PASSO DO ADEUS*
O passo do adeus
É essa dança difícil de cumprir sem revolta
Dança, dança a velha casa
Cumprindo ser sólida
Mesmo já morto seu coração
Dança, dança a manhã que não se nega
A lançar-se pela porta aberta
Varando a dureza do estupor
Ultrapassa nosso desejo esse passo
E o redescobre
Se o adeus vem sem escolha
Dançá-lo vem do ardor
Cada estilhaço, cada lasca
Cada concha vazia levita
E as coisas antes tão agarradas
Vão subindo
Em gigantesco tornado
Reunindo o desatado
Num giro tonto de noites
Dançam estratos doutros tempos
Cartas, estradas suspensas
Dançam pedras de um templo
Palavras sem os seus ensejos
Dançam nossos nomes desfeitos
Qual testemunho, qual escritura
Quais águas ressuscitadas
Depois de tudo
Reconstituem a alma da história?
História que era e respirava
Com seus alvéolos expandidos
Mal se sabendo
Embora toda a ciência e tanta vida
História que se fazia
De insondáveis geometrias
Que se encorpava por mistério
Mais que por mãos que intentam obras
Era a noite de tocaia
Eram a noite e sua entranhada participação
Na púrpura dos frutos
Era o mel elaborado sem alarde
Em jardins que ninguém vê
Como se entrosam no escuro
Era a noite cobrindo tudo
Entre dois dias
Esse nunca saber quanto tempo ainda
Era a noite imensurável
Mar
Entre dobras macias
Hora grave, hora fátua
Horas de vigília
Horas de toda sorte
Subindo
Quem bem acaba, tudo dança
Na flor do apocalipse
Caminhos verdes bem podados
Encruzilhadas terríveis
Anos de sonhos intermitentes
Em inédito poema
Esvoaçam
As páginas misturadas dos nossos livros
Adeus, esplendores de vidro
Horas desoladas
Estigmas dos equívocos
Adeus, tempo contado
Tratos e distratos
Diligência e menoscabo
Magníficos desperdícios
Adeus, necessidade
Vanidades espelhadas
Desastres entre sala e quarto
Adeus, instrumental dos ritos
Adeus, corpo conhecido
Colosso de nuvem espiralada
Que gira
Todo o montante de coisas havidas
E perdidas
Gira, altamente gira
Sobrepuja o repouso das coisas últimas
O não haver mais tempo e os fragmentos
Sobrepuja o lamento
Gira vórtice, gira noite
Flor que sobe celebrante
Em antese de milhões de instantes
Neste instante
Um pouco nos eleva
Essa dança
A despeito de nós mesmos
Essa dignidade de olhos ígneos para a despedida
Dança de estrelas reavidas
Passarada das eras
Nossos refugos de afeto
Todos cumulados
Num só corpo de ar que turbilhona
Não faltar à hora
Não voltar as costas a essa flor de vórtice
Um pouco nos assoma
Era a noite que tudo via
E acobertava
A noite aquela que descia
E exortava a falar baixo
Era a chama bailando sua ponta de fogo acutilada
A noite aquela represada entre dois dias
Como se a escuridão pudesse ser dosada
A noite que tudo sabia
E nos tinha em suas dobras
Aquela que nos recolhia sob o pano
E agora desmesurada
Sobe
Adeus, engenhos do apego
Caminhos de volta, órbita querida
Adeus, tarefa das tramas
Olhos correspondendo-se
Noites entre barragens
Adeus, sorte pretendida
Pequeno cosmo edificado
Abóbada acesa por dentro
Adeus, nome adorado
Paredes imundas de símbolos
Nada nos despoja mais
Que a violência da vida
O que bem acaba, dança
E o vivido revisto em remoinho
É outra vida
Todas as páginas soltas
Ganhando altura e giro
São outros livros
O que se ocultava, adeja
O que era grave, ri
Dança maviosa a letra antes aflita
Dança marinho o azul celeste
Brilha o reverso dos propósitos
Brilha a face inexplícita
Uma vez mais
Encontro tua mão, que não se esquiva
Uma vez mais
É a hora difusa em que a casa se regozija
É nossa dança final nublada de instantes
Confusos entre a noite e o dia
Gorjeiam pássaros
No cálice dos ventos erguidos
Não há morte que separe
O que se consuma nesse giro
Uma vez mais
Te sorrio.
(2023)
*-*-*
.
.