que.., o diabo está sempre do lado dos sábios.» Não que V. se ache um sábio, mas que diabo, não é preciso ser sábio para se ser curioso. Já as suas mãos aproximaram o texto à distância conveniente e V. lê: «Vozes. Melodias em uníssono, sem palavras. Aos poucos um cânone. Às vezes, pergunta e resposta. A espaços uma nota única que, de tão exclamativa, parece uma interrogação.» É agora a sua vez de se interrogar. Não, não se lembra de ter lido aquilo, mas tem vontade de continuar a ler. O táxi arrancou depois do semáforo, mas não tarda a parar de novo, porque são quase cinco horas da tarde de uma sexta-feira lisboeta e os carros na Av. da República vão coladinhos como as pessoas lá em baixo no metro, que V. não quis apanhar por ser hora de ponta. Vai pagar um dinheirão até ao Chiado, mas, pelo menos, encontrou uma inesperada companhia. Por este andar vai ter tempo de ler o texto todo.
Folheia aqui, folheia ali, cai num sítio que lhe dá no goto: «Não encontro o meu Plotino nem os meus pré-socráticos. Ainda não consegui arrumar os inúmeros caixotes repletos de livros que serão o sustentáculo da caminhada final para o dilúvio. Porque é assim que vejo a morte: uma progressiva, vagarosa, conformada submersão nas águas inexoráveis do desconhecido».
A cadência das palavras associa-lhe poesia e traz-lhe à memória o seu Umberto Saba: «Nada consola mais que um belo verso pessimista (…)» Folhas adiante encontra agora outra voz muito diferente. É uma voz feminina, parece-lhe uma mulher com um carrego de anos às costas a imprecar contra os engenheiros «matadores de aldeias»: «vão lá afogar as barregãs das mães deles que a gente não somos gatos de ninhada bastarda». Este fim de tarde teceu-lhe uma partida à laia das «comadres tecedeiras de rendas e reputações» que V. não sabe quem são, mas também não admira, porque só vai ainda no Marquês.
Lá para o Rossio encontrará três irmãs, também elas «paradas no tempo à espera.» de irem para Moscovo que no texto, afinal, se situa nesta sua Lisboa. Uma delas confidencia-lhe: «Isto cá em casa não é bem uma família é mais uma peça de Tchekov» e V. recorda-se das Prosorov, especialmente da Macha, confesse. Por acaso chama-se Ausenda e não fica nada a dever à outra. Três irmãs, três presas, três Parcas. O predador perdido chama-se Zé Nunes, dizer sacana é pouco, V. dirá, talvez, magnífico sacana.
Outra voz se distingue agora neste coro que lhe caiu em sorte. Chama-se Filomena, veio para recolher as lendas, salvar a memória da aldeia antes do afogamento que a barragem lhe reserva e se prende nas «sinuosas medidas da memória», no «estranho desencontro de ter o corpo num lugar e a alma em outro».
Foi acordado, não sabe quanto tempo depois, pela voz terrosa do taxista a dizer-lhe o preço da viagem. Um livro a menos na próxima semana. Altas horas da noite, quando V. acabou de ler o caderno que o homem de bom grado lhe permitiu levar – «ninguém se incomoda a reclamar papéis desses» – percebeu que um grande romance lhe fora milagrosamente parar às mãos
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Quem seria o autor? Aquela poderosa imaginação criadora, a extraordinária fluência discursiva não podiam ser “obra” de novato. V., leitor com larga quilometragem de páginas, sentiu-se como aos quinze anos a ler às escondidas, noite adentro, viciado nos jogos da paixão, do ciúme e da vingança. Os olhos verdes da «felidona» acabaram atravessados no seu sono e arredaram-lhe o Vauvenargues que lhe bichanava ao ouvido: «Um livro verdadeiramente novo e original seria aquele que nos fizesse amar velhas verdades».
Uma semana passou a correr escoando-se pelas frestas dos dias cada vez mais pequenos. Hoje, como sempre, V. voltou à livraria para abastecer o vicio de novidades para mais um fim de semana. Entrou acompanhado daquelas frases da Clarice Lispector de que V. tanto gosta, porque lhe justificam os gastos: «Estou à procura de um livro para ler. É um livro todo especial. Eu o imagino como a um rosto sem traços. Não lhe sei o nome nem o autor».
V. já tinha passado por ali, mas só à segunda volta reparou num livro com a chancela da «Asa». O título pareceu-lhe sugestivo. «O Prenúncio das Águas». Quase em simultâneo leu o nome da autora – Rosa Lobato de Faria. Da televisão, do teatro, das cantigas, por que diabo… Gostou da epígrafe de Eugénio de Andrade, mas já as primeiras linhas lhe crepitam nos dedos: «Vozes. Melodias em uníssono, sem palavras. Aos poucos, um cânone. As vezes, pergunta e resposta».
Neste momento a única coisa que V. tem a fazer é perdoar-se por só agora, ao quinto livro, ter descoberto a autora. Sim, meu caro, V. perdeu «O Pranto de Lúcifer», «Os Pássaros de Seda», «Os Três Casamentos de Camila S.» e o «Romance de Cordélia». Em contrapartida achou duas vezes «O Prenúncio das Águas» e isso é motivo suficiente para voltar atrás à procura dos outros. Sente-se agora satisfeito por esta inesperada descoberta, por este encontro feliz e não pode deixar de dar inteira razão a Eugénio Lisboa que na contra-capa refere a «esplendorosa imaginação gótica» da autora. V. sentiu na própria pele «o poder, típico dos grandes fïccionistas, de aprisionar com firmeza o leitor no interior do seu fascinante universo, “fechando-o”, durante duas ou três horas a qualquer contacto com o mundo “cá de fora”».
Vem-lhe à lembrança uma longínqua frase de D’Annunzio: «a grandeza de uma obra não se mede pelo número de sufrágios que a acolhem mas pelo impulso que determina em certos espíritos». Meu caro leitor, V. tem a sorte de ser um deles.
Lisboa, Dezembro de 1999
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1 Nota de 2001: publicações posteriores na área da ficção, na mesma colecção das Edições Asa: O Prenúncio da Águas (1999) e A Trança de Inês (2001).
2 Esta característica vê-se igualmente documentada em obras posteriores.
3 O presente texto, (com ligeiras adaptações) foi lido pela autora como apresentação de Romance de Cordélia, Porto, Edições Asa, 1998 no seu lançamento em Lisboa, em Outubro de 1998.
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