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Passagem para a Índia, diário de bordo (Crónica)
Por Ana Paula Dias Publicado em Crónica, Literatura, Portugal a 5 de Março, 2024 2147 palavras
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Passagem para a Índia, diário de bordo

Delhi, 10 de fevereiro de 2024

Old Delhi é a zona histórica da cidade, com origens que remontam a 1648, quando Shah Jahan decidiu transferir a capital mogol de Agra para Delhi. Atualmente coexistem na zona maravilhas arquitetónicas como o Lal Qila e a Jama Masjid, e Chandni Chowk, a rua principal, onde existem mercados de especiarias, frutos secos, joalharia e saris coloridos; as ruas adjacentes estão repletas de pequenas lojas de óleos de essenciais e doces indianos tradicionais. Carros, ciclo-riquexós, bicicletas, motorizadas, carrinhos puxados à mão, pedestres, cães e macacos competem por espaço num frenesi barulhento e imparável. Dito assim parece uma típica cidade asiática com a sua sobrepopulação, o seu comércio e a atividade decorrente. Mas a pobreza é uma realidade sempre presente. Nas ruas estreitas e congestionadas desta parte histórica da capital vêm-se crianças descalças e esfarrapadas a brincar no chão e velhos sentados nas soleiras das portas em ruínas, misturados com a cacofonia das buzinas dos veículos e da multidão agitada. Casas decrépitas, estruturas improvisadas de lona e materiais reciclados ocupam a paisagem. Por todo o lado podem observar-se camadas e camadas de lixo, pedintes, gente miserável que procura sobreviver a mais um dia. E o que mais choca é olhar para essa miséria como um todo e não ver os indivíduos. Uma massa escura, suja, anónima, a pobreza sem rosto, sem idade, sem forma, sem voz. Uma coisa informe.

Em New Delhi, num registo completamente diferente, um cartaz no átrio do hotel com uma declaração assertiva sobre inclusão: ”This festive season, Elphie [uma mascote em tamanho real com forma de elefante] welcome all irrespective os caste, creed, colour, religion or sexual orientation. Wishing you Good Health, Harmony and Hapiness”. Outra cidade.

O Museu Nacional Gandhi tem uma vasta coleção de relíquias originais, livros, diários e documentos, fotografias, materiais audiovisuais, exposições, peças de arte e outras recordações intimamente ligadas à Luta pela Liberdade Indiana e ao Mahatma Gandhi, que disse (M. K. Gandhi, Young India, 10-9-1931): “I shall work for an India, in which the poorest shall feel that is their country in whose making they have an effective voice; an India in which there shall be no high class and low class of people; an India in which all communities shall live in perfect harmony. There can be no room in such an India for the curse of untouchability or the curse of intoxicating drinks and drugs. Women will enjoy the same

rights as men. Since we will be at peace with all the rest of the world, neither exploiting, nor being exploited, we should have the smallest army imaginable. This is the India of my dreams.” Onde se perdem os sonhos?

Delhi, 11 de fevereiro de 2024

Uma surpresa. As centenas de cães de rua que estão por todo o lado aparentam estar minimamente bem tratados. Muitos têm roupas para os proteger do frio e almofadas para dormir no chão. Dormem pacificamente nos monumentos, nos passeios, no meio das ruas. Para os hindus, os animais têm alma tal como os humanos. As tradições hindus consideram a alma como a essência eterna e imutável de um ser vivo que viaja através das reencarnações até atingir o autoconhecimento. E a reencarnação não se limita ao (re)nascimento como ser humano, podem haver vidas anteriores sob a forma de animais, plantas ou de seres divinos que governam parte da natureza. Se tem vida, então faz parte do ciclo. Sorte dos cães.

Depois da experiência de ontem em Old Delhi, almoço num restaurante local de New Delhi situado numa zona residencial cuja clientela era nitidamente classe média alta que se juntou ao sábado para uma reunião familiar ou de amigos. Uma delas só de mulheres. Não somos assim tão diferentes, apenas os pobres são mais pobres aqui.

