PUREZA E BARBARIDADE – FILIPA VERA JARDIM
“Somos um povo bárbaro e puro”, escreveu Herberto Hélder, no conto “Teorema”, do seu livro “Os Passos em Volta”; tendo a concordar com esta caracterização muito sumária dos Portugueses, sujeita a contestação, por facilitar a apresentação dos conceitos de pureza e barbaridade.
Pureza, por detestarmos deixar assuntos inacabados; barbaridade, por recusa endémica em perdermos tempo usando a razão na resolução de um problema.
Se notarmos bem, sem grandes alaridos, os Portugueses perdem impérios, aceitam milagres, derrubam monarquias, aceitam fascismos, fazem guerras e revoluções com cravos e olham para os assuntos e afirmam: “Está acabado”.
A singeleza com que os Portugueses efetuam as mudanças das coisas e olham para os assuntos da vida releva de uma pureza, que pouco encontramos noutros povos – pelo menos, aqueles para os quais olhamos ou nos permitem saber deles.
E somos um Povo bárbaro, porque recusámos pensar, em função e primazia do sentir. Somos, por isso, um Povo sem filosofia, sem método, sem cultivo de memória histórica – e esse aparente gigantesco e bárbaro vazio nos permite sentir.
Compreendemos o mundo sentindo, ou, ao menos, gostamos de nos ver como o Povo mais sentimental do mundo – não o mais emotivo, não o mais dramático, não o mais trágico, mas o Povo mais sentimental do mundo.
O nosso sentimentalismo decorre da necessidade de equilíbrio. Para ter uma vida digna e equilibrada, usamos o sentimentalismo enquanto comunhão. Para amar, o sentimentalismo torna-nos na pessoa amada. O sentimentalismo nacional não é hesitante nem trôpego; firmando-se na pureza, é definitivo, acabado e final.
Como consequência deste sentimentalismo bárbaro e puro, além do sentir, tínhamos necessariamente que olhar. Olhamos quer para o que nos está muito próximo, quer para o que nos está longínquo. Olhar, saber olhar, afastar o inconformismo que alguns nos dizem fadados; e é talvez o primeiro modo português de actuar no mundo.
O primeiro cultor nacional desta poesia de sentir e olhar, de dirigirmos o olhar para o mundo real, para a natureza, e através da descrição poética do que olhamos, tentar apresentar um sentimento, é Cesário Verde.
Herdeira direta de Cesário Verde, a poesia de Filipa Vera Jardim olha e sente, sente e vê, e a sua alquimia poética inicia-se através da união destes dois actos.
“Latitude” é uma união entre sentir e olhar.
Usando a forma do verso livre, a linguagem parece-nos coloquial, com o fim de aproximar o leitor daquilo que Filipa Vera Jardim sente e vê. Não existem tentativas de descrições egoístas e pueris de uma qualquer inocente angústia existencial, nem nos faz entrar em jogos e labirintos forçados, para mostrar o estilo do Poeta diante do jogo do mundo.
Neste sentido, a poesia de Filipa Vera Jardim não é mais uma repetição de Fernando Pessoa, e muito menos de Herberto Hélder. A sua poesia pertence a um tempo conturbado, na qual não se pode reclamar nem inocente ou angustiada, nem se entender como um jogo ou labirinto.
Filipa Vera Jardim não pertence, pois, à legião de imitadores banais de Pessoa, Herberto Helder, Eugénio e Ramos Rosa, que sufocam e estiolam a actual Poesia nacional.
O que torna interessante e único em Filipa Vera Jardim, ao lermos os seus poemas, consiste em sermos compelidos a uma aproximação.
Filipa Vera Jardim convida-nos a estar num lugar poético onde se torna obrigatória a união entre sentimento e olhar. A união poética que Filipa Vera Jardim opera entre sentir e olhar, em “Latitude”, acaba numa transformação da vida.
Além de Cesário Verde, pressinto em “Latitude” a ordenança descoberta e formulada por um outro Poeta de tempos conturbados, Vladimir Maiakovsky; entendeu ele pela primeira vez que a Poesia deveria transformar primeiro o mundo, para poder cantá-lo depois.
Quis Maiakovsky que o Poeta fosse um produtor de transformações sociais; para tal, deveria abdicar da sua situação de privilégio de classe, descer da
sua torre de marfim, na qual observava o mundo, para se associar aos explorados, aos humilhados e ofendidos, e através do olhar revolucionário, transformar esse mundo, de modo a vertê-lo e purificá-lo no acto poético.
Deixámos, aparentemente, de acreditar em revoluções e as revoltas custam muito dinheiro. Porém, Filipa Vera Jardim desenvolveu a premissa de Maiakovsky e levou-a para um caminho totalmente diferente: através da união entre sentimento e olhar, ela quer transformar a vida, transformar o mundo, transformar quem ama, para o cantar depois.
“Latitude” usa o verso livre e a coloquialidade como métodos de aproximação e união. Vejamos algumas das palavras que usa: lugar, espaço, caminho, curva, olhos, olhar, mãos, dedos, cabelos´, vida, vazio, tempo.
Não lemos a palavra amor e ainda bem que não a usa.
Lemos as palavras que nos obrigam a olhar, para ver que sentimento temos diante de nós, tais como urgência, sorriso, água.
Agindo através do olhar, o leitor descobrirá o que Filipa Vera Jardim quis ou não dizer. Na grande poesia, o desconcertante é superior ao imediato. Não olhamos para um sentimento, o sentimento devolve esse olhar à Poetisa.
Ao contrário de Pessoa ou Herberto Hélder, Filipa Vera Jardim mantém a integridade do eu poético. A dissolução, a confusão, a multiplicação da identidade, são conceitos estéticos estranhos à sua poesia, para Filipa Vera Jardim há uma busca de um Eu sempre encontrado ou em vias de se encontrar, que a distinguem e abrilhantam como Poetisa.
Como exemplo, vejamos o início do poema “Vazio”:
Encostei devagar a minha urgência ao vazio, acomodando o rosto, o resto e essa parte de mim de que mal me lembrava.
O vazio, apesar de tudo, tinha esquinas inundadas de grandes e pequenos espaços. De grandes e pequenos ângulos feitos de intensas oscilações acústicas que nasceram num momento qualquer, num dado instante ou, quem sabe, de um não lugar situado muito para lá da minha imaginação.
À roda do vazio, naturalmente, não havia mais do que apenas eu.
Entendemos sentimento, olhar, aproximação, união – as ferramentas poéticas com que Filipa Vera Jardim transforma e canta o mundo.
Entendemos o Eu Poético firmado no mundo, olhando, sentindo, encontrando-se como Identidade.
Esta poesia não é didática nem dada a misticismos. Há nela uma serenidade, uma aceitação do fluir da vida, um diálogo simples, sem grandes catequismos ou explicações – há nesta poesia uma pureza, um estar acabado, que não vislumbro nas vozes atuais da Poesia nacional contemporânea, excepção feita a Maria Gabriela Llansol, de quem Filipa Vera Jardim é grande leitora e sua continuadora, diria mesmo a única continuadora em Portugal, e na grande Poetisa brasileira Cora Coralina, que usou, como Filipa Vera Jardim, as ferramentas poéticas da coloquialidade, para exprimir o mais claramente possível o sentimento da vida.
Agradeço à Filipa a honra que me deu em vos tentar apresentar o seu livro “Latitude” e lhe desejo as maiores felicidades.
Lisboa, 23 de Março de 2024.
Pedro Baptista-Bastos.