Agra, 12 de fevereiro de 2024

Em Agra, um dos monumentos mais famosos e icónicos do mundo. Construído em mármore branco, o Taj Mahal é uma obra-prima da arquitetura mogol, com esculturas complexas, pedras preciosas incrustadas e jardins simétricos dispostos em perfeita harmonia. Foi encomendado pelo imperador mogol Shah Jahan em memória da sua esposa amada, Mumtaz Mahal, que morreu na sequência do parto do décimo quarto filho. Segundo a lenda, no leito de morte, Mumtaz pediu ao marido que lhe construísse o mais belo mausoléu como símbolo do seu amor eterno. A construção demorou mais de 20 anos para ser concluída e envolveu milhares de artesãos. O Taj Mahal será assim um testemunho desse amor duradouro de Shah Jahan pela esposa e tornou-se um símbolo para pessoas de todo o mundo. Uma história de amor, perda e beleza imortal.

Não obstante, fora do recinto, o mesmo lixo, a mesma miséria.

Agra-Jaipur de carro, 13 de fevereiro de 2024

Os cerca de 240 quilómetros entre as duas cidades são uma sucessão contínua de lixo, barracas decrépitas, gente suja e paupérrima. As árvores são dum verde pardo, poeirento, raquítico. A estrada é boa, o trânsito caótico.

Jaipur, 14 de fevereiro de 2024

Rajastão. Jaipur, a cidade cor-de-rosa. A evocar tempos de maior tolerância religiosa e não só, deslumbrantes o Hawa Mahal, o palácio dos ventos com as suas 953 janelas, o Forte Amber com a mistura de elementos cultura islâmica e hindu, o Palácio da Cidade com a fusão da arquitetura mogol e Rajput e o observatório astronómico Jantar Mantar, ponto de encontro de diferentes correntes científicas, todos exemplos da grandeza e opulência da cidade e do seu passado real.

A imagem mais marcante: um grupo de cinco ou seis crianças muito pequenas, talvez com 4 ou 5 anos, seminuas, deitadas no passeio, sujíssimas. Dei-lhes o que tinha, água e bolachas, e correram para mim como animaizinhos famintos. Uma das crianças de sexo indefinido, com uma cara escura, olhos enormes inexpressivos e os lábios pintados com hena vermelho vivo – a máscara hedionda da pobreza. Foi o único rosto que consegui fixar e resume toda a miséria da índia.

Jaipur-Srinagar de avião, 15 de fevereiro de 2024

Caxemira, o único estado indiano com uma maioria religiosa muçulmana. Fortemente militarizado, polícias hindus armados e operações stop frequentes. A primeira impressão de Srinagar, a capital de verão situada no vale homónimo da província, é a de uma zona muito mais limpa, organizada, construções sólidas e modernas, bonitas.

Srinagar, 16 de fevereiro de 2024

Encrustada no vale da Caxemira, Srinagar espalha-se ao longo das margens do rio Jhelum e das margens dos lagos Dal e Anchar, rodeada pelos Himalaias por todo o lado. Em plena cidade, uma aldeia flutuante com barcos-hotel, barcos-casa, barcos-loja e até barcos-farmácia por entre os quais as pessoas se deslocam em pequenas embarcações de madeira,

as shikaras. À medida que nos afastamos da margem e nos adentramos pelo lago Dal, a visão edénica da água azul e lisa começa a dar lugar a um lago poluído pelos esgotos que desaguam nele sem tratamento, pelo lixo, pelo descuido. Inscrições nas paredes alertam “Save the Dal lake”. Missão impossível. Os projetos para o salvar afundados na corrupção.

Todos os jardins islâmicos são, até certo ponto, uma amostra e um espelho dos jardins do Paraíso, conforme descritos no Alcorão. Os dois principais elementos destes jardins são a água e a sombra. Há neles muitos significados simbólicos associados à água: esta não é apenas a fonte de toda a vida na terra, mas no jardim representa as águas que fluem eternamente no Paraíso. E a água também simboliza a alma – às vezes repousante numa piscina tranquila, às vezes enérgica quando flui rapidamente. A sombra das árvores protege do sol e também da chuva; portanto, simbolicamente representa a misericórdia do Céu, protegendo das condições climáticas extremas. Os jardins Mogol de Srinagar, Shalimar Bagh, Nishat Bagh, Chashma Shahi e os mais que não foi possível visitar não fogem à regra e neles estão presentes passarelas elevadas e cascatas com ligações físicas e visuais com o Lago Dal e as montanhas. A sombra é dada pelas chinar, as árvores locais que simbolizam resiliência e esperança.

Do alto do Hari Parbat vêm-se a cidade e os lagos rodeados pelos Himalaias cobertos de neve. Quase outra visão do paraíso.

Srinagar, 17 de Fevereiro de 2024

No centro da cidade, há arquitetura com influências da era britânica, que remonta ao século XIX, quando a Companhia das Índias Orientais estabeleceu o controlo sobre a região e foram edificadas faculdades, hospitais, tribunais, residências, mesquitas, templos, hammams e bazares de estilo colonial, construídos no vernáculo local da arquitetura em madeira e alvenaria. Lal Chowk, a praça vermelha, tem este nome dado por ativistas de esquerda inspirados pela Revolução Russa e, adequadamente, foi cenário de várias reuniões e tumultos políticos ao longo do tempo.

Ao invés dos estados hindus, em Srinagar e arredores os cães metem dó. Esfomeados, maltratados, mordidos, dezenas de matilhas vagueiam pela cidade, vasculham nos caixotes de lixo e nos detritos. Muitos bebés a indicar o completo abandono a que estão votados. Aqui não lhes vale a teoria da reincarnação; o Corão rejeita o conceito, embora pregue a existência da alma. A crença é que existe apenas um nascimento nesta terra, que o

dia do Juízo Final vem após a morte e o destino, conforme se falhe ou não o teste de Alá, ou é o inferno ou ser unificado com Deus. Azrael já levou estes cães vivos para o inferno.

Srinagar-Gulmarg, 18 de fevereiro de 2024

Cinquenta quilómetros e hora e meia de caminho, a partir de Tangmarg com cinco quilómetros de estrada de montanha transformada numa espessa pista de neve. Muitas curvas e contracurvas no meio da floresta subalpina e alguns desfiladeiros depois chega-se a Gulmarg, uma estação montanhosa na cordilheira Pir Panjal, no oeste dos Himalaias, a uma altitude de 2.650 metros. Gulmarg, que se traduz literalmente por “prado de flores”, durante o domínio colonial serviu de retiro para os funcionários públicos britânicos que procuravam escapar do calor escaldante do verão nas planícies do norte da Índia.

Ignorando a tremenda azáfama de guias miseráveis a oferecer serviços, os jipes a buzinar desenfreadamente, a multidão de gente a colorir a paisagem por todo o lado mais os trenós amontoados, os restaurantes e lojas abarracados, a lama por causa da neve derretida, a paisagem é belíssima. Pequenos hotéis simpáticos, as montanhas já tão próximas, o telhado vermelho do templo Maharani dedicado a Shiva e Parvati, a curiosa igreja de Santa Maria e o teleférico, o segundo mais longo e o mais alto do mundo, que conduz à primeira ou segunda estação, conforme escolhermos. Subimos à primeira estação, 3.000 metros. A beleza branca indescritível. Quando vi a neve, pensei que era triste morrer.

Gulmarg-Srinagar-Delhi, 19 de fevereiro de 2024

Um nevão precipita a partida, dado o risco de a estrada se tornar intransitável e o jipe com correntes nas rodas é a única forma de chegar ao sopé da montanha e alcançar a estrada para Srinagar. A neve a cair é mais uma experiência nova e deslumbrante, os flocos miúdos evocam cenas um tanto nostálgicas de filmes antigos, um inverno que não é das nossas latitudes. A meio da estrada a neve já derreteu e o jipe acelera nas curvas a uma velocidade pouco recomendável. Esta gente conhece bem a estrada e chegamos ao aeroporto em segurança.

Aeroporto. Caos. Filas intermináveis de que nem se percebe o início nem o fim nem para que servem. Felizmente estamos na Índia. Um empregado do aeroporto aproxima-se e resolve tratar de todas as burocracias necessárias sem que lhe tenhamos pedido nada. Quando damos por nós já estamos na zona VIP, já passámos todos os controlos de

passaporte, já despachámos as malas e pagámos-lhe o equivalente a 10 euros pela ajuda. Abençoada Índia, o caos funcional.

O resto não tem história. Srinagar, Delhi, Hong Kong, Macau, um dia preenchido. Uma viagem complexa ainda a ser digerida. Mas a certeza de que a diversidade do mundo nunca deixará de chamar por mim.


